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TENDÊNCIAS/DEBATES
Erros de uma segunda abolição
MARCIO POCHMANN
Em artigo recente nesta Folha
("Sobre a infância", 15/5/02, pág.
A3), o ministro da Educação, Paulo Renato Souza, enumerou alguns indicadores sociais, relacionados às crianças, que
apresentaram melhoria, tais como elevação do acesso escolar e redução da
mortalidade e do trabalho infantil, entre
outros que ele apresentara em reunião
da ONU. Afora a importância dessas
constatações, bastante comentadas
após a divulgação do Censo Demográfico de 2000, preocupa-nos a maneira como vem sendo festejada tal conquista.
Não se trata de desmerecer tais melhorias, mas de vê-las como passos incompletos de nosso precário desenvolvimento social, muito atrasado em relação aos países avançados, principalmente quando consideramos que a nossa expansão econômica foi muito rápida, sobretudo entre 1930 e 80. Devemos
estar atentos ao auto-engano, para não
cometermos os mesmos erros de um
passado não muito distante, em que,
por exemplo, festejou-se a abolição da
escravatura -instituição que marca
nossa sociedade até hoje.
A libertação dos escravos foi proclamada sem que se criassem, simultaneamente, as condições adequadas para a
incorporação do negro à sociedade brasileira, com seu acesso pleno ao mercado de trabalho. Com isso, a população
negra foi excluída da cidadania. E também da mobilidade social, posto que a
manutenção do predomínio de uma visão conservadora levou ao desemprego
e à subocupação dos negros, com o inchamento do nascente mercado de trabalho brasileiro, conduzido pela desordenada imigração de brancos europeus
e pela ausência de reformas estruturais.
Os impactos negativos dos equívocos
da primeira abolição teimam em permanecer ainda na dinâmica atual do
mercado de trabalho, refletidos nos menores rendimentos e nos postos de trabalho mais precários dos negros em relação aos trabalhadores brancos.
Nesses termos, constata-se, em retrospectiva, que a superação da escravidão
foi um passo fundamental e, por mais
que tenha sido comemorada, verifica-se
que sua formalização não foi suficiente
para efetivar a transformação do escravo em cidadão.
Nos dias de hoje, a universalização da
educação com qualidade pode equivaler à promoção de uma segunda abolição, especialmente no que diz respeito
ao estágio de exclusão em que se encontram parcelas de brasileiros iletrados.
Contudo a massificação do acesso ao
ensino e a elevação da escolaridade têm
sido defendidas pelo governo como a
fórmula mágica pela qual o país superaria seus problemas de competitividade.
Segundo essa fórmula, o desempregado
conquistaria o seu emprego e a sociedade seria menos desigual e mais justa.
Deve-se ter em mente que, apesar de
fundamental, a educação por si só é incapaz de resolver todos os nossos problemas. Além do mais, avanços quantitativos no acesso escolar não significam,
necessariamente, uma elevação na qualidade educacional. Os resultados divulgados a respeito da compreensão de
textos escritos e da avaliação de conteúdo dos estudantes brasileiros comparados com os de outras nações revelam a
baixa qualidade do ensino. A ampliação
da cobertura educacional pode favorecer a posição do Brasil nos indicadores
internacionais, mas não garante a evolução do bem-estar e da cidadania.
Sem deixarmos de reconhecer os avanços alcançados, não podemos deixar de olhar para os indicadores do atraso
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Sinal disso pode ser encontrado na situação atual de nossos jovens, vítimas
de uma tragédia escandalosa. Do total
de 11,4 milhões de desempregados no
ano 2000, 49,9% possuíam menos de 25
anos de idade. Para parcela significativa
dos filhos das famílias pobres, a ampliação do acesso ao ensino fundamental
pouco pode promover a mobilidade social necessária, se a ocupação permanece escassa e o mercado de trabalho ainda mais discriminatório.
Um dos resultados desse não-acesso à
ocupação e da ausência de perspectivas
de inclusão redundam no crescimento
da violência.
Já para significativa parcela dos jovens
filhos de famílias ricas, o avanço educacional oferece, como uma das poucas alternativas, a emigração. Assim, a mão-de-obra jovem mais qualificada tem,
como possibilidade de realização pessoal, a vida fora do país. Somente na década de 90, cerca de 1,35 milhão de jovens abandonaram o país em busca do
que aqui não encontram: trabalho decente. Ou seja, formam-se cada vez mais
jovens pelo acesso ao ensino, porém a
mobilidade social e a condição de cidadania não existem para todos.
Justamente o Brasil, que, no fim do século 19, rompeu com o trabalho escravo
e estimulou a vinda de imigrantes europeus para substituir nas lavouras o negro liberto, agora se transformou em
nação que exporta os jovens com mais
elevados níveis educacionais. Sem deixarmos de reconhecer os avanços alcançados, não podemos deixar de olhar para aqueles indicadores do atraso, que resultam dos erros da segunda abolição.
Chegou o momento de darmos um
passo adiante e tomarmos as decisões
necessárias para enfrentarmos nossas
mazelas por meio de condições integradas de inclusão cidadã. Para isso, todavia, o atual modelo econômico revela-se
um entrave intransponível.
Marcio Pochmann, 40, economista, professor licenciado do Instituto de Economia da Unicamp, é
secretário do Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade da Prefeitura de São Paulo.
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