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São Paulo, sexta-feira, 30 de maio de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Lula e a pena de morte

WÁLTER FANGANIELLO MAIEROVITCH

O cenário foi preparado para indignar o presidente Lula da Silva. Os monitores operados por membros fardados da Aeronáutica mostravam o nosso espaço aéreo e, pelo comentado, ouviu-se a reação debochada de pilotos de pequenas aeronaves, que se recusavam a dar informações e a cumprir ordens para aterrissagem.
Isso tudo recebeu acompanhamento da produção do "Jornal Nacional" e os espectadores, à noite, puderam perceber a reação infeliz do nosso presidente da República. Por coincidência, no mesmo dia do seu polêmico discurso sobre a "caixa-preta" do Judiciário.
Em tempos de massacres de civis no Iraque e da volta aos paredões cubanos tingidos pelo sangue da intolerância, Lula acabou também concordando, no Brasil, com a introdução da pena de morte, mediante execução sumária.
Aderiu à americana "War on Drugs". Ou seja, à desumana, oportunista e burra estratégia militar norte-americana imposta à América Latina. A que exibe o rótulo de "abate de aeronaves" hostis e suspeitas de estarem a serviço do tráfico de drogas. Comprometeu-se Lula a regulamentar a lei brasileira sobre o "abate" de aviões com pilotos e tripulantes.
A Lula não foram lembradas as duas bárbaras execuções sumárias ocorridas no triste 20 de abril de 2001. As vítimas, a mãe de 35 anos e a filha de 7 meses, eram norte-americanas. Ambas viajavam num pequeno avião Cessna, conduzido por um piloto sem nenhuma ligação com o tráfico de drogas, que, metralhado nas pernas, conseguiu aterrar.
A assassinada Roni Bowers era missionária batista e, junto com o marido, Jim Bowers, que saiu ileso, trabalhava no Peru desde 1993. O covarde ataque aéreo partiu dos ocupantes de um caça da Força Aérea Peruana, orientado por informações de radar transmitidas pelas bases norte-americanas. Nesse episódio, militares dos EUA e do Peru enganaram-se ao imaginar que o Cessna transportava cocaína.
Na mencionada política da "War on Drugs", voltada a atender interesses hegemônicos, estratégicos e econômicos, o governo norte-americano conseguiu impor no Peru, na Colômbia, na Bolívia, no Equador e no Brasil uma inusitada legislação. Ela prevê a destruição de aeronaves em pleno vôo, em razão da suspeita de estarem a serviço do tráfico.


Os narcotraficantes recomendam aos pilotos que transportem passageiros inocentes junto com as drogas


As informações sobre as navegações aéreas suspeitas provêm das bases norte-americanas localizadas em Key West (Flórida), Aruba (Caribe), Iquitos (Peru), Manta (Equador) e Curaçao (Antilhas). Como regra, os aviões dos EUA acompanham os jatos militares dos países onde há suspeitas; ou seja, a destruição é orientada e fiscalizada.
As autoridades peruanas, ao tempo da ditadura de Fujimori e por ocasião dos encontros internacionais realizados pela ONU em Viena (1999-2000), contavam com júbilo a derrubada, sem nunca revelar o número de vítimas fatais, de mais de 30 aeronaves. Depois do episódio da missionária e do seu bebê, começou-se a falar na destruição da aeronave em terra, depois do desembarque dos suspeitos. No fundo, essa solução militarizada introduziu uma forma de pena de morte. Parodiando Nelson Rodrigues, até os céus sabem que um avião tem tempo limitado de vôo, pois o combustível acaba. Portanto basta seguir o aparelho e, mediante acordos de cooperação bilateral, avisar as polícias.
O piloto, a propósito, poderá se transformar em colaborador da Justiça e realizar a delação premiada com abatimento da pena, além de informar o modo de operação da organização criminosa a que serviu. E a aeronave, apreendida no solo, poderá ser vendida, em benefício do país que teve o espaço aéreo violado.
Por evidente, o grande traficante jamais estará ao lado do piloto contratado, que é uma espécie de "mula" com brevê e avião. Pelo que se sabe, os narcotraficantes recomendam aos pilotos que transportem passageiros inocentes e crianças juntamente com as drogas ou com os insumos químicos para refino.
Os norte-americanos, é importante frisar, são os fabricantes e os maiores vendedores dos pequenos aviões e hidroaviões utilizados no tráfico de drogas. As vendas, inclusive no Brasil, são realizadas por meio de negócios fiduciários. Ou seja, os aviões são financiados. A propósito, nenhum controle é realizado nas vendas e revendas. Pela lógica do mercado, uma aeronave abatida implicará a compra imediata de outra. No Brasil, diante da lei de mercados de capitais, garante-se às financeiras a devolução de aeronaves não quitadas, apreendidas com drogas.
A nossa Aeronáutica, por falta de recursos, raramente emite certificação às pistas que servem a pequenos aviões. Por isso, a maioria das pistas existentes no Brasil é clandestina.
Por último, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso manteve firme posição de não regulamentar essa legislação, que introduz uma forma de pena de morte sumária e passa a falsa idéia do abate de aeronaves, e não de pessoas.

Wálter Fanganiello Maierovitch, 55, juiz aposentado do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, é presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais Giovanne Falcone. Foi secretário nacional Antidrogas da Presidência da República (1999-2000).


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