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CARLOS HEITOR CONY
Caras e caras
RIO DE JANEIRO - Por natureza e gosto, sou um assustado. Deve ser um
desvio masoquista, uma herança
abominável que cultivo desde criança, eu era completamente mudo até
aos cinco anos, e foi o susto de ver o
avião do Melo Maluco pousando na
praia de Icaraí que me fez dizer as
primeiras palavras, que não chegaram a ser palavras, mas um grito de
espanto.
Daí que me assusto à toa e com coisas que não assustam os outros. Abro
os jornais e vejo o poeta Alberto da
Costa e Silva, presidente da Academia Brasileira de Letras, regendo
uma orquestra. Como? Que eu saiba,
ele é poeta, entende de coisas africanas, foi embaixador por lá e em Lisboa, como se atreve a reger uma sinfônica?
Olho bem a foto e descubro que não
é o Alberto, mas o maestro Kurt Masur. Se fossem gêmeos, não seriam tão
parecidos. Outro dia, vi um sujeito
magro e descabelado criando caso no
trânsito, um ônibus quase o pegou
pelas costas, ouvi impropérios, ameaças de tiro e louvei a coragem do Ferreira Gullar. Corri para prestar solidariedade, mas, quando cheguei perto, descobri que não era o Gullar, mas
um sujeito igualzinho a ele e, como
ele, parecido com a tia de si mesmo.
Já fui vítima também desse susto.
Telefonaram-me dizendo que um suplemento literário publicara foto minha num texto intitulado: "Escritor
seduzia jovens alunas". Mando buscar o jornal, procuro, procuro e nada
vejo que me desabone de tal forma.
Um segundo telefonema insiste: estou nas folhas, acusado de seduzir infantas. Volto ao jornal com mais cuidado e descubro a foto do filósofo
Martin Heidegger, que teve o mau
gosto antecipado de ter a minha cara.
Para tirar a dúvida, mostro a foto
ao porteiro do prédio, ao rapaz que
vem me trazer uma encomenda, à
moça que vem fazer a faxina do
apartamento vizinho. Todos concordam que sou eu. E não os assusto.
Acham tudo natural. Sou eu que fico
assustado.
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