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São Paulo, domingo, 31 de agosto de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Alcântara e o servilismo voluntário

ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE


É tão fácil ao devoto realizar os desejos do altíssimo. Basta desviar recursos financeiros para programas inócuos


Iperó, Sivam, Alcântara e tantos outros seguem a mesma liturgia macabra, o mesmo roteiro suicida, como se houvesse uma mão invisível, inexorável, a compelir-nos. É preciso desvendá-la, expô-la, denunciá-la.
No contrato do governo brasileiro com o Eximbank americano para a realização do Sivam, estava expresso claramente que, quando não fosse encontrada uma empresa americana capaz de fornecer um certo produto, essa aquisição poderia ser feita em qualquer país, exceto o Brasil. Não é preciso muito esforço intelectual para concluir que o propósito dessa cláusula foi impedir que a indústria brasileira participasse do programa e se capacitasse tecnologicamente em um setor estratégico.
Para completar a liturgia do Sivam, o referido contrato excluía completamente a indústria nacional, a não ser pelo setor da construção civil. E os apoucados em neurônios, obedientes a essa mão invisível, ficaram profundamente agradecidos pela generosidade dos americanos, que não quiseram trazer da América edifícios e pontes pré-fabricados.
Também é verdade que umas quireras seriam distribuídas entre os servidores voluntários da mão invisível. Como consequência da inerente ineficácia decorrente da natureza do "pacote fechado" adotado pelo Sivam, um avião da Força Aérea francesa, um Hércules, que é pouco menor que um transatlântico, pôde invadir o território nacional, despercebido, 2.000 quilômetros adentro, sem ser molestado, e aterrissar incógnito no seio da floresta amazônica.
Como Iperó não dependia de empréstimos externos, foi aplicada uma variante da liturgia convencional. Foi astuta a mão invisível: conseguiu indicar para o Ministério da Marinha um servo voluntário. Os dirigentes do programa de desenvolvimento de tecnologia de enriquecimento de urânio para uso em reatores para submarinos foram removidos, o fluxo de recursos financeiros estancado e o programa colocado em banho-maria. Era o golpe final em um longo roteiro, que começou com a supressão da aquisição dessa mesma tecnologia que havia sido negociada no Acordo Nuclear Brasil-Alemanha.
Como Jacó, que aceitara, um pouco a contragosto, Lia em troca de "Raquel, serrana bela", o Brasil do general Geisel engole, conformado, uma duvidosa tecnologia que estava, então, engavetada havia 30 anos, a do jato centrífugo. E como Jacó, trabalhou o Brasil mais sete anos para desenvolver suas próprias ultracentrífugas. Mas eis que a mão invisível do servilismo voluntário se mostra mais cruel que Labão e, assim que é confirmado o sucesso tecnológico brasileiro, ocorre a intervenção em Iperó, e os servis voluntários voltam a brincar com a inofensiva tecnologia do jato centrífugo, a feiosa Lia. Novamente um avanço tecnológico importante é subtraído ao dócil e subserviente Jacó.
E por que com Alcântara seria diferente? A mão invisível já revelara seu descontentamento com o programa espacial brasileiro em várias ocasiões; e, para que não houvesse dúvidas, tornou suas objeções absolutamente explícitas ao incluir no contrato de aluguel da base de Alcântara uma cláusula que proíbe o Brasil de usar os recursos advindos do pagamento dessa locação no programa espacial. É claro que ninguém acreditaria na eficiência dessa proibição, pois bastaria absorver os ditos recursos em outro item orçamentário e complementar o programa com quantia equivalente. Então, qual foi a intenção?
Só há uma resposta possível. É uma mensagem para seus submissos servos e um incentivo para que entrem em ação contra o pecaminoso projeto. E a mais eficaz, simples e sorrateira estratégia é asfixiar o projeto, fornecendo recursos suficientes apenas para que sobreviva vegetativamente, de maneira a não chamar a atenção da opinião pública. E assim foi feito.
Eis como atua a liturgia do servilismo voluntário, com duas vertentes: de um lado, a promessa do paraíso para os devotos obedientes, do outro, a punição com excomunhão e, até mesmo, a ameaça de serem incluídos na lista negra para os rebeldes recalcitrantes, composta de nacionalistas dinossauros.
E é tão fácil ao devoto realizar os desejos do altíssimo. Basta desviar recursos financeiros para programas inócuos, para fantasias inférteis, como as tais tecnologias apropriadas e o indecifrável projeto de "Ciência e Tecnologia para Inclusão Social". Nessa área foram alocados recursos suficientes para aumentar em 50% o orçamento dos 22 institutos do MCT. Inclusão social não se faz com ciência e tecnologia, mas com distribuição de renda, com a criação de empregos e desenvolvimento econômico -portanto com ciência e tecnologia aplicadas aos meios de produção.
Teriam sido suficientes os recursos alocados no delirante programa da plataforma espacial internacional, de que foi o Brasil forçado pela mão invisível a participar durante a administração passada e cuja única justificativa avançada pelos devotos do servilismo voluntário foi a superstição de que cristais de proteínas cresceriam melhor a gravidade zero. Sim, bastaria que esses mesmos recursos fossem alocados no programa espacial brasileiro para assegurar o sucesso de um programa com os mesmos objetivos daquele que acaba de resultar na tragédia de Alcântara. E o fato de que só 10% da verba orçamentária para esse programa foi liberada demonstra que a mesma estratégia perversa para aniquilar um programa estratégico brasileiro por inanição ainda não foi removida.

Rogério Cezar de Cerqueira Leite, 71, físico, é professor emérito da Unicamp e membro do Conselho Editorial da Folha.


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