|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Estudo reinterpreta o Arcadismo
Gramática do louvor
JOACI FURTADO
Poucas escolas poéticas foram
tão trinchadas pela fortuna crítica
quanto o neoclassicismo, também dito "arcadismo". Florescido
em meio à avalanche revolucionária da segunda metade do século 18, logo em seguida foi deglutido no banquete canibal da historiografia romântica -no Brasil,
bastante sequiosa dos colos, beiços, cinturas, peles, cabelos e
olhos que Anardas, Glauras, Marílias, Nises, Galatéias e Lauras
podiam oferecer ao paladar tropical, até que a cozinha nacional se
afirmasse em lábios de mel e moreninhas, quando não em mulatinhas. Assim, o arcadismo chegou
ao século 20 hipertrofiado em sua
adiposidade lírica -claro que a
partir da noção romântica do lírico, sempre muito emotiva- e
mutilado em sua obesidade encomiástica, devidamente comprimida sob o estreito espartilho
protonacionalista urdido postumamente para as inconfidências,
perante as quais ficava difícil explicar a copiosa louvação áulica
dos árcades, a não ser pelo mau
gosto poético ou pela simples fraqueza de caráter.
Opondo-se à tradição romântico-positivista, o livro de Ivan Teixeira soma-se a outras inovações
interpretativas que aos poucos
vão deixando de ser isoladas, ao
menos no que diz respeito ao arcadismo. Já numa dissertação de
mestrado apresentada em 1990 ao
departamento de história da Universidade Federal Fluminense
(UFF) -infelizmente ainda inédita em livro e ignorada pela tese
de Teixeira-, Ronald Polito empreendia profunda e sofisticada
devassa arqueológica na obra de
Tomás Antônio Gonzaga, evidenciando seus pressupostos visceralmente católicos -e absolutistas mesmo- em mimosas passagens de "Marília de Dirceu". Polito foi mais além, reivindicando da
ciência política um conceito mais
preciso que o de "despotismo esclarecido", pois este se revelara insuficiente para esclarecer as bases
não-racionais do pensamento
gonzaguiano.
O poeta e o inconfidente
A partir desse trabalho, tornou-se no mínimo problemática a relação imediata que se convencionou estabelecer entre o poeta e o
inconfidente. O mesmo se pode
dizer do formidável ensaio "Parnaso de Bocage, Rei dos Brejeiros", de Alcir Pécora, publicado
em 1996 na coletânea "Libertinos
Libertários" (Companhia das Letras), de onde ressuma um Bocage bem mais complexo que o famoso "boca suja" ou o sublime lírico carente de ser extirpado de
suas partes podres. É preciso entender a libertinagem bocagiana,
diz Pécora, "como vocação poética virtuosística que pode desempenhar admiravelmente as tópicas sexuais em todos os modos e
gêneros".
Ao também romper com a tradicional recepção do arcadismo,
Teixeira propõe, certamente pela
primeira vez na historiografia
brasileira da literatura, um modelo analítico para o conjunto da
produção poética que descobre
sob o mecenato de Sebastião José
de Carvalho e Melo, mais conhecido como marquês de Pombal, o
onipotente ministro de D. José 1º,
rei de Portugal de 1750 a 1777. Para tanto, empreende meticuloso
exame das práticas discursivas
coevas daquela poesia, convencido de que no "Setecentos não se
concebia o poema senão como
extensão da ordem do Estado" e
de que, filiada à retórica, "a poética mantinha um olho na urdidura
do texto e outro na trama social".
Isso leva o autor à reconstituição do que poderia ter sido o arcabouço dessa ruína encomiástica
que hoje parece apenas recender a
subserviência ora repugnante, ora
ridícula. Teixeira acaba por descrever uma espécie de gramática
pombalina para a poesia, remontando à "Arte Poética" de Francisco José Freire (Cândido Lusitano,
na Arcádia) -que "integrou o
projeto pombalino de desacreditar a neo-escolástica jesuítica e
apoiar o estilo claro que viria a
chamar-se neoclássico"- e ao
"Verdadeiro Método de Estudar",
de Luís Antônio Verney -que
objetivava "ensinar aos portugueses o caminho da expressão clara
e objetiva", um "ponto de vista tido como alicerce de sua modernidade". Não sem antes percorrer
os meandros da Ilustração em
Portugal e discutir noções como
clareza, verdade, razão e natureza
na poética setecentista e no Iluminismo português.
Uma preceptiva pombalina
A "gramática" mencionada acima talvez seja a maior contribuição do autor para a superação da
velha postura historiográfica que
inventa a literatura como "reflexo
da realidade". Afinal, Teixeira demonstra a historicidade daquela
obra poética em sua própria materialidade discursiva, inventariando os recursos retóricos nela
empregados e percorrendo a trajetória editorial dos manuscritos,
livros e impressos, além de investigar as inter-relações entre Pombal e os poetas que buscavam sua
proteção. É isso que conduz Teixeira à hipótese de que haveria
uma preceptiva especificamente
pombalina para o encômio -a
mais fiel tradução do "utilitarismo" da poesia neoclássica luso-brasileira: "Tratava-se de consagrar o estabelecimento da ordem,
entendida como cumprimento
dos desígnios da idéia do bem e
do justo". Consequentemente, o
que ao longo dos séculos 19 e 20
foi lido como "nativismo", em especial em "O Uraguay", de Basílio
da Gama, "deve ser entendido como confirmador da ordem lusitana e do absolutismo monárquico". De tal forma que, segundo
verificou o autor, "personas" encomiásticas árcades assumiram a
propagação do ideário pombalino adotando não só as mesmas
tópicas, "mas também os mesmos
procedimentos estilísticos, as
mesmas palavras e o mesmo tom,
que é sempre o de exaltação incondicional das virtudes cívicas,
morais, administrativas e intelectuais do ministro".
Antes de se deter em Basílio da
Gama, Teixeira ocupa-se de outros poetas igualmente integrantes do empenho publicitário de
Carvalho e Melo. E cria uma distinção: os portugueses -entre os
quais Antônio Diniz da Cruz e Silva, Pedro Antônio Correia Garção
e Domingos dos Reis Quita- e os
"brasileiros" -Cláudio Manuel
da Costa, Inácio José de Alvarenga Peixoto, Manuel Inácio da Silva
Alvarenga e Basílio. O autor sustenta essa diferenciação fundado
na tese de que "Basílio teria oferecido a Sebastião José a possibilidade de formar um grupo coeso
de poetas que o exaltassem de
maneira exclusiva e convicta,
pois, sem raízes na Metrópole,
não apresentavam o perigo de
contatos com a velha nobreza,
que se indispusera com a política
do ministro". A idéia é extremamente instigante, mas talvez não
encontre sustentação suficiente
no "corpus" poético levantado e
analisado por Teixeira. Se inviabiliza qualquer prurido nativista, a
origem colonial também não seria bastante, por si só, para imunizar quem quer que fosse contra a
cooptação por diversos segmentos da nobreza lusa. Resta fazer
uma implacável devassa nos arquivos para verificar o percurso
profissional de cada um desse
personagens -e constatar até
que ponto seus louvores poéticos
efetivamente resultaram em cargos, benesses e favores.
Que leituras preconceituosas
não se iludam, entretanto: não se
trata de uma simples "tese das letras", mas de um trabalho de historiador (já que esse ofício não é
privilégio dos que cursaram história), bastante útil a todos que
queiram compreender a (dita)
mentalidade da época pombalina.
Aqui cabe acrescentar, por fim,
que "Mecenato Pombalino" encerra preciosa pesquisa iconográfica, igualmente importante para
todos os estudiosos do período e
valorizada pelo excelente tratamento gráfico que a obra recebeu.
Mecenato Pombalino e
Poesia Neoclássica - Basílio
da Gama e a Poética
do Encômio
Ivan Teixeira
Edusp (Tel. 0/xx/11/818-4149)
620 págs., R$ 65,00
Joaci Pereira Furtado é doutorando em
história social pela USP e autor de "Uma República de Leitores" (Hucitec).
Texto Anterior: Newton Bignotto: As lições de Lefort Próximo Texto: Francisco Alambert: Cartografias euclidianas Índice
|