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São Paulo, quinta-feira, 31 de julho de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Pela democracia

ROBERTO ROMANO

As reformas da Previdência e tributária seguem rumos diferentes dos almejados pelo governo. Com a forte greve e os protestos, amainaram as falas contra o funcionalismo público, sumiram os sarcasmos jogados na face dos universitários. Mantidas certas truculências, como a PM no Parlamento, sob ordem do companheiro presidente da Câmara, o mundo não veio abaixo.
O respeito deve imperar na democracia, demonstra Luís Nassif (Folha, 22/ 7/03). Os choques entre os dirigentes e o bom senso continuam. Dos carros blindados contra imigrantes nordestinos (J. Graziano) aos idosos que morrem porque insistem em viver muito (H. Costa), mais o "paredón" para quem desestabilizar o governo (T. Santiago), chegamos ao desemprego que seria apenas alarme (J. Wagner). Os ministros abusam do verbo, mas a sua incontinência discursiva é inócua.
O presidente da República mantém as grosserias contra os críticos e as atenua diante das reações indignadas. Ele possui aduladores acadêmicos que enxergam na sua loquela muitas luzes racionais e mesmo um estilo. Pobre Buffon! Presidente, entretanto, como o rei reclamado por Hegel, é um pingo na letra "i". Já os líderes do PT não comandaram o processo das reformas com prudente espírito dialógico. E isso é gravíssimo: eles são vítimas de uma política autoritária gerada no século 19. Denunciado o velho procedimento, atenuou-se o processo contra os setores "radicais", mas o seu fim é incerto.
A formação de muitos líderes petistas deu-se nas escolas dos partidos comunistas para militantes. "Somente a sabedoria coletiva do Comitê Central, tendo à frente o camarada Prestes, permite dar aos militantes uma educação de elevado teor ideológico" (M. Alves, "Problemas", 1956). Enunciado cristalino cuja retomada pela direção petista gera desastres. Com censura do pensamento e ordens dogmáticas, a máquina partidária já esmagou consciências em demasia, destruiu sonhos.


Com censura do pensamento e ordens dogmáticas, a máquina partidária já esmagou consciências em demasia


Cito Mauricio Tragtemberg. Após o quarto Congresso do PCB, diz ele, quando "Prestes justificara o caráter "progressista" da burguesia industrial", o partido "deveria lutar por uma Constituinte com Getúlio e apoiar Adhemar de Barros ao governo do Estado". Tempo de alianças à direita, ordenadas pela URSS. O partido combateria as greves em prol da "união nacional". O jovem Tragtemberg foi alertado, em outras correntes socialistas, sobre os "descaminhos do bolchevismo". "Fui chamado à ordem pela "direção" e impedido de ler Marx ou Lênin; literalmente obrigado a me limitar à leitura dos jornais "Hoje" e "Imprensa Popular" para ficar a par do noticiário nacional e internacional, segundo a voz dos "dirigentes". Persistindo nas minhas dúvidas, fui solenemente expulso do PCB, nos termos do artigo 13 do "Estatuto do Partido" de 1945: "É proibido ao militante do partido qualquer contato direto ou indireto com trotskistas ou outros inimigos da classe operária'" ("Educação e Sociedade", Memorial para Concurso/ Unicamp, 1990).
Os dissidentes eram assim caracterizados por Diógenes A. Câmara: "porta-vozes das mais variadas concepções e tendências antipartidárias, provocam disputas dentro do partido (...) degeneram inteiramente, transformam-se em instrumentos dóceis nas mãos da reação e do imperialismo" ("Reforçar a vigilância revolucionária, tarefa vital do Partido", citado por Sergio Ruckert em tese defendida sob minha direção). Logo, "não há comunista sem se subordinar incondicionalmente aos princípios do partido". Contra os que discordam, "a única posição justa é combatê-los e esmagá-los em toda linha".
Contra a melancólica hegemonia atual das formas conservadoras na política civil, eclesiástica, acadêmica, persistiram os ideais do socialismo democrático, e o espartilho centralista deveria cair em desuso na esquerda. Mas, como antes no PC, a direção do PT sente-se à vontade para operar com oligarcas, mesmo os pouco ortodoxos nos assuntos públicos. É a famosa "base aliada". Ela vale mais para o governo que os militantes, em cujos ombros foi conduzido ao Planalto. Seriam os críticos, entretanto, que "fazem o jogo da direita". A exigência ainda consiste em "esmagar" quem recusa ordens incondicionais.
Com a solução das reformas à vista, é preciso que toda a esquerda entre em acordo e rompa com o passado autoritário. Partido político não é igreja (onde as regras vêm do ser divino) nem Exército, mas reunião de vontades e de inteligências que discutem, discordam, unem-se nas propostas à sociedade. Se os dirigentes negam um programa, concedam o protesto aos seus defensores. E que logo um congresso extraordinário do partido chegue ao novo consenso, abolindo o antigo programa em favor de outro, mais próximo do governo e, se possível, aceitável pelos favoráveis às teses anteriores.
Todos, entretanto, reflitam sobre os frutos do abandono de valores como o socialismo. Após maduros debates, as tendências escolherão o seu rumo sem processos ou mútuas ameaças. Isso é novidade. Seu nome? Democracia.

Roberto Romano, 57, é professor titular de ética e filosofia política na Unicamp e autor de "Moral e Ciência - A Monstruosidade no Século XVIII" (ed. Senac/São Paulo), entre outras obras.


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