São Paulo, terça-feira, 29 de janeiro de 2002

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CLÓVIS ROSSI

A morte dos sobreviventes

SÃO PAULO - Por doloroso que pareça, o assassinato do prefeito Celso Daniel não foi o fundo do poço.
O Brasil caiu um pouco mais quando se espalhou o rumor de que havia uma relação homossexual entre o prefeito e o empresário Sérgio Gomes da Silva. O subtexto claro (e fascistóide, como bem apontou Fernando de Barros e Silva, no sábado) é o seguinte: crime não é a execução de um ser humano, mas o fato de ele ser supostamente homossexual.
Junto com esse tipo de lixo, veio o emaranhado das investigações a respeito de supostas irregularidades cometidas por prestadoras de serviços à Prefeitura de Celso Daniel.
Não há nada de comprovado, nunca o noticiário amarrou o crime às supostas irregularidades, mas ficou flutuando no ar uma nódoa. Se o prefeito fosse um estadista, tal como o designou o governador Geraldo Alckmin, o crime seria mais grave, porque revelaria a vulnerabilidade até de figuras de grande valor.
Mas, se fosse apenas mais um desses políticos cujas ações exalam mau cheiro aos olhos do público, mesmo que não se saiba bem o que ele fez, aí o crime cairia de graduação.
Ficou só faltando perguntar: se o prefeito era agente de maracutaias, por que matá-lo?
Mas, feita essa pergunta, a vítima voltaria a ser apenas vítima, o crime voltaria ao patamar de gravidade anterior e o seu esclarecimento voltaria a ser questão de urgência.
Bem feitas as contas, Celso Daniel foi quem menos mal se saiu nessa história. Morreu uma só vez. Os sobreviventes, ao menos os que ainda conseguem pensar e, por extensão, indignar-se, morrem um pouco a cada dia, sepultados no lixo gerado por uma sociedade levada a um estágio sem igual de selvageria e autofagia pela falência do poder público.
Afinal, gostem ou não os adoradores do mercado, seria o único poder capaz de estabelecer e fazer respeitar regras civilizatórias em um país que se tornou bárbaro.


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