São Paulo, quinta-feira, 26 de dezembro de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Crise do pensamento crítico

DEMÉTRIO MAGNOLI

As raízes intelectuais do PT e do PSDB encontram-se no pensamento crítico que floresceu durante a década de 70. Sob os generais Garrastazu Médici e Ernesto Geisel, o modelo de substituição de importações atingia o seu zênite, enquanto o Estado alcançava o ponto mais alto da curva histórica de participação na produção econômica nacional.
A constatação histórica de que a ditadura militar prosseguia com a estratégia de modernização da economia do país assentada sobre o investimento estatal proporcionou ao pensamento crítico um novo horizonte. A economia política revelou que o Estado erguido desde os tempos de Getúlio Vargas funcionava como instrumento da acumulação de capital pelas grandes empresas transnacionais e nacionais. A sociologia, a política e a história mostraram os contornos da aliança entre o poder público e o empresariado industrial e financeiro. O urbanismo e a geografia esclareceram os mecanismos de exclusão social postos em movimento pelo modelo da industrialização dependente.
A crítica à política econômica do regime militar desdobrou-se e ampliou-se como crítica à modernização de Vargas e JK. O nacionalismo populista apareceu, à luz do pensamento crítico, como instrumento da inserção subordinada do Brasil na economia mundial capitalista e precursor do "Brasil potência" dos militares.
O pensamento crítico daquele período dividiu-se, como uma árvore partida, em duas vertentes políticas principais. A primeira, influenciada pela social-democracia européia e preocupada com a reforma do Estado, deu origem ao PSDB de Fernando Henrique e José Serra. A segunda, influenciada pelo sindicalismo, pelo radicalismo católico e pelo castrismo, deu origem ao PT de Lula e José Dirceu. Apesar das profundas divergências a respeito do futuro, as duas vertentes compartilhavam a ruptura intelectual com o passado.
O PSDB chegou ao poder e teve a oportunidade de traduzir a sua crítica na forma de programa de governo. Sob o impacto externo da globalização e as limitações internas derivadas da aliança com o PFL, os dois governos de FHC realizaram apenas parcialmente a plataforma política do partido, desmontando o Estado edificado por Vargas, JK e Geisel e lançando os alicerces de um novo relacionamento entre o poder público, o capital internacional e o empresariado nacional. No fim, ficou um gosto amargo de renúncia à parte do programa que prometia acelerar o desenvolvimento e resgatar a "dívida social" brasileira. A campanha presidencial de Serra vocalizou essa frustração.
Na origem, o PT queria substituir o capitalismo pelo socialismo. O "socialismo real", na versão soviética, foi sempre criticado, mas não deixou de ser visto como uma referência imperfeita.


Ao "neoliberalismo" de FHC, o PT contrapôs uma mistura requentada de idéias nacionalistas e desenvolvimentistas


Quando o Muro de Berlim desabou, em novembro de 1989, Djalma Bom e outros dirigentes intermediários petistas participavam de uma "escola de quadros" promovida pelo partido comunista da Alemanha Oriental, num edifício do governo que foi cercado por uma multidão de manifestantes que exigia eleições livres e democracia. Na oposição a Collor e FHC, o PT experimentou a falência do "socialismo real" e debateu-se com os problemas teóricos e políticos gerados por essa falência.
A reinvenção do PT ocorreu no ambiente de oposição às reformas de FHC. O fracasso internacional da alternativa socialista produziu um vácuo de idéias políticas, que foi preenchido regressivamente. Ao "neoliberalismo" de FHC, o PT contrapôs uma mistura requentada de idéias nacionalistas e desenvolvimentistas. Na sua vitoriosa campanha eleitoral, Lula apresentou-se, explicitamente, como sucessor de Vargas e JK e nem sequer deixou de exaltar o "planejamento estratégico" do regime militar, que, com todos os seus defeitos, teria pelo menos revelado a capacidade de elaborar um "projeto de nação".
A conversão regressiva do PT ao conjunto de ideologias do nacional-desenvolvimentismo não assinala apenas uma renúncia ao socialismo, mas também uma ruptura com a ruptura promovida pelo pensamento crítico da década de 70.
Na esfera política, essa "negação da negação" forma o campo no qual se move a atual política de alianças do governo Lula. Essas alianças abrangem, ecumenicamente, o extenso espectro que parte do PC do B stalinista, passa pelo populismo clientelista de Quércia e chega aos fragmentos oligárquicos representados por Sarney e cia. Na esfera intelectual, a "negação da negação" opera uma apostasia no pensamento crítico, sublima a crítica à aliança entre o Estado e o capital nacional e internacional e cola as peças quebradas da mitologia de Vargas e JK.
Lula não vai, é claro, governar à la Vargas ou JK (muito menos à la Geisel). Há fortes indicações, como a escolha de Meirelles para o BC e a proposta de reforma previdenciária, de que o seu projeto inscreve-se na linha de continuidade dos governos de FHC.
Mas a conversão regressiva do PT, mesmo se circunscrita à prática retórica, impede uma aliança com o PSDB, que seria mais natural e reconstituiria a árvore partida há duas décadas. Mais importante do que isso: essa conversão seca o copo do pensamento crítico que esclareceu o sentido histórico da modernização brasileira e libertou o debate político dos fantasmas de Vargas e JK.

Demétrio Magnoli, 44, é doutor em geografia humana pela USP e editor do periódico "Mundo Geografia e Política Internacional".


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