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CARLOS HEITOR CONY
Mundo perdido
RIO DE JANEIRO - O dono da farmácia fechava a última porta da "Drogaria de Todos" quando chegou o
menino, esbaforido, pedindo uma camisinha pelo amor de Deus.
O homem estranhou. Que diabo,
não iria abrir sua farmácia para
compra tão insignificante. Além do
mais, o produto podia ser comprado
em qualquer parte, nas bancas de
jornais, nas lanchonetes, nos postos
de gasolina, nas barraquinhas de camelô. Até mesmo naquele templo
evangélico, quase em frente à farmácia, onde nem seria preciso comprar,
bastaria apertar um botãozinho na
porta lateral e a camisinha cairia,
grátis, na mão do necessitado.
Além disso, o dono da farmácia
achou um desaforo. Onde se viu um
pirralho, de, no máximo, dez ou 11
anos, esbaforido, querendo camisinha? Seria para ele? Ou pior, seria para um parceiro adulto, a pedofilia
andava em alta, o mundo estava perdido.
Pensando nisso, o dono decidiu
abrir a farmácia, foi lá na estante,
apanhou a camisinha, recusou a nota com que o menino queria pagá-la.
Disse que não custava nada, mas que
o menino tomasse vergonha, desse
queixa na polícia.
""Não é para mim", explicou o menino. ""É para o meu pai."
O garoto saiu correndo e o dono da
farmácia ficou sem entender nada.
Deveria ter cobrado pela camisinha,
afinal, era para um marmanjo, pai
do guri. Tentou imaginar a cena, o
homem querendo possuir a mulher,
mas sem o risco de aumentar a prole.
Ou pior: o sacana estaria com outra
mulher, uma parceira circunstancial,
pedira ao filho para quebrar o galho,
evitando assim que tivesse um pai
contaminado.
Em qualquer das hipóteses, ele deveria ter cobrado pela camisinha. Fechou a farmácia. Sim, o mundo estava perdido. Atravessou a rua, passou
pelo templo evangélico. Apertou o
botãozinho, a camisinha caiu-lhe na
mão. Amanhã reporia o estoque de
sua farmácia.
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