São Paulo, sexta-feira, 27 de setembro de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Os contadores da ética

REINALDO AZEVEDO

Há dias, quem navegava pelo site da candidatura de Lula (www.lula.org.br) podia ler a seguinte interpelação a este jornal: "Folha de S. Paulo: rabo preso com quem?". Afirmava o texto: "O comitê de imprensa da campanha Lula presidente concluiu (...) que, enquanto a mídia impressa em geral tem evoluído nesta campanha para uma postura mais isenta, a Folha de S.Paulo adotou recentemente uma política editorial abertamente hostil ao PT (...). A Folha está de rabo preso com quem?"
Os dados que justificavam a acusação contrariavam a minha percepção. Tem-me parecido que a mídia em geral tem sido benevolente com o PT. As razões são as mais diversas. De maneira sucinta, diria que o casamento de ilusões inercialmente esquerdistas com a tolerância politicamente correta se abraçam e acabam por preservar o PT de si mesmo. Isso fica para outra hora. Voltemos à "política abertamente hostil" da Folha em relação ao PT.
Tenho-me por leitor atento até por dever de ofício. Poderia ter errado tanto? Naveguei em busca dos dados, tabulados por um certo Diálogo com a Imprensa, um grupo de petistas que analisa o noticiário de quatro jornais - Folha, "O Estado de S. Paulo", "O Globo" e "Jornal do Brasil". Afirmava-se sobre o período de 7 e 13 de setembro: "A Folha dedicou 156 matérias à cobertura dos candidatos. Lula teve maior número de matérias, 62 (39,74%), seguido de Ciro, 53 (33,97%), e, por último, Serra, com 29 (18,59%). Do total de matérias para cada candidato, Serra teve 59% de matérias positivas, seguido de Lula -45%- e, por fim, de Ciro, com 25%. Do universo de matérias de cada candidato, Ciro teve 64% de negativas, seguido de Lula -52%- e de Serra, 41%".
Na miudeza eloquente: Lula, na Folha, tivera 27,9 notícias positivas em uma semana, contra 17,11 de Serra e 13,25 de Ciro. Ou seja, Lula obtivera na Folha 63,06% mais notícias positivas do que Serra e mais do que o dobro de Ciro. A desproporção em favor do petista era ainda mais evidente nos outros jornais.
Mas por que, então, a interpelação naqueles termos? Parecia ferir os brios do partido a tal "notícia negativa". Não se trata aqui de defender a Folha, mas de impedir que a lógica seja vítima de um ataque especulativo.


A tática de plantar falsas evidências e de exercer o charme de minoria perseguida dá, sim, resultado


Se uma porcentagem ligeiramente maior de notícias negativas para Lula estaria a indicar que a Folha tem "o rabo preso" alhures, o que dizer dos outros três jornais? Teriam o rabo preso com o PT? Se dois pontos percentuais além do rigoroso equilíbrio bastavam para prender "o rabo" da Folha a interesses obscuros, o que terá acontecido com o "rabo" d" "O Globo", que, segundo o grupo, publicou apenas 19% de notícias negativas sobre Lula? Bastam dois pontos contrários ao PT para um jornal ver fuzilada a sua isenção no paredão da intolerância, mas não bastam nem 81, nem cem, nem mil pontos a favor do PT para ferir a isenção, a independência e a objetividade de outros jornais?
Destaco, antes de avançar, que considero levantamentos dessa natureza uma suprema bobagem. Não é com régua ou calculadora que se medem isenção ou independência. O PT recorre a dados de um evento estatístico para fazer uma ilação que está fora do fato. É um truque comum a ignorantes e prosélitos. A demonstração bisonha da "evidência" não tira o direito do partido de alegar o suposto prejuízo. Mas que a coisa seja chamada pelo seu nome.
E o nome dessa coisa é o "lugar privilegiado da vítima". Cumpre ao PT, mesmo incorporado ao establishment, hoje tão romano como qualquer um, preservar o espírito de gauleses sitiados. A tática de plantar falsas evidências e de exercer o charme de minoria perseguida, mesmo quando se é maioria que também persegue, dá, sim, resultado.
Reparem: o noticiário das TVs omite, por exemplo, que o dólar muito acima de R$ 3 se deve, sim, à possibilidade de Lula se eleger no primeiro turno. Inventa-se um certo "fator eleitoral", sujeito tão abstrato como inexistente, para explicar a disparada da moeda. Quem deu aos editores dos jornais da TV o direito de omitir dos telespectadores o fato? Que chamem os investidores de especuladores, agiotas e sanguinários; que os acusem de tentar boicotar a democracia, a alternância de poder, o bem e o belo; que atribuam a vulnerabilidade externa a FHC, a Malan e até a José Serra. Só não podem é esconder um fato óbvio: Lula sobe nas pesquisas e leva o dólar consigo. Dói? O eleitor que decida.
A benevolência que preserva o PT de suas próprias circunstâncias contribui para agregar ao partido laivos de má-fé -de novo, sob certo manto cúmplice e protetor. No fim da semana, Lula anunciou que cobraria de FHC explicações sobre a alta do dólar. Nesta segunda, o deputado Aloizio Mercadante (PT-SP) acusava o Banco Central de não agir e deixar a especulação rolar solta.
O tal Diálogo deve ter tabulado as duas informações na coluna das "notícias positivas" para o PT. Trata-se, num caso, de mistificação e, no outro, de uma deslavada mentira. Como se vê, contadores até podem ter ética, mas não se deve deixar a ética para ser decidida pelos contadores.


Reinaldo Azevedo, jornalista, é diretor de redação do site e da revista "Primeira Leitura" (www.primeiraleitura.com.br).



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