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CARLOS HEITOR CONY
Caramba, carambola
RIO DE JANEIRO - Leio em T.S. Eliot, considerado o maior poeta do século
20, uma restrição à obra de James
Joyce que me parece definitiva, letal.
Na virada do terceiro milênio, foram
feitas aqui no Brasil e em quase todos
os países do mundo diversas listas
dos melhores disso e daquilo do século que se findava.
No setor dos romances, em várias
listas, o "Ulisses", de Joyce, ficou em
primeiro lugar, e "Em Busca do Tempo Perdido", de Marcel Proust, em segundo. Um jornal do Rio pediu-me a
opinião e eu coloquei Proust em primeiro, Joyce bem mais atrás.
T.S. Eliot teria feito o mesmo. Disse
ele, com estilo e autoridade: "Ulisses
não proporciona nenhuma visão interior da natureza humana. Ofusca
pela linguagem, mas não atinge a
consciência, o "momentum" do homem".
Acho graça nos devotos de "Ulisses"
que comemoram o dia de Leopold
Bloom. Os mais fundamentalistas
chegam a comer rim no desjejum.
Com o devido respeito aos "gourmets" que apreciam a víscera com
gosto e cheiro de urina, prefiro molhar meus biscoitos no chá -e, quando estou em Paris, molho mesmo a
"madeleine" e, se ela não me traz o
tempo perdido, poupa-me ao menos
o tempo desperdiçado.
Pois não desperdiço tempo comendo o rim que não gosto e que não me
traz lembrança nenhuma, a não ser a
da urina bovina. Para falar a verdade, não lembro nada de especial
quando molho um biscoito no chá, a
não ser, obviamente, do próprio Marcel Proust.
Mas outro dia, inesperadamente,
ofereceram-me uma carambola
-fruta de minha infância que não
comia há anos. Por Júpiter! Como tudo voltou, compactado e doce, um
doce ligeiramente amargo, trazendo-me de volta a visão interior que, apesar dos pesares e na certa sem mérito
nenhum, me faz pertencer à natureza
humana.
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