São Paulo, quinta-feira, 29 de abril de 2004

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OTAVIO FRIAS FILHO

Diretas-Já

A campanha das Diretas-Já, da qual se comemoram agora os 20 anos, selou o destino do regime militar (1964-1985). Por meio dela, ficou patente que o repúdio ao governo autoritário alcançava vastas latitudes sociais e geográficas. Uma parcela da base política do regime aderiu à oposição, o que permitiu eleger, oito meses depois, o moderado Tancredo Neves no colégio eleitoral concebido pela própria ditadura.
Foi uma campanha paradoxal, fracassada e vitoriosa ao mesmo tempo. Fracassou porque seu objetivo -restaurar o voto popular para presidente da República- foi derrotado na sessão do Congresso da madrugada de 26 de abril de 84. A população só voltaria a eleger o chefe do Estado na eleição seguinte, a de 89, da qual saiu vitorioso Fernando Collor, que derrotou nas urnas o atual presidente.
O movimento teve êxito, porém, ao apressar a redemocratização, que se arrastava havia dez anos. O primeiro sinal de protesto popular ocorreu nas eleições parlamentares de 74, quando a oposição obteve vitória esmagadora. Recém-instalado, o governo Geisel manobrava uma liberalização controlada que permitisse desafogar pressões sem mudar a natureza do regime. Esse processo desandou no fim do governo seguinte, o de Figueiredo, a partir da mobilização pelas diretas.
Sempre sui generis, o Brasil não encerrou sua última ditadura por meio de um golpe militar (como ocorreu em Portugal) nem em resultado de manifestações que depusessem o governo (como aconteceu nos países do Leste Europeu). Embora desgastado, aqui, o regime autoritário manteve sua capacidade operacional até o fim. A transição para a democracia foi fruto de um acordo implícito entre as duas partes, regime e oposição civil.
Pode parecer, à distância, que de repente multidões nas ruas das grandes cidades passaram a exigir seu antigo direito, utilizado pela última vez na eleição de Jânio Quadros, numa espécie de surto coletivo de constitucionalismo. Não é bem assim, a verdadeira razão tinha base material. Basta verificar o crescimento econômico nos anos que antecederam a campanha das diretas: -6,3% (1981), -1,3% (1982) e -5,0 (1983).
Para quem duvida de que crescimento negativo durante dois ou três anos é o que derruba governos, vejam-se os índices que antecederam a deposição legal de Collor: -7,8 (1990), -0,5 (1991) e -2,0 (1992, ano do impeachment). A campanha das diretas foi apenas a síntese de um extenso rol de insatisfações, apresentada de maneira simples e fácil de entender: quem deve eleger quem vai mandar no país é você, cidadão.
A forma pela qual se deu a transição para a democracia permitiu que antigos sócios do regime militar continuassem a compartilhar o poder nos governos seguintes. É o mistério da cordialidade brasileira, que está no DNA do país desde a Independência e aparece, redivivo, tanto tempo depois, na transição de FHC para Lula: civilizada, sim, mas feita de continuidade sob as fanfarras da mudança.


Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.


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