São Paulo, sexta-feira, 26 de novembro de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

Semidemocracia

JORGE ZAVERUCHA

Há uma corrente que analisa os países sob o critério de mudança política. A classificação é dicotômica: democracia ou autoritarismo. Outra enfatiza as características do sistema político ressaltando as ambiguidades do mesmo. A classificação pode ser quadricotômica: democracia, semidemocracia, semi-autoritarismo e autoritarismo. A semidemocracia aponta para a existência de um regime híbrido, ou seja, aquele em que coexistem traços democráticos e autoritários.
O Brasil enquadra-se nesse hibridismo. Não dá para dizer que somos um regime autoritário nem que somos uma sólida democracia. O problema é que estamos vivendo nessa situação desde 1985. E não há sinais concretos de que esse hibridismo será superado. Avanços aqui, retrocessos acolá.
A semidemocracia, por definição, é uma situação em que uma democracia "imperfeita" caminha rumo a uma democracia com sólidas e responsivas instituições. Seria preciso, portanto, dar tempo à mesma. Contudo, passados 20 anos do fim do regime militar, a semidemocracia brasileira não caminha rumo à superação, de um modo regular, de seus traços autoritários mais marcantes. Na medida em que o tempo passa, corre o risco de se tornar um projeto de manutenção de uma mera democracia eleitoral. Ou seja, o Estado se mantém autoritário mesmo com a existência de uma democracia de procedimentos. A saída do ministro da Defesa, José Viegas, justifica esse receio.


Os militares conservam boa parte de seus enclaves autoritários dentro do aparelho de Estado


Viegas apontou a existência de alguns militares adeptos da Doutrina de Segurança Nacional. Isso também se aplica a determinados civis. A Lei de Segurança Nacional (LSN) de 1983 continua em vigor. É uma lei de proteção política do Estado, ou melhor, de um Estado autoritário. O ex-presidente Fernando Henrique chegou a criar uma comissão visando substituí-la. Desistiu. Dormem em alguma gaveta do Congresso Nacional propostas, de parlamentares do PT, no sentido de aboli-la. Sono profundo.
As polícias Militares copiam o modelo de batalhões de infantaria do Exército; são regidas pelo mesmo Código Penal e de Processo Penal Militar das Forças Armadas; seus serviços de inteligência continuam vinculados aos do Exército; e são controladas parcialmente pelo Comando de Operações Terrestres (Coter) do Exército. Afora isso, o Congresso Nacional, com o apoio de Fernando Henrique, aprovou emenda constitucional transformando o policial militar em militar estadual. Algo que nem o regime militar ousou fazer.
A Constituição Federal de 1988, escrita por civis, manteve o papel constitucional das Forças Armadas como garantes do poder político. Elas são baluartes da lei e da ordem definidas por elas mesmas, não importando a opinião do presidente da República ou do Congresso Nacional. Portanto cabe às Forças Armadas o poder soberano e constitucional de suspender o ordenamento jurídico do Brasil.
Essa Constituição reuniu em um mesmo título V (Da Defesa do Estado e das Instituições), três capítulos: o capítulo I (Do Estado de Defesa e do Estado de Sítio), o capítulo II (Das Forças Armadas) e o capítulo III (Da Segurança Pública). Misturou-se a ordem interna com a externa. Sólidas democracias procuram separar as competências das polícias das do Exército. Nossa Constituição tem sido emendada com uma freqüência ímpar. Mas na área das instituições coercitivas mostra-se bem estável.
A Justiça Militar funciona nos moldes do regime autoritário e civis podem ser julgados por tribunais militares em tempo de paz; o Senado permanece sem participar na promoção do generalato; o orçamento militar é um dos mais altos da União, superando muitas vezes o que é gasto com educação; há um general da ativa como ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, que, por sua vez, controla Agência Brasileira de Inteligência (civil). Quando a Abin foi aprovada pelo Congresso Nacional, ela estava submetida diretamente ao presidente da República. Medida provisória passando por cima de decisão do Legislativo, ressalve-se, é que colocou a Abin no colo dos militares. Durante o regime autoritário, até os militares tiveram o cuidado de separar a instância que coletava informações da instância que decidia sobre o seu uso.
Desse modo, o pacto da transição entre civis e militares vem se mantendo vitoriosamente. Os militares admitem uma democracia eleitoral. Ela, todavia, revela-se incapaz de satisfazer as necessidades básicas da maioria da população brasileira.
Em troca, os militares conservam boa parte de seus enclaves autoritários dentro do aparelho de Estado. Na medida em que grupos, em especial no campo, sinalizam para um autoritarismo de esquerda, setores civis e militares que aceitariam abolir o autoritarismo de direita resistem às mudanças.
O silêncio da elite política civil no episódio da saída de Viegas confirma ser o militarismo um fenômeno amplo, regularizado e socialmente aceito no Brasil.

Jorge Zaverucha, 48, doutor em ciência política pela Universidade de Chicago, é professor da Universidade Federal de Pernambuco e pesquisador do CNPq. É autor de "Frágil Democracia: Collor, Itamar, FHC e os Militares" (Civilização Brasileira), entre outras obras.


Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES
Marco Maciel: Um humanista

Próximo Texto:
Painel do leitor

Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.