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São Paulo, quinta-feira, 31 de julho de 2003

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OTAVIO FRIAS FILHO

Lei e ordem

Era mais do que esperado que o advento do governo Lula excitasse demandas sociais. Num país com disparidades e carências tão profundas, a instalação de um governo de origem popular desataria reivindicações, insufladas pela conquista do Planalto e empenhadas em pressionar o governo no rumo de seus interesses. É o que começa a acontecer.
O governo sofre assédio por dois lados. Setores tradicionais, como o funcionalismo e o Judiciário, mobilizam-se para não perder direitos ou privilégios, conforme o caso, ameaçados pela reforma que o governo quer implantar. Setores excluídos, como os sem-terra e os sem-teto, agem com desenvoltura crescente e colocam as autoridades contra a parede.
O governo Lula tem toda a razão em preocupar-se com sua autoridade legal. Um governo pode ser de direita ou de esquerda, pode ser bem-visto ou malvisto, pode sofrer críticas de intensidade muito maior do que a que se verifica hoje. Só não pode deixar de assegurar a lei e a ordem, sob pena de fomentar a luta de todos contra todos até vir a ser derrubado.
Muito mais do que eventualmente desagradar aos mercados, é este o limite que o governo Lula não pode ultrapassar. Enquanto se mantiver fiel, por palavras e gestos, à sua primeira obrigação -impor o respeito à lei e garantir a ordem pública-, seus críticos, mesmo discordando dos rumos adotados, não poderão questionar a existência de um governo legal e democraticamente constituído, como é o caso deste.
A República de Weimar, que antecedeu o pesadelo nazista na Alemanha, ficará para sempre como exemplo de regime democrático que ruiu por ter cometido o único erro imperdoável em qualquer governo: permitir que a sociedade retroceda ao estado de natureza, em que cada grupo tenta impor seu interesse pela força e pela intimidação exercida contra os demais.
Não foi outra a razão que produziu, na história doméstica, a deposição do governo João Goulart (1961-1964). A situação atual é muito diversa, felizmente, da que vigia naquela época. Desapareceu o maniqueísmo que dividia a política mundial em duas facções em guerra. A sociedade se tornou mais complexa e plural, a cultura democrática está mais enraizada.
Existe hoje exagero retórico, alarmismo interessado? Sem dúvida. Existe ameaça à ordem pública? Sim, embora de maneira ainda pontual e circunscrita. A responsabilidade pela manutenção da ordem é dos Estados, que só devem recorrer à União quando incapazes de assegurá-la. É o que tem permitido ao governo manter-se a distância dessas crises localizadas.
Uma administração com origens na esquerda não pode se voltar contra reivindicações sociais. Terá de negociar com elas, atendendo-as em parte, na tentativa de esvaziá-las e mantê-las no leito legal. Mas, se o dique da legalidade um dia estiver prestes a se romper, será preciso reprimir duramente, em nome da democracia e da sobrevivência do próprio governo.


Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.


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