São Paulo, quarta-feira, 29 de dezembro de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES

Chico e a nossa quimera

SÃO PAULO - Chico Buarque é filho de um tempo em que o Brasil, no ponto de inflexão entre a sociedade rural e urbana, teceu uma utopia de nação moderna da qual a cultura -e não a política- é a testemunha sobrevivente. Pois foi apenas no plano das representações -na música, no cinema, na poesia, no design, no teatro, nas artes plásticas- que esse belo país imaginário se materializou.
O projeto moderno brasileiro, que teve seus alicerces lançados por Getúlio Vargas e se desdobrou nas obras do desenvolvimentismo e nas fantasias do nacional-popular, não se completou na realidade social.
A idéia de que a grande cidade e a industrialização absorveriam as massas e dariam impulso a uma transformação social criativa, cujas energias movimentariam na periferia tropical uma sociedade vigorosa, original, inteligente e menos injusta revelou-se a grande quimera de nosso século 20.
A incompletude do projeto moderno apenas aprofundou-se nas últimas décadas, dando lugar àquilo que o economista Edmar Bacha, lá pelos anos 70, chamou de Belíndia: um pequeno país rico e integrado, como uma espécie de Bélgica, convivendo com uma enorme massa de despossuídos, como uma Índia.
Na entrevista que concedeu a Fernando de Barros, publicada no domingo, Chico Buarque manifesta um mal-estar que não é apenas dele. A convivência entre esses dois países -e mesmo no interior de cada um deles- tornou-se crítica. A sociabilidade amena e abrangente que animava o espírito do Brasil bossa nova foi substituída por uma outra, tensa e violenta, no país do rap, das periferias, dos morros, do bangue-bangue e dos automóveis blindados que valem um apartamento.
Chico mencionou a presença entre nós de um "sentimento difuso quase a favor do apartheid social". O "quase" da frase talvez seja o resto de esperança que ainda tenta se equilibrar num fio que se estende sobre as ruínas daquele país sonhado.

Texto Anterior: Editoriais: REVIRAVOLTA NA UCRÂNIA

Próximo Texto: Brasília - Fernando Rodrigues: Pensar e chutar
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.