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Ensaios mostram ligação entre escrita e filosofia política
As lições de Lefort
NEWTON BIGNOTTO
O livro de Claude Lefort coloca o leitor
diante de um panorama amplo e variado
da trajetória desse pensador, que foi um
dos responsáveis pela renovação do pensamento político contemporâneo. Conhecido entre nós por seus trabalhos sobre a democracia, sua crítica do totalitarismo e suas investigações sobre a natureza do político, Lefort, que viveu no Brasil e lecionou na USP, nos lega nesses escritos uma reflexão sofisticada e plena de
nuances sobre a relação entre e escrita e a
política.
Mas, como ele nos adverte no prefácio,
seu objeto não são os discursos políticos
transformados em matéria sobre a qual o
filósofo aplica suas ferramentas analíticas, para deles extrair um sentido positivo e definitivo. O que lhe interessa são os
laços que unem a linguagem ao pensamento e, de maneira particular, a filosofia
política à escrita. Aquele que escreve sobre o mundo em comum dos homens sabe que sua palavra será apropriada e muitas vezes transformada pelos que vierem
a entrar em contato com seus textos. Isso,
no entanto, não implica que a filosofia
política possa se desenvolver mediante o
controle de sua recepção. Ao contrário,
mostra o autor, escrever sob a égide do
político significa correr riscos e tentar escapar das armadilhas que a relação com o
leitor vai colocando no caminho do escritor.
Leitor e criador
Na outra ponta desse processo se encontram os que se dirigem aos textos na
condição de leitores e que devem ser capazes de penetrar seus segredos, pois "é
sempre por um processo de incorporação da escrita do outro que ganhamos o
poder de pensar o que ele mesmo busca
pensar". O livro expõe a dupla aventura
vivida pelo filósofo de ser o leitor atento
da tradição e ser ele mesmo o criador de
uma linguagem que interpela seu tempo.
Os capítulos vão trazendo, assim, as marcas do percurso do pensador, sob o signo
de sua preocupação com a escrita. Ele nos
fala da literatura, do totalitarismo, da tradição republicana, de Maquiavel e da
hermenêutica dos textos -caminhos trilhados ao longo de sua extensa obra e revisitados ou descobertos sob a luz de sua
interrogação sempre renovada sobre o
sentido do político.
Um dos marcos de seu pensamento, e
que aparece em destaque, é sua relação
com a literatura. Num capítulo com sabor autobiográfico, ele comenta que sua
convivência com o título de filósofo sempre foi difícil e que isso o levou muito cedo a se aproximar da história, das ciências humanas e sobretudo da literatura.
Desejoso de ser escritor, ele teria encontrado na filosofia o campo no qual pode
exercer sua escolha. O resultado desse
longo convívio aparece nos textos dedicados a Orwell e a Sade. Neles Lefort dá livre curso à sua idéia de que um livro como "1984" se presta de maneira inequívoca a uma reflexão sobre o totalitarismo,
à condição que saibamos escutar seus sinais, inscritos numa trama que não é a
fonte de casos exemplares, mas a matéria
sobre a qual o pensamento se constrói.
O cuidado com os textos aparece, aliás,
ao longo de todo seu trabalho. No capítulo dedicado à Tocqueville, ele nos dá uma
amostra de seu procedimento hermenêutico e de como elabora sua reflexão
sobre os temas fundamentais de nosso
tempo. A obra clássica do século 19 "A
Democracia na América" é objeto de
uma análise cuidadosa de muitos de seus
argumentos principais, o que acaba revelando suas contradições e dificuldades
internas. Lefort, no entanto, não se contenta com as explicações de uma boa parte da crítica, que vê nesses percalços a
marca de uma insuficiência. O estilo peculiar de Tocqueville dá ensejo a que ele
investigue os possíveis efeitos teóricos
daquilo que aparece para alguns como
um defeito do escritor ou uma debilidade
de seu aparato analítico. Sua linguagem
não é vista apenas como instrumento,
mas como fazendo parte de uma estratégia de desvelamento do sentido, que não
cessa jamais .
Lefort e Maquiavel
Dos muitos encontros com escritores
do passado, um ocupa lugar especial na
trajetória de Lefort: trata-se de sua relação com Maquiavel e com o republicanismo italiano do Renascimento. Em 1973
ele publicou, na França, uma das obras
mais expressivas das últimas décadas sobre o pensador florentino: "Le Travail de
l'Oeuvre - Machiavel". Lefort, que havia
dedicado muitos anos ao estudo dos escritos do secretário florentino, consolidou então muitos dos conceitos e procedimentos que são até hoje centrais em
sua obra.
Leitor precoce de Marx, ele abandonou,
com Maquiavel, a crença numa necessidade fechada do desenvolvimento da história para prestar atenção à indeterminação que rege as ações humanas e que é
constitutiva do mundo da política. Retornando a conceitos como o de "virtù" e o
de "fortuna", analisando os textos pouco
conhecidos dos humanistas do século 14,
ele refez na verdade o caminho até a filosofia política, que havia sido abandonada
ao longo de um século marcado pela
crença no determinismo das forças da
história ou pelo positivismo das ciências
humanas, que viam nas ciências exatas o
modelo a ser seguido para se pensar os fenômenos sociais. O retorno a Maquiavel
acabou fornecendo ao pensador francês
os instrumentos para criar um novo
olhar sobre o político -termo que ele
prefere para designar seu campo de preocupações.
Nesse livro, Lefort analisa a relação com
a tradição do autor do "Príncipe" em um
capítulo dedicado ao conceito de "verdade efetiva". Mostrando como Maquiavel
se serve do modelo romano para efetuar
a crítica da Florença de seu tempo, ele nos
indica o caminho a ser seguido por aqueles que procuram pensar a política por
meio do recurso ao passado. O procedimento do pensador italiano, no entanto,
não é linear, pois, como é sublinhado, ele
foi ao mesmo tempo o admirador da Antiguidade e o demolidor das filosofias antigas, que se contentavam com a idealização dos regimes, sem se preocupar com o
estudo das possibilidades concretas de
fazê-los existir.
As lições de Lefort, nesse caso, como
nos capítulos em que estuda a formação
do republicanismo moderno à luz do
chamado humanismo cívico e na parte
dedicada à educação humanística, são
das mais importantes. Ensinando-nos a
prestar atenção à linguagem e aos contornos complexos dos textos, ele nos mostra
que o acesso aos tesouros do passado exige dos leitores um esforço especial de interpretação, único capaz de transformá-los em ferramentas úteis para o presente.
Por isso, é preciso prestar atenção ao fato de que Maquiavel nos mostra que a
construção de uma república potente,
nos moldes das repúblicas antigas, só pode se realizar, no presente, se formos capazes de empregar em nossas ações a
mesma "virtù" empregada pelos romanos em sua história de conquistas. Trata-se, assim, menos da escolha de um modelo e mais da de um caminho que, balizado
pelos feitos dos antigos, nos coloca em
contato com a indeterminação das ações
humanas.
Claros e escuros
Ao longo do livro, entretanto, Lefort
não abandona jamais sua preocupação
com a escrita. Nesse sentido, merece destaque o capítulo que dedica a Leo Strauss,
pensador político que se notabilizou por
suas análises da tradição filosófica e pela
atenção que dedicou ao que chamou de
"arte de escrever". Para ele, a filosofia, ao
longo da história, teve muitas vezes de recorrer a técnicas de escrita especiais, para
fugir de perseguições dos diversos poderes. Isso faz com que um texto de um
grande pensador não possa jamais ser
abordado com ingenuidade, sob pena de
se tomar como essência o que é mero simulacro.
Lefort, que admira Strauss por sua
acuidade analítica, submete seu método a
uma crítica contundente. Servindo-se
dos mesmos instrumentos que utiliza para ler outros pensadores políticos, ele
mostra que o percurso de Strauss é marcado por um jogo de claros e escuros que,
longe de simplesmente colocar o leitor
em contato com um método de leitura,
faz aparecer uma visão do político inteiramente marcada pelo fascínio do antigo
e pela negação da modernidade.
Filósofo político conservador, Strauss
faz da crítica ao positivismo, ao historicismo e ao relativismo a mola mestra de
uma filosofia que procura seguir os mesmo caminhos traçados pela tradição clássica, num mundo que não mais parece
comportá-la. O resultado é que, "paradoxalmente, este pensador, tão preocupado
em ligar a filosofia política ao ponto de
vista do cidadão e do homem de Estado,
não se permite assumir a tensão, que habita em cada um de nós, entre a experiência de cidadão, de indivíduo e de homem".
"Desafios da Escrita Política" é mais do
que o retrato da preocupação do autor
com os textos do passado e com os temas
mais atuais da reflexão política. O livro
coloca o leitor em contato com o rigor
dos procedimentos analíticos de Lefort e,
ao mesmo tempo, com sua coragem para
enfrentar os desafios de se construir uma
filosofia política no mundo contemporâneo, sem recorrer a simplificações e modismos, que marcaram o percurso de
muitos escritores que se interessaram pelos mesmos temas.
Desafios da Escrita Política
Claude Lefort
Tradução: Eliana de Melo Souza
Discurso Editorial (Tel. 0/xx/11/814-5383)
382 págs., R$ 20,00
Newton Bignotto é professor de filosofia na Universidade Federal de Minas Gerais e autor de "Maquiavel
Republicano" (Loyola).
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