São Paulo, quinta-feira, 30 de maio de 2002

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CARLOS HEITOR CONY

Mundo perdido

RIO DE JANEIRO - O dono da farmácia fechava a última porta da "Drogaria de Todos" quando chegou o menino, esbaforido, pedindo uma camisinha pelo amor de Deus.
O homem estranhou. Que diabo, não iria abrir sua farmácia para compra tão insignificante. Além do mais, o produto podia ser comprado em qualquer parte, nas bancas de jornais, nas lanchonetes, nos postos de gasolina, nas barraquinhas de camelô. Até mesmo naquele templo evangélico, quase em frente à farmácia, onde nem seria preciso comprar, bastaria apertar um botãozinho na porta lateral e a camisinha cairia, grátis, na mão do necessitado.
Além disso, o dono da farmácia achou um desaforo. Onde se viu um pirralho, de, no máximo, dez ou 11 anos, esbaforido, querendo camisinha? Seria para ele? Ou pior, seria para um parceiro adulto, a pedofilia andava em alta, o mundo estava perdido.
Pensando nisso, o dono decidiu abrir a farmácia, foi lá na estante, apanhou a camisinha, recusou a nota com que o menino queria pagá-la. Disse que não custava nada, mas que o menino tomasse vergonha, desse queixa na polícia.
""Não é para mim", explicou o menino. ""É para o meu pai."
O garoto saiu correndo e o dono da farmácia ficou sem entender nada. Deveria ter cobrado pela camisinha, afinal, era para um marmanjo, pai do guri. Tentou imaginar a cena, o homem querendo possuir a mulher, mas sem o risco de aumentar a prole. Ou pior: o sacana estaria com outra mulher, uma parceira circunstancial, pedira ao filho para quebrar o galho, evitando assim que tivesse um pai contaminado.
Em qualquer das hipóteses, ele deveria ter cobrado pela camisinha. Fechou a farmácia. Sim, o mundo estava perdido. Atravessou a rua, passou pelo templo evangélico. Apertou o botãozinho, a camisinha caiu-lhe na mão. Amanhã reporia o estoque de sua farmácia.


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