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São Paulo, sábado, 28 de junho de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O pacote de microcrédito do governo terá efeito relevante sobre a economia?

NÃO

O microcrédito e o sistema financeiro

FERNANDO CARDIM

O governo federal anunciou medidas de estímulo à realização de operações de microcrédito por parte do sistema bancário. Segundo a imprensa, é a expectativa do presidente Lula que esse conjunto de medidas ajude a reduzir os juros cobrados pelos bancos em suas operações de empréstimo.
Não há a menor dúvida de que a ampliação do acesso a serviços financeiros para várias camadas da população, até aqui excluídas desse mercado, é mais do que urgente, é quase um direito de cidadania. Também não há dúvidas de que as taxas de juros cobradas pelas instituições bancárias estão muito além do razoável, e um dos determinantes mais importantes dessas taxas é o elevado grau de monopólio do setor. É, porém, muito duvidoso que o pacote de medidas voltado para o primeiro desses problemas possa dar também contribuição significativa à solução do segundo.
O microcrédito foi criado especificamente para atender os excluídos do mercado financeiro, seja porque o valor dos seus negócios é irrisório, não atraindo as instituições financeiras, seja porque os demandantes de recursos nesse segmento geralmente não têm condições de oferecer nenhuma garantia de seus empréstimos. O microcrédito é uma forma de atender à demanda daqueles que não conseguiriam despertar o interesse dos bancos, substituindo-se os mecanismos normais de concessão de crédito por outros mais adequados a essa clientela.
É óbvio que microcrédito é um instrumento de política social, mais do que de política econômica. Ele atinge uma franja de tomadores potenciais que não seria atendida pelo sistema bancário em nenhuma circunstância. Por essa razão, não há como esperar que tais iniciativas tenham impacto nos mercados formais de crédito. Não é porque há uma multidão de microempresários competindo por crédito que as taxas de juros no Brasil são elevadas, mas, sim, a despeito da possível existência desses tomadores. A criação de canais de atendimento desse segmento em nada afetará as condições nos mercados formais de crédito.
Na verdade, apesar da nota da Febraban simpática às medidas, é altamente improvável que elas surtam efeitos sobre os bancos privados. Microcrédito é tarefa para bancos públicos e para ONGs. O que todos esperamos da normalização do mercado financeiro, quando a dívida pública deixar de ocupar os balanços bancários na extensão em que o faz atualmente, é a oferta de crédito a pequenas e médias empresas (já que as grandes mantiveram seu acesso a empréstimos), que são os grandes geradores de renda e emprego no Brasil. Para os bancos privados, os negócios que podem ser feitos com clientes de microcrédito simplesmente não oferecem atrativos (exceto como esforço de relações públicas, similar ao que acontece com o Fome Zero).
A inadimplência é realmente reduzida no microcrédito, mas o retorno da oferta de crédito em si é baixo, e não é uma operação que cria clientela para outros serviços oferecidos pelos bancos. Além disso, custos operacionais devem ser elevados, pela necessidade maior de atendimento físico do cliente. Do mesmo modo, os mais pobres não têm contas em bancos não porque se exijam muitos documentos, mas porque aos bancos não interessam depósitos de pequeno valor. Não será surpreendente se os bancos preferirem, na verdade, manter recursos no compulsório para evitar prejuízos com essa linha de negócios.
Finalmente, deve-se ainda lembrar que o microcrédito serve para permitir que pessoas de baixa renda, mas com capacidade empresarial, possam concretizar seus planos. A costureira que pode comprar a máquina de costura, o futuro comerciante que pode abastecer sua pequena quitanda etc. são os alvos do microcrédito. Isso simplesmente não é alternativa para os milhares de desempregados que a política macroeconômica do governo está despejando nas ruas. Estes não serão atingidos pelo pacote, porque não buscam crédito, mas emprego; e empregos não são gerados nas condições recessivas em que a economia brasileira foi colocada pela surpreendente decisão do novo presidente em prosseguir com (e radicalizar) as estratégias herdadas do governo anterior.
Em suma, o microcrédito é um instrumento potencialmente importante de política social, mas dificilmente a expectativa do presidente de conseguir reduzir os juros de mercado será alcançada por esse caminho. Mesmo como política social, o microcrédito não é uma panacéia, porque está voltado a uma pequena fração dos mais pobres, mas, como política econômica, esse instrumento não teria maior relevância, ainda que não tivesse de enfrentar o gigantesco dano que está sendo criado pelo próprio governo ao promover a estagnação da economia e o crescimento do desemprego. Sobrecarregar o microcrédito com metas como obter redução de juros é condená-lo ao fracasso, antes mesmo que ele entre em operação.


Fernando J. Cardim de Carvalho é professor titular do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.


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