São Paulo, sábado, 28 de setembro de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Superando o discurso anticorrupção

NEISSAN MONADJEM

A Transparência Brasil, ONG voltada ao combate da corrupção, lançou a campanha Voto Limpo 2002. Seus frutos serão certamente significativos, tanto quanto foram os colhidos nas eleições municipais de 2000.
Na medida em que a maior conscientização dos eleitores alerta sobre a importância de votar em candidatos não só livres deste mal, mas comprometidos com o combate à corrupção, a necessidade de uma renovação ética em nosso país torna-se cada vez mais evidente.
O final do século 20 foi, para os brasileiros, marcado pela conquista da democracia, ou seja, do direito de escolha de nosso destino político. Infelizmente, porém, o contraste desse direito com a qualidade geral de nossos quadros políticos explica a dificuldade da escolha de um candidato hoje. Uma crescente desorientação ética ameaça os eleitores quando da "leitura" dos signos morais emitidos nas mensagens de campanha dos partidos. Pior, hoje os marketeiros cobram de seus clientes/candidatos o discurso anticorrupção.
Nesse panorama, é fundamental para o futuro do país que se obtenha de cada candidato à Presidência um compromisso real, público e formal de adoção de ações específicas de combate à corrupção, caso eleito. Tal documento, com oito pontos concretos, foi lançado por nossa organização e enviado a estrategistas de campanha dos principais candidatos.
O progresso verdadeiro decorre de ideais universais que mantenham a sociedade unida. O papel do presidente da República de simbolizar essa convicção é insubstituível. Uma mudança social verdadeira resulta tanto do desenvolvimento de instituições como das qualidades e atitudes que nutrem os padrões de interação humana. A ética nesta receita é um catalisador eficaz. A diferença entre a pequena propina oferecida ao funcionário público e o desvio de milhões de uma obra federal não está na qualidade, mas na escala da corrupção. Ambos são danosos à sociedade.
A real prosperidade do Brasil -o bem-estar de nosso povo, fundamentado na justiça- decorre do progresso dos mecanismos de controle das instituições pela sociedade -para citar uma das áreas de ação da Transparência Brasil-, mas também é dependente da adoção pela grande maioria de uma consciência ética de valores universais, área de atuação das organizações religiosas e ONGs ligadas à educação. Um esforço é inócuo sem o outro.


A real prosperidade do Brasil decorre do progresso dos mecanismos de controle das instituições pela sociedade


Religião deve ser encarada como fonte de conhecimento e motivação ética, de valores sem os quais coesão e ação coletiva dificilmente serão alcançadas. Foi da prática da orientação moral das religiões que grandes segmentos da humanidade desenvolveram qualidades que conduziram à ordem social, ao progresso cultural e à obediência às leis, fundamentos do combate à corrupção.
O conjunto de capacidades necessárias para aperfeiçoar o tecido social, econômico e moral da coletividade depende dos recursos tanto do intelecto como do espírito humano. Deles emanam virtudes que impulsionam a verdadeira cidadania em nossa sociedade. Características como a honestidade, o dever e a lealdade, tão centrais ao progresso humano, são, porém, muito raras no processo político que caracteriza estas eleições.
O aperfeiçoamento do arcabouço legal, mesmo que essencial na construção de um Brasil transparente, é limitado em sua eficácia. Utilizar também as raízes que se encontram no propósito da vida humana é acionar um impulso que pode assegurar uma transformação social genuína da realidade brasileira. O surgimento de instituições públicas que gerem confiança e que estejam livres da corrupção está intimamente ligado ao processo de desenvolvimento moral e à dignidade material de seus integrantes.
A capacidade de qualquer governo de administrar mudanças e responder criativamente aos desafios à sua frente requer o desenvolvimento de habilidades cruciais, como a necessária para defender a justiça e a equidade e implementar decisões com franqueza e transparência. A mera adoção de salvaguardas legais, embora importante, não provocará por si só mudanças significativas de comportamento. Por outro lado, a história comprova que uma barragem de falso moralismo não "segura" enxurradas de corrupção que assolam o país.
É cientificamente provado que mecanismos de controle minimizam significativamente a ação da corrupção, mas a criação de um ambiente público "livre da corrupção" depende também do incentivo à capacidade dos indivíduos. Para tanto, a educação é uma ferramenta indispensável. A colaboração crescente entre comunidades religiosas, organizações não-governamentais e instituições públicas, enfrentando os principais desafios sociais do país, é evidência da possibilidade de uma ação nacional coletiva, multipartidária e de longo prazo no sentido de desenvolver o tecido ético de nossa sociedade.
Somente com a transformação concomitante de pessoas e instituições da sociedade é que a visão de um país livre da corrupção será alcançada. Esperamos que o próximo presidente eleito seja capaz de reconhecer esse fato e lutar sinceramente por essa visão.


Neissan Monadjem, 42, arquiteto e empresário, é vice-presidente do Conselho Deliberativo da Transparência Brasil.



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