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São Paulo, sábado, 30 de agosto de 2003

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CARLOS HEITOR CONY

Questões de família

RIO DE JANEIRO - Em conversa com amigos franceses, fui questionado sobre minhas origens genealógicas e eles ficaram pasmos quando informei que nunca me preocupara em conhecer os ancestrais mais remotos. E que, em linhas gerais, os brasileiros, pela própria formação complicadíssima do seu povo, raramente são chegados a esse tipo de pesquisa.
Fiquei sabendo que, pelo menos na França, a mania, além de antiga, quase tradicional, entrou em moda, todo mundo querendo saber nomes e circunstâncias daquilo que feia palavra em português chama de "avoengos".
Um dos amigos disse que já chegou a seus antepassados em vigor durante a Revolução Francesa, que já tem mais de 200 anos. Aí quem ficou pasmo fui eu. Naquele pega-pra-capar do Terror, cabeças coroadas rolando, o Estado fora do ar, como fora possível o registro civil continuar funcionando rotineiramente, registrando nascimentos, casamentos e óbitos? Os grandes romancistas do século 19, Balzac, Stendhal, Flaubert, Zola, o próprio Marcel Proust que pertence ao século seguinte, eram meticulosos na genealogia de seus personagens, mas, em geral, a trama e o cenário que invocavam eram posteriores às façanhas revolucionárias que mudaram a França e o mundo.
Mesmo durante o Terror, com a guilhotina cortando o pescoço de Deus e do Diabo, o Estado como animal burocrático continuou funcionando normalmente. O mesmo acontecendo durante a ocupação nazista, na 2ª Guerra Mundial.
Conheço alguns países em que basta um evento qualquer, uma Copa do Mundo, um Carnaval, um temporal mais forte em São Paulo ou no Rio, e a máquina oficial é paralisada -se dependesse da estrutura do Estado, nem o sol nasceria. Esta seria, talvez, a explicação para o desinteresse dos brasileiros em fuçar o passado. E aqueles que de alguma forma tentam a proeza sabem que vão acabar na cozinha ou na senzala -o que não desonra ninguém.


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