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São Paulo, quinta-feira, 31 de julho de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

"Contribuição" quer dizer "mãos ao alto"

JORGE BORNHAUSEN

A questão da penúria atual dos municípios -que atinge os cidadãos, porque ninguém mora na União nem nos Estados, pois as ruas e os serviços essenciais são municipais- nasce de um ato de violência tributária que tem todas as características de um assalto. De tal forma que, para descrevê-lo, fica perfeita a cena ritual dos filmes de faroeste, que romantizavam a violência.
Ou seja, quando o governo federal saca a palavra "contribuição" para carimbar tributos federais, é como se, sacando um revólver, anunciasse aos municípios brasileiros: "Mãos ao alto!". E, ato contínuo, tomasse-lhes recursos que, constitucionalmente, deveriam lhes pertencer.
Mas, assim como os assaltos propriamente ditos já se incorporaram à vida cotidiana dos cidadãos brasileiros e os bandidos nem nos filmes dizem mais "mãos ao alto" (quando não atiram perversamente antes, dispensam qualquer rito), a tecnocracia federal usa e abusa do confisco das verbas municipais sem aviso ou discussão.
A forma é simples: como a Constituição determina que uma parte de todos os impostos (e só fala de impostos) recolhidos pela União seja dividida com os Estados e os municípios, o governo federal passou a criar (e aumentar a arrecadação) de "contribuições", que não são divididas com os Estados e Municípios.
Ora, as tais "contribuições" têm tudo de imposto: parecem impostos, são coercitivas, universais, têm cara, corpo e espírito de impostos, mas, como são denominadas "contribuições", não entram na partilha de que participam os municípios.
O uso do artifício semântico, que teve seu momento mais alto e cínico com a instituição do Cofins, claramente destinado a resolver um problema de caixa do Tesouro, tornou-se um desses jeitinhos brasileiros que, naturalmente beneficiados por uma tipificação jurídica evidentemente fraudada, institucionalizaram-se.
Tecnicamente, são como as medidas provisórias, instituídas em nome da governabilidade (para instrumentalizar o Poder Executivo em face de emergências institucionais) e que se tornaram uma aberração no nosso sistema constitucional, aplicadas de forma abusiva e indisciplinada por todos os presidentes da República, mesmo os que as condenaram mais fortemente, como o atual.


A tecnocracia federal usa e abusa do confisco das verbas municipais sem aviso ou discussão


O uso e abuso das "contribuições" é tão forte que em 1988 elas compreendiam apenas 25% da arrecadação federal, contra 75% de impostos. Hoje, os impostos representam apenas 45% da arrecadação federal, enquanto as "contribuições" subiram para 55%. Significa que a União partilha com os municípios apenas 45% da sua receita.
Ora, como os municípios sofrem os impactos inflacionários e o crescimento das suas despesas dá-se, no mínimo, em proporção igual ao que sofre o Tesouro Nacional, as quotas de participação que lhe são creditadas pela União caem, proporcionalmente, a cada momento.
Só há um jeito de acabar com essa burla cínica ao espírito da Constituição e promover a participação efetiva dos municípios na receita tributária da União: impedir o uso indevido do conceito de contribuição e decretar que as contribuições, a partir de agora, sejam denominadas "impostos". E que todas as receitas tributárias da União formem um único bolo e os Estados e municípios participem do seu rateio.
O momento para promover essa correção de rumos e botar a boca no trombone contra essa desfaçatez da prática fiscal é a reforma tributária, em tramitação no Congresso Nacional -a proposta de emenda constitucional nš 41.
A bancada do PFL na Câmara dos Deputados já apresentou uma emenda ao projeto do governo que, atendendo às exigências técnicas textuais, propõe pura e simplesmente o seguinte: os cálculos dos fundos de participação dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios serão feitos a partir do "produto da arrecadação dos impostos e contribuições administrados pela Secretaria da Receita Federal". Basta essa alteração sutil do artigo 159 da Constituição, associando "impostos e contribuições" onde antes só havia a palavra "impostos", e elimina-se a injustiça.
É impressionante como a burocracia joga com os conceitos jurídicos e como o legislador fica à margem dessas manobras ardilosas embutidas nas leis que são apresentadas com determinados fins e que, na verdade, não passam de artifícios para encobrir desvios tão graves ao espírito da Constituição. Finalmente, a Constituição é o nosso contrato social, as regras do jogo pelo qual concordamos viver numa sociedade organizada, sob instituições estáveis permanentes, e não pode encobrir, pela omissão, artifícios danosos.
Não se pode permitir que o uso e o abuso de uma inocente expressão técnica do direito tributário, "contribuição", debilite os Estados e os municípios brasileiros, enfraquecendo um dos esteios essenciais da nossa vida democrática.

Jorge Bornhausen, 65, senador pelo PFL-SC, é o presidente nacional do partido.


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