São Paulo, terça-feira, 29 de junho de 2004

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CARLOS HEITOR CONY

O zé-povinho e o povão

RIO DE JANEIRO - Há dois tipos de intelectual: o engajado, que, segundo Joãosinho Trinta, gosta do povo, mas por motivos táticos; e o alienado, que chuta para córner as conveniências ideológicas e, como a Chiquita Bacana da marchinha cantada por Emilinha Borba, "só faz o que manda o seu coração". Eventualmente, a sua razão.
De Carnaval tão antigo passo para as festas juninas, afinal, hoje é Dia de São Pedro, o primo pobre da trindade festeira, mas o cara esperto que fugiu com a filha de João na hora em que a noiva ia para o altar casar-se com Antônio, que caiu na bebedeira, segundo outra marchinha cantada pelo Mário Reis.
A recente festa caipira do Torto foi devidamente esculhambada pelos formadores de opinião, entre os quais nunca me incluo, pela evidente constatação de que nem tenho opinião para dar aos outros nem a mim mesmo. De qualquer forma, nota-se o desprezo comportado, que procura ser politicamente correto, em relação às manifestações da plebe rude -lembro agora aquela delícia do Miguel Gustavo cantada pelo Jorge Veiga: "Enquanto a plebe rude na cidade dorme, eu ando com o Jacinto que é também de Tormes, Teresa e Dolores falam bem de mim, eu sou até citado na coluna do Ibrahim."
Em outros tempos, os intelectuais desprezavam o zé-povinho; hoje, desprezam o povão, esquecidos de que o que conta é o povo, do qual, querendo o não fazem parte, repartindo com a galera a mesma periferia internacional, a mesma concentração de renda, a mesma violência urbana e rural. A mesma preferência nacional pelo bumbum das mulheres.
O desdém pelo zé-povinho e povão expressou-se na música popular, no teatro e na TV, até mesmo no vestuário e na maquiagem, com a dicotomia brega e bacana. Comer em tal restaurante é brega, entupir-se de chope e de batata frita no Bracarense é bacana.
Se Bach fosse vivo, ele não veria diferença entre o Agnaldo Timóteo e o João Gilberto.


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