São Paulo, quarta-feira, 30 de junho de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Direitos humanos e sociedade civil

HÉLIO BICUDO, PAULO DE MESQUITA NETO e GUILHERME A. DE ALMEIDA

De ontem ao dia 2 de julho, as entidades governamentais e não-governamentais de direitos humanos realizam a 9ª Conferência Nacional de Direitos Humanos, promovida pela Secretaria Especial de Direitos Humanos e pelo Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH), que terá como tema exclusivo a construção de um Sistema Nacional de Direitos Humanos (SNDH).
Segundo o regimento do encontro, a conferência terá caráter deliberativo. A organização do encontro tem sua inspiração no modelo adotado para as convenções dos partidos políticos. Uma conferência não deve legislar, nem impor, mas recomendar e trabalhar para que suas recomendações sejam levadas em consideração. Nesse sentido, as últimas conferências nacionais, dentro de um marco democrático e participativo, tiveram caráter deliberativo. O que literalmente significa que "tomaram uma decisão após uma consulta". Deduzimos, na falta de maior clareza, que os organizadores da 9ª conferência querem não apenas que ela tenha caráter deliberativo, mas que as decisões dela tenham caráter de norma vinculante na perspectiva de implementação do SNDH.
A partir de um texto-base, intitulado "Construindo o Sistema Nacional de Direitos Humanos", discute-se e vota-se um organismo de extensão nacional, incumbido de racionalizar e monitorar as atuações da sociedade civil em matéria de direitos humanos. Neste pequeno espaço, apresentamos a nossa principal crítica: o SNDH tem o Estado como agente central e principal de proteção e promoção dos direitos humanos.


É hora de construirmos uma instituição nacional de direitos humanos com autonomia em relação ao poder público


O Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana e, depois, a Secretaria Especial de Direitos Humanos foram iniciativas importantes. Mas esses órgãos têm sua ação limitada pelos interesses do Estado, tanto no campo administrativo, como, e sobretudo, no campo político. Já é tempo de criarmos um órgão com autonomia diante do poder estatal (mandato certo aos seus responsáveis), provendo-o de estrutura e de meios orçamentários adequados à sua atividade. Já é hora de construirmos uma instituição nacional de direitos humanos, dotada de mandato amplo, com previsão orçamentária e, um requisito fundamental, com independência e autonomia em relação ao poder público.
As instituições nacionais têm caráter consultivo, não integram o Poder Judiciário nem o Poder Legislativo. Podem ter uma ligação com o Executivo, mas são independentes dele. A estrutura e o funcionamento das instituições nacionais de direitos humanos são reguladas pelos "Princípios de Paris" (para a consulta ao texto completo dos princípios, em português, consulte www.ctvdh.org). Esse documento, aprovado pela Assembléia Geral das Nações Unidas, por meio da resolução 48/134, de 20/ 12/93, oferece parâmetros mínimos para a criação e o funcionamento de instituições nacionais de direitos humanos. No Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos está a sede do Comitê Internacional de Coordenação das Instituições Nacionais de Direitos Humanos.
Desconsiderando o conhecimento e a prática do Alto Comissariado, a 9ª Conferência propõe a criação do Sistema Nacional de Direitos Humanos, que de modo nenhum segue os "Princípios de Paris". Basta ler a proposta do SNDH e cotejá-la com o texto dos princípios.
A proposta transforma a natureza das conferências e dos conselhos de direitos humanos, atribuindo a eles o papel de órgãos centrais de um sistema estatal de direitos humanos. Na prática, a proposta transforma as conferências e os conselhos em órgãos de governo aos quais seriam integradas, de modo coadjuvante, as organizações da sociedade civil. Produz uma confusão de papéis, atribuindo responsabilidades que são da sociedade civil ao Estado e responsabilidades que são do Estado à sociedade civil. Com a intenção de fortalecer, desvirtua e enfraquece o sistema de proteção dos direitos humanos constituído "de fato" no país.
Não podemos ter dúvidas: o Estado é o maior violador de direitos humanos. Como garantiremos a proteção dos direitos humanos, se entregarmos ao Estado o monitoramento das violações dos direitos humanos?
A fim de oferecermos uma alternativa concreta ao SNDH, o governo municipal apoiará a sociedade civil paulistana no estabelecimento da inédita experiência-piloto de uma Instituição Municipal de Direitos Humanos. Nunca é demais ressaltar que a instituição municipal seguirá os "Princípios de Paris". Pedimos o monitoramento da sociedade civil para que assim o seja.

Hélio Bicudo, 81, advogado e jornalista, presidente da Comissão Municipal de Direitos Humanos e da Fundação Interamericana de Defesa dos Direitos Humanos, é vice-prefeito do município de São Paulo. Paulo de Mesquita Neto, 42, doutor em ciência política pela Universidade de Columbia (EUA), é pesquisador sênior do Núcleo de Estudos da Violência da USP. Guilherme Assis de Almeida, 39, doutor em direito pela USP, é pesquisador sênior do Núcleo de Estudos da Violência da USP.


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