São Paulo, domingo, 31 de julho de 2005

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DESCRIMINALIZAR O ABORTO

Tema que envolve convicções e dilemas de ordem moral e religiosa, o aborto é objeto de um anteprojeto de lei que deverá ser apresentado ao país na próxima semana. O texto vai propor a ampliação do prazo da interrupção da gravidez nos dois casos atualmente permitidos por lei (estupro e risco de vida para a gestante) e a descriminalização de todos os abortos realizados até a 12ª semana de gestação.
Se aprovada, a proposta impedirá que mulheres sejam processadas criminalmente por se submeterem ao abortamento. O anteprojeto não prevê a oficialização da prática na rede pública, mas garante o tratamento de complicações que dela derivem.
Trata-se, antes de tudo, de uma necessária revisão das defasadas disposições do Código Penal que versam sobre a matéria desde 1940. Em que pesem os avanços trazidos pela legislação do Estado Novo (antes dela mesmo abortos em caso de gravidez de risco para a mãe e de estupro eram considerados criminosos e punidos com pena de reclusão), é preciso reconhecer que essas normas não atendem mais à realidade do país.
Embora hoje o aborto seja considerado crime, com pena que pode variar de um a três anos para a mulher, especialistas estimam que anualmente, em todo o país, cerca de 1 milhão de interrupções de gestações ocorram clandestinamente, a maior parte delas em condições precárias.
Segundo estatísticas baseadas em dados do DataSus (Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde), a rede pública registra 238 mil internações por ano devido a problemas decorrentes de abortos feitos em más condições. Acredita-se que esta seja a quarta causa de mortalidade materna no país.
Um outro aspecto a ser ponderado diz respeito à maneira perversa com que a desigualdade social também intervém nessa questão. Enquanto mulheres de classes mais favorecidas recorrem a clínicas particulares e podem até mesmo procurar um país onde o aborto seja legalizado, as que pertencem aos setores de baixa renda são submetidas a situações que colocam em risco a sua saúde.
O anteprojeto é obra de uma comissão tripartite, composta por representantes do Executivo, do Legislativo e da sociedade civil. Para vigorar, a nova lei precisará, obviamente, passar por todos os ritos democráticos previstos. Não faltará, portanto, oportunidade para debates.
Em qualquer circunstância o aborto é uma experiência dolorosa que toda mulher certamente preferiria evitar. Para isso, seria preciso promover a educação sexual na rede pública e aumentar o acesso da população aos métodos de contracepção.
Sociedades democráticas pressupõem a convivência com situações que nem sempre contemplam convicções religiosas e individuais. Ademais, permanece controversa e objetivamente indefinida a questão de quando começa a vida. A tradição jurídica brasileira, por exemplo, não corrobora a tese de que ela tenha início com a fertilização do óvulo. Não fosse assim, mulheres que tenham perdido o embrião se tornariam, pelas regras da sucessão, herdeiras de quem as fecundou.
Além disso, os direitos do ser vivo prevalecem sobre os dos nascituros, pois a lei autoriza (art. 128 do Código Penal) que o feto seja sacrificado se necessário para salvar a gestante.
Diante dessas considerações e da realidade prática em que se inscreve a questão, merece apoio a proposta de banir do Código Penal a caracterização do aborto como crime.


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