|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
RUY CASTRO
A voz do morro
RIO DE JANEIRO - Numa semana em que os morros cariocas estiveram no centro dos acontecimentos, convenci-me de que não adianta apelar para a música popular para tentar entendê-los. Poucos cenários foram tão cantados e nenhum
tornou mais superados os grandes
sambas e canções que se fizeram a
seu respeito.
Por exemplo, "Chão de Estrelas",
de Sylvio Caldas e Orestes Barbosa.
A idéia de que "a porta do barraco
era sem trinco/ e a Lua, furando o
nosso zinco/ salpicava de estrelas
nosso chão" podia ser bonita em
1937. Hoje a Lua não conseguiria
furar a laje do barraco, porque este
seria um prédio de cinco andares,
de propriedade de um tubarão e
alugado de alto a baixo.
E a linda "Ave-Maria no Morro",
1943, de Herivelto Martins? Com a
tomada do poder na favela pelos
evangélicos, dividindo-o com os
traficantes, ficou difícil de acreditar
que, hoje, "o morro inteiro/ no fim
do dia/ reza uma prece/ Ave Maria". Mais fácil é imaginar um pastor diante de uma congregação apinhada, enxotando o demônio de um
membro possuído, aos brados, como se Deus fosse surdo.
Zé Kéti, no samba "Acender as
Velas", de 1965, descreve a morte de
uma criança na favela e observa que
"no morro/ não tem automóvel pra
subir/ nem telefone pra chamar".
Se fosse só por isto, hoje a criança
não morreria. O que não falta é automóvel subindo o morro para fins
nada nobres, e o número de celulares em qualquer favela carioca compete com o do Leblon.
E, em "Opinião", de 1964, o mesmo Zé Kéti dizia: "Podem me bater/
Podem me prender/ Podem até deixar-me sem comer/ Que eu não
mudo de opinião/ Daqui do morro
eu não saio, não". Grande samba,
mas o querido Zé, que não era bobo,
já não morava no morro. Pouco depois, aliás, fui seu vizinho no lendário Solar da Fossa, em Botafogo.
Texto Anterior: Brasília - Melchiades Filho: Balé municipal Próximo Texto: Fernando Gabeira: Brasília teimosa Índice
|