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CARLOS HEITOR CONY
Uma proposta modesta
RIO DE JANEIRO - Uma das poucas certezas sobre o jornalismo é a de que
a ironia não funciona em texto para
ser consumido por um público heterogêneo. Pede-se do autor uma definição imediata e concreta contra ou
a favor de um assunto ou pessoa. Admira-se o panfletário que dá nome
aos bois, nem sempre acertando com
os bois e os nomes. Admira-se o humorista, que nem precisa acertar o
boi e o nome, entre outras coisas, porque é um humorista.
Nem mesmo na literatura a ironia
funciona, sobretudo quando ela ultrapassa o comentário marginal da
narrativa, território em que Machado de Assis foi mestre. O bruxo era
tão bruxo que só usava a ironia para
o "caco" saboroso, sem se comprometer com a essência do texto, que era
sério, até mesmo solene.
Irônico foi Jonathan Swift (1667-1745), que pouco se preocupou com
detalhes, indo fundo na condição do
homem e nas circunstâncias da sociedade. Sua obra prima, "As Viagens
de Gulliver", tem o tom de farsa que a
tornou clássica, impondo respeito
acima de qualquer consideração moral e instalando-se na prateleira mais
nobre da literatura universal.
O mesmo não acontece com "Modesta Proposta", agora relançada
aqui no Brasil, em que Swift dá literalmente uma receita para acabar
com a fome no mundo sem apelar
para programas furados como o Fome Zero. Pega-se o filho de uma família pobre, entrega-se a uma família de recursos que engordará o recém-nascido até que ele complete um
ano de idade e tenha carne bastante
para ser comido por ricos e pobres.
Apoiado em testemunhos de povos
que praticam o canibalismo, Swift
elogia o sabor e as qualidades alimentícias da carne ainda tenra, melhor do que a dos frangos "al primo
canto". Faz ainda outras considerações para o bem da humanidade em
geral, partindo do ponto em que tudo
o que fora feito até a sua época era insuficiente ou idiota. Dois séculos depois dele, poucos o entendem.
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