São Paulo, quinta-feira, 27 de maio de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O casamento de homossexuais e o HIV

VICENTE AMATO NETO e JACYR PASTERNAK

Há possibilidade de o casamento de homossexuais diminuir os riscos de contaminação pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV) entre os(as) parceiros(as)? A chance de haver reconhecimento legal de tal conduta poderia ser útil na prevenção da Aids?
Conforme nossa opinião, essa modalidade de enlace leva a atitudes de confronto nos Estados Unidos, onde há os que a defendem enfaticamente e os que representam a direita religiosa fundamentalista, que ajudou a eleger Bush, interessados em definir numa emenda constitucional o casamento como sempre sendo a união de um homem com uma mulher. Nesse aspecto, a direita norte-americana está sendo no mínimo incoerente, já que sempre foi uma das suas bandeiras a defesa do direito dos Estados -e a definição de casamento, hoje, é um deles.
Uma das grandes queixas dos que se opõem aos democratas constantemente teve respaldo nas diretivas vindas de Washington -e logo agora querem fazer uma. Que, aliás, parece inviável: todas as emendas à Constituição norte-americana (que, diferentemente das muitas nossas, dura mais de 200 anos e funciona muito bem, com poucas emendas e nenhuma que altere seus princípios básicos) aumentam a defesa dos direitos individuais, nunca restringindo-os. A exceção constituiu o remendo que proibia o consumo de álcool, e este não durou.
Aqui no Brasil, o vínculo entre homossexuais conduz a direitos aceitos pela Justiça em várias sentenças da autoria de diversos juízes e, provavelmente, uma união estável neste nosso país, seja homo ou heterossexual, gera os mesmos direitos para os parceiros na divisão de bens. Casamento é um contrato, entre outras coisas, e, nesse aspecto, nossa Justiça é mais lógica e menos ligada a preconceitos do que a norte-americana, admitindo direitos de herança e propriedade comum na aliança consolidada, que essencialmente é a co-habitação reconhecida por um espaço de tempo suficiente.
Quanto à oficialização do casamento entre homossexuais ser útil a propósito da prevenção da Aids, cremos que isso em nada muda a situação que temos hoje. Entre homossexuais, como entre heterossexuais, existem ligações em que há fidelidade permanente, existem ligações com fidelidade por algum tempo e existem equivalentes aos casamentos abertos, em que cada um transa com quem quiser e como quiser, alertando ou não o parceiro.
A lealdade conjugal não é, decididamente, um dos fortes da sociedade brasileira entre heterossexuais. Por que seria diferente entre homossexuais, ainda que o liame tenha sido homologado em cartório, por exemplo?
Vamos até mais longe: embora as várias religiões, e não apenas a católica, considerem que a castidade até o casamento e a sinceridade férrea depois deste sejam obrigações pétreas, elas não conseguem que tais diretivas sejam seguidas por todos os seus líderes, laicos ou clericais, sejam eles padres ou pastores. Não dá para tapar o sol com uma peneira -é só olhar e ver o que acontece.
Sem querer fazer futurologia, nosso palpite -e, por favor, vejam isto apenas como palpite, sem maiores pretensões- é que o celibato obrigatório clerical da Igreja Católica está com os dias contados, e um próximo papa vai provavelmente fazer o que já é feito na Igreja Ortodoxa, em que o candidato a padre tem a oportunidade de tomar dois rumos: ser padre secular ou monge. Se for padre secular, não só pode, como deve, casar-se; já o monge não casa, e só ele pode subir na hierarquia eclesiástica, para ser bispo ou patriarca. A opção é clara e é discutida durante a formação do religioso, no seminário. Julgamos pelo menos mais lógico dar a opção do que simplesmente cortá-la de uma vez.


Vicente Amato Neto, 76, médico infectologista, é professor emérito da Faculdade de Medicina da USP. Jacyr Pasternak, 64, médico infectologista, é doutor em medicina pela Unicamp.


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