São Paulo, segunda-feira, 29 de julho de 2002

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CARLOS HEITOR CONY

O termômetro das missões

RIO DE JANEIRO - Na parede principal do refeitório, havia um enorme termômetro indicando as doações que cada turma dava aos missionários da antiga Indochina, terra de infiéis. A cada domingo, o nível do termômetro subia: azul era a turma dos menores, vermelho, a dos médios, amarelo, a dos maiores. Subia também a tensão do seminário inteiro.
As doações eram modestas, mesmo assim, pingávamos alguma moeda no cofrinho ao lado, cada qual com a cor de cada turma.
Certa vez vendi um dicionário latim-português, português-latim a um colega que recebera mesada do pai. Com isso, o vermelho do termômetro subiu pra burro. Passamos duas, três semanas arrotando vitória, mas não adiantou, a turma dos menores tinha um cara que era filho do dono de uma usina em Campos, doou uma baba, o azul superou o vermelho.
O menino rico cresceu, mudou de turma, foi para a dos médios, depois para a dos maiores. O termômetro subiu de acordo com ele, perdeu a graça, foi desativado. Colocaram em seu lugar uma ceia do Senhor desbotada, mas era a ceia de Rubens e o reitor preferiu a tradicional, a de Leonardo da Vinci.
Até que o menino, agora rapaz, foi expulso por comportamento duvidoso e o termômetro, reativado, voltou a seus dias de glória.
Não sei por que, estou lembrando o termômetro das missões. Tantos anos passados, nem me preocupo mais com os missionários da Indochina, que nem mais existe, embora os infiéis continuem fiéis a seus estranhos deuses.
Devem ser as pesquisas eleitorais que a mídia publica, dia sim, dia não, fazendo Ciro crescer, Serra baixar, Lula voltar ao nível habitual e Garotinho ficar sem doadores.
No fundo, a parada será decidida por um filho de usineiro ou filho de outra coisa, até que ele seja expulso da coletividade por comportamento duvidoso.


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