São Paulo, sexta-feira, 31 de março de 2000


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O verdadeiro julgado


Quem estará no banco dos réus no fórum capixaba é a luta dos sem-terra por reforma agrária


FREI BETTO

José Rainha, dirigente do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), volta segunda-feira ao banco dos réus, em Vitória. É acusado de co-autoria de duplo homicídio, devido a conflito fundiário em Pedro Canário (ES), em 5/6/89. Foram assassinados o fazendeiro José Machado Neto e o policial Sérgio Narciso da Silva.
Há provas de que, na época, Rainha se encontrava em Quixeramobim, a 400 km de Fortaleza. No dia do crime, o padre Pedro Paulo Cavalcanti registrou a presença de Rainha na fazenda Reunidos de São Joaquim, em Madalena (CE). No arquivo da Casa Militar do governo cearense há uma foto na qual Rainha aparece dialogando com o governador Tasso Jereissati.
Julgado pela primeira vez em junho de 1997, em Pedro Canário, Rainha foi condenado a 26 anos e 6 meses de prisão. Todos que presenciaram o julgamento são testemunhas de como os fazendeiros locais pressionaram os jurados. Agora, a defesa trará do Ceará o comandante da Polícia Militar, um padre, um deputado estadual e três vereadores como testemunhas.
Rainha é filho de sem-terra. Nasceu em 1960, na cidade capixaba de São Gabriel da Palha. Obrigado a pegar na enxada desde os 7 anos, nunca frequentou a escola. Inteligente, aprendeu a ler e a escrever por esforço próprio. Em 1974, fui morar no Espírito Santo, onde ajudei a organizar as Comunidades Eclesiais de Base. A 17/2/78, estive em Linhares, onde dei curso sobre pastoral social a um grupo de agricultores. Um dos alunos era José Rainha. Pela primeira vez participava de uma atividade da Igreja Católica. Logo destacou-se como um dos líderes das CEBs.
Mais tarde, tirou das mãos dos pelegos o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Linhares. Participou da fundação da CUT e do PT capixabas. Em janeiro de 1985, ajudou a fundar o MST, cuja direção integra ainda hoje.
Desde 1991, Rainha mora no Pontal do Paranapanema. Todos que o conhecem admiram sua integridade ética e moral, e não são poucos os fazendeiros e políticos paulistas que têm manifestado admiração pelo modo ponderado como ele conduz as negociações em conflitos fundiários.
De fato, quem estará no banco dos réus no fórum capixaba é a luta dos sem-terra por reforma agrária. Nenhum governo brasileiro jamais enfrentou a questão com ousadia e justiça. Da Lei de Terras de 1850, passando pelo Estatuto da Terra da ditadura, aos assentamentos do governo FHC, o que temos é uma empulhação que não reduz o avanço do latifúndio. Basta lembrar que 1% dos proprietários rurais são donos de 44% das terras produtivas do país. Ou seja, cerca de 40 mil proprietários controlam mais de 400 milhões de hectares.
Enquanto FHC assenta umas poucas famílias, 400 mil agricultores foram jogados na estrada, nos últimos cinco anos, por extorsão dos juros bancários, construção de barragens e expansão das grandes propriedades. Menos de 20% dos recursos do crédito rural são distribuídos entre 513 mil pequenos proprietários. E 4.000 grandes latifundiários são premiados com 60% do montante do crédito oferecido.
Os EUA democratizaram o acesso à terra em 1862. Na Europa, 18 países fizeram a reforma agrária após a Primeira Guerra. Depois, na Segunda Guerra, ela chegou ao sul da Itália, ao Japão, à Coréia e à China.
No Brasil, a terra é marcada por vastas extensões improdutivas e muitas cruzes. Entraremos no terceiro milênio com 4,8 milhões de famílias sem terra. Desde 1985, foram assassinados 1.167 trabalhadores rurais. Corumbiara e Eldorado do Carajás estão impunes. No Paraná, é instituído o terror no campo.
O fazendeiro Jerônimo Alves de Amorim, acusado de ser o mandante do assassinato do sindicalista Expedito Ribeiro de Souza, em Rio Maria (PA), em fevereiro de 1991, foragido por quatro anos, foi capturado no México em novembro de 1999. Está preso e até hoje não foi a julgamento. Há 10 milhões de nordestinos condenados à miséria pela seca e por descaso do governo.
Quem sabe no Carnaval de 2050 haja carros alegóricos com símbolos do MST, como há pouco vimos indígenas, Zumbi, Obá, vítimas da ditadura e tantos outros que deram a vida para que o Brasil torne-se uma nação justa e livre?
Contudo a fome não pode esperar. É inútil a Justiça fechar os olhos e pretender condenar a esperança de milhares de sem-terra que resistem ao espectro de, nas cidades, ser tragados pelas favelas, pelas ruas, pelo desemprego e pela violência. A questão social no Brasil não é caso de polícia. É caso de política.


Carlos Alberto Libânio Christo (frei Betto), 55, frade dominicano e escritor, é assessor de movimentos pastorais e sociais e autor de "Sinfonia Universal a Cosmovisão de Teilhard de Chardin" (Ática), entre outros livros.



Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES
Rudiger Dornbusch: A nova economia chega à Europa

Próximo Texto: Painel do leitor
Índice

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.