São Paulo, sábado, 08 de abril de 2000


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Ensaios mostram ligação entre escrita e filosofia política

As lições de Lefort

NEWTON BIGNOTTO

O livro de Claude Lefort coloca o leitor diante de um panorama amplo e variado da trajetória desse pensador, que foi um dos responsáveis pela renovação do pensamento político contemporâneo. Conhecido entre nós por seus trabalhos sobre a democracia, sua crítica do totalitarismo e suas investigações sobre a natureza do político, Lefort, que viveu no Brasil e lecionou na USP, nos lega nesses escritos uma reflexão sofisticada e plena de nuances sobre a relação entre e escrita e a política.
Mas, como ele nos adverte no prefácio, seu objeto não são os discursos políticos transformados em matéria sobre a qual o filósofo aplica suas ferramentas analíticas, para deles extrair um sentido positivo e definitivo. O que lhe interessa são os laços que unem a linguagem ao pensamento e, de maneira particular, a filosofia política à escrita. Aquele que escreve sobre o mundo em comum dos homens sabe que sua palavra será apropriada e muitas vezes transformada pelos que vierem a entrar em contato com seus textos. Isso, no entanto, não implica que a filosofia política possa se desenvolver mediante o controle de sua recepção. Ao contrário, mostra o autor, escrever sob a égide do político significa correr riscos e tentar escapar das armadilhas que a relação com o leitor vai colocando no caminho do escritor.

Leitor e criador
Na outra ponta desse processo se encontram os que se dirigem aos textos na condição de leitores e que devem ser capazes de penetrar seus segredos, pois "é sempre por um processo de incorporação da escrita do outro que ganhamos o poder de pensar o que ele mesmo busca pensar". O livro expõe a dupla aventura vivida pelo filósofo de ser o leitor atento da tradição e ser ele mesmo o criador de uma linguagem que interpela seu tempo. Os capítulos vão trazendo, assim, as marcas do percurso do pensador, sob o signo de sua preocupação com a escrita. Ele nos fala da literatura, do totalitarismo, da tradição republicana, de Maquiavel e da hermenêutica dos textos -caminhos trilhados ao longo de sua extensa obra e revisitados ou descobertos sob a luz de sua interrogação sempre renovada sobre o sentido do político.
Um dos marcos de seu pensamento, e que aparece em destaque, é sua relação com a literatura. Num capítulo com sabor autobiográfico, ele comenta que sua convivência com o título de filósofo sempre foi difícil e que isso o levou muito cedo a se aproximar da história, das ciências humanas e sobretudo da literatura. Desejoso de ser escritor, ele teria encontrado na filosofia o campo no qual pode exercer sua escolha. O resultado desse longo convívio aparece nos textos dedicados a Orwell e a Sade. Neles Lefort dá livre curso à sua idéia de que um livro como "1984" se presta de maneira inequívoca a uma reflexão sobre o totalitarismo, à condição que saibamos escutar seus sinais, inscritos numa trama que não é a fonte de casos exemplares, mas a matéria sobre a qual o pensamento se constrói.
O cuidado com os textos aparece, aliás, ao longo de todo seu trabalho. No capítulo dedicado à Tocqueville, ele nos dá uma amostra de seu procedimento hermenêutico e de como elabora sua reflexão sobre os temas fundamentais de nosso tempo. A obra clássica do século 19 "A Democracia na América" é objeto de uma análise cuidadosa de muitos de seus argumentos principais, o que acaba revelando suas contradições e dificuldades internas. Lefort, no entanto, não se contenta com as explicações de uma boa parte da crítica, que vê nesses percalços a marca de uma insuficiência. O estilo peculiar de Tocqueville dá ensejo a que ele investigue os possíveis efeitos teóricos daquilo que aparece para alguns como um defeito do escritor ou uma debilidade de seu aparato analítico. Sua linguagem não é vista apenas como instrumento, mas como fazendo parte de uma estratégia de desvelamento do sentido, que não cessa jamais .

Lefort e Maquiavel
Dos muitos encontros com escritores do passado, um ocupa lugar especial na trajetória de Lefort: trata-se de sua relação com Maquiavel e com o republicanismo italiano do Renascimento. Em 1973 ele publicou, na França, uma das obras mais expressivas das últimas décadas sobre o pensador florentino: "Le Travail de l'Oeuvre - Machiavel". Lefort, que havia dedicado muitos anos ao estudo dos escritos do secretário florentino, consolidou então muitos dos conceitos e procedimentos que são até hoje centrais em sua obra.
Leitor precoce de Marx, ele abandonou, com Maquiavel, a crença numa necessidade fechada do desenvolvimento da história para prestar atenção à indeterminação que rege as ações humanas e que é constitutiva do mundo da política. Retornando a conceitos como o de "virtù" e o de "fortuna", analisando os textos pouco conhecidos dos humanistas do século 14, ele refez na verdade o caminho até a filosofia política, que havia sido abandonada ao longo de um século marcado pela crença no determinismo das forças da história ou pelo positivismo das ciências humanas, que viam nas ciências exatas o modelo a ser seguido para se pensar os fenômenos sociais. O retorno a Maquiavel acabou fornecendo ao pensador francês os instrumentos para criar um novo olhar sobre o político -termo que ele prefere para designar seu campo de preocupações.
Nesse livro, Lefort analisa a relação com a tradição do autor do "Príncipe" em um capítulo dedicado ao conceito de "verdade efetiva". Mostrando como Maquiavel se serve do modelo romano para efetuar a crítica da Florença de seu tempo, ele nos indica o caminho a ser seguido por aqueles que procuram pensar a política por meio do recurso ao passado. O procedimento do pensador italiano, no entanto, não é linear, pois, como é sublinhado, ele foi ao mesmo tempo o admirador da Antiguidade e o demolidor das filosofias antigas, que se contentavam com a idealização dos regimes, sem se preocupar com o estudo das possibilidades concretas de fazê-los existir.
As lições de Lefort, nesse caso, como nos capítulos em que estuda a formação do republicanismo moderno à luz do chamado humanismo cívico e na parte dedicada à educação humanística, são das mais importantes. Ensinando-nos a prestar atenção à linguagem e aos contornos complexos dos textos, ele nos mostra que o acesso aos tesouros do passado exige dos leitores um esforço especial de interpretação, único capaz de transformá-los em ferramentas úteis para o presente.
Por isso, é preciso prestar atenção ao fato de que Maquiavel nos mostra que a construção de uma república potente, nos moldes das repúblicas antigas, só pode se realizar, no presente, se formos capazes de empregar em nossas ações a mesma "virtù" empregada pelos romanos em sua história de conquistas. Trata-se, assim, menos da escolha de um modelo e mais da de um caminho que, balizado pelos feitos dos antigos, nos coloca em contato com a indeterminação das ações humanas.

Claros e escuros
Ao longo do livro, entretanto, Lefort não abandona jamais sua preocupação com a escrita. Nesse sentido, merece destaque o capítulo que dedica a Leo Strauss, pensador político que se notabilizou por suas análises da tradição filosófica e pela atenção que dedicou ao que chamou de "arte de escrever". Para ele, a filosofia, ao longo da história, teve muitas vezes de recorrer a técnicas de escrita especiais, para fugir de perseguições dos diversos poderes. Isso faz com que um texto de um grande pensador não possa jamais ser abordado com ingenuidade, sob pena de se tomar como essência o que é mero simulacro.
Lefort, que admira Strauss por sua acuidade analítica, submete seu método a uma crítica contundente. Servindo-se dos mesmos instrumentos que utiliza para ler outros pensadores políticos, ele mostra que o percurso de Strauss é marcado por um jogo de claros e escuros que, longe de simplesmente colocar o leitor em contato com um método de leitura, faz aparecer uma visão do político inteiramente marcada pelo fascínio do antigo e pela negação da modernidade.
Filósofo político conservador, Strauss faz da crítica ao positivismo, ao historicismo e ao relativismo a mola mestra de uma filosofia que procura seguir os mesmo caminhos traçados pela tradição clássica, num mundo que não mais parece comportá-la. O resultado é que, "paradoxalmente, este pensador, tão preocupado em ligar a filosofia política ao ponto de vista do cidadão e do homem de Estado, não se permite assumir a tensão, que habita em cada um de nós, entre a experiência de cidadão, de indivíduo e de homem".
"Desafios da Escrita Política" é mais do que o retrato da preocupação do autor com os textos do passado e com os temas mais atuais da reflexão política. O livro coloca o leitor em contato com o rigor dos procedimentos analíticos de Lefort e, ao mesmo tempo, com sua coragem para enfrentar os desafios de se construir uma filosofia política no mundo contemporâneo, sem recorrer a simplificações e modismos, que marcaram o percurso de muitos escritores que se interessaram pelos mesmos temas.


Desafios da Escrita Política
Claude Lefort
Tradução: Eliana de Melo Souza
Discurso Editorial (Tel. 0/xx/11/814-5383)
382 págs., R$ 20,00



Newton Bignotto é professor de filosofia na Universidade Federal de Minas Gerais e autor de "Maquiavel Republicano" (Loyola).


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