São Paulo, sábado, 08 de abril de 2000


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Estudo reinterpreta o Arcadismo

Gramática do louvor


JOACI FURTADO

Poucas escolas poéticas foram tão trinchadas pela fortuna crítica quanto o neoclassicismo, também dito "arcadismo". Florescido em meio à avalanche revolucionária da segunda metade do século 18, logo em seguida foi deglutido no banquete canibal da historiografia romântica -no Brasil, bastante sequiosa dos colos, beiços, cinturas, peles, cabelos e olhos que Anardas, Glauras, Marílias, Nises, Galatéias e Lauras podiam oferecer ao paladar tropical, até que a cozinha nacional se afirmasse em lábios de mel e moreninhas, quando não em mulatinhas. Assim, o arcadismo chegou ao século 20 hipertrofiado em sua adiposidade lírica -claro que a partir da noção romântica do lírico, sempre muito emotiva- e mutilado em sua obesidade encomiástica, devidamente comprimida sob o estreito espartilho protonacionalista urdido postumamente para as inconfidências, perante as quais ficava difícil explicar a copiosa louvação áulica dos árcades, a não ser pelo mau gosto poético ou pela simples fraqueza de caráter.
Opondo-se à tradição romântico-positivista, o livro de Ivan Teixeira soma-se a outras inovações interpretativas que aos poucos vão deixando de ser isoladas, ao menos no que diz respeito ao arcadismo. Já numa dissertação de mestrado apresentada em 1990 ao departamento de história da Universidade Federal Fluminense (UFF) -infelizmente ainda inédita em livro e ignorada pela tese de Teixeira-, Ronald Polito empreendia profunda e sofisticada devassa arqueológica na obra de Tomás Antônio Gonzaga, evidenciando seus pressupostos visceralmente católicos -e absolutistas mesmo- em mimosas passagens de "Marília de Dirceu". Polito foi mais além, reivindicando da ciência política um conceito mais preciso que o de "despotismo esclarecido", pois este se revelara insuficiente para esclarecer as bases não-racionais do pensamento gonzaguiano.

O poeta e o inconfidente
A partir desse trabalho, tornou-se no mínimo problemática a relação imediata que se convencionou estabelecer entre o poeta e o inconfidente. O mesmo se pode dizer do formidável ensaio "Parnaso de Bocage, Rei dos Brejeiros", de Alcir Pécora, publicado em 1996 na coletânea "Libertinos Libertários" (Companhia das Letras), de onde ressuma um Bocage bem mais complexo que o famoso "boca suja" ou o sublime lírico carente de ser extirpado de suas partes podres. É preciso entender a libertinagem bocagiana, diz Pécora, "como vocação poética virtuosística que pode desempenhar admiravelmente as tópicas sexuais em todos os modos e gêneros".
Ao também romper com a tradicional recepção do arcadismo, Teixeira propõe, certamente pela primeira vez na historiografia brasileira da literatura, um modelo analítico para o conjunto da produção poética que descobre sob o mecenato de Sebastião José de Carvalho e Melo, mais conhecido como marquês de Pombal, o onipotente ministro de D. José 1º, rei de Portugal de 1750 a 1777. Para tanto, empreende meticuloso exame das práticas discursivas coevas daquela poesia, convencido de que no "Setecentos não se concebia o poema senão como extensão da ordem do Estado" e de que, filiada à retórica, "a poética mantinha um olho na urdidura do texto e outro na trama social".
Isso leva o autor à reconstituição do que poderia ter sido o arcabouço dessa ruína encomiástica que hoje parece apenas recender a subserviência ora repugnante, ora ridícula. Teixeira acaba por descrever uma espécie de gramática pombalina para a poesia, remontando à "Arte Poética" de Francisco José Freire (Cândido Lusitano, na Arcádia) -que "integrou o projeto pombalino de desacreditar a neo-escolástica jesuítica e apoiar o estilo claro que viria a chamar-se neoclássico"- e ao "Verdadeiro Método de Estudar", de Luís Antônio Verney -que objetivava "ensinar aos portugueses o caminho da expressão clara e objetiva", um "ponto de vista tido como alicerce de sua modernidade". Não sem antes percorrer os meandros da Ilustração em Portugal e discutir noções como clareza, verdade, razão e natureza na poética setecentista e no Iluminismo português.

Uma preceptiva pombalina
A "gramática" mencionada acima talvez seja a maior contribuição do autor para a superação da velha postura historiográfica que inventa a literatura como "reflexo da realidade". Afinal, Teixeira demonstra a historicidade daquela obra poética em sua própria materialidade discursiva, inventariando os recursos retóricos nela empregados e percorrendo a trajetória editorial dos manuscritos, livros e impressos, além de investigar as inter-relações entre Pombal e os poetas que buscavam sua proteção. É isso que conduz Teixeira à hipótese de que haveria uma preceptiva especificamente pombalina para o encômio -a mais fiel tradução do "utilitarismo" da poesia neoclássica luso-brasileira: "Tratava-se de consagrar o estabelecimento da ordem, entendida como cumprimento dos desígnios da idéia do bem e do justo". Consequentemente, o que ao longo dos séculos 19 e 20 foi lido como "nativismo", em especial em "O Uraguay", de Basílio da Gama, "deve ser entendido como confirmador da ordem lusitana e do absolutismo monárquico". De tal forma que, segundo verificou o autor, "personas" encomiásticas árcades assumiram a propagação do ideário pombalino adotando não só as mesmas tópicas, "mas também os mesmos procedimentos estilísticos, as mesmas palavras e o mesmo tom, que é sempre o de exaltação incondicional das virtudes cívicas, morais, administrativas e intelectuais do ministro".
Antes de se deter em Basílio da Gama, Teixeira ocupa-se de outros poetas igualmente integrantes do empenho publicitário de Carvalho e Melo. E cria uma distinção: os portugueses -entre os quais Antônio Diniz da Cruz e Silva, Pedro Antônio Correia Garção e Domingos dos Reis Quita- e os "brasileiros" -Cláudio Manuel da Costa, Inácio José de Alvarenga Peixoto, Manuel Inácio da Silva Alvarenga e Basílio. O autor sustenta essa diferenciação fundado na tese de que "Basílio teria oferecido a Sebastião José a possibilidade de formar um grupo coeso de poetas que o exaltassem de maneira exclusiva e convicta, pois, sem raízes na Metrópole, não apresentavam o perigo de contatos com a velha nobreza, que se indispusera com a política do ministro". A idéia é extremamente instigante, mas talvez não encontre sustentação suficiente no "corpus" poético levantado e analisado por Teixeira. Se inviabiliza qualquer prurido nativista, a origem colonial também não seria bastante, por si só, para imunizar quem quer que fosse contra a cooptação por diversos segmentos da nobreza lusa. Resta fazer uma implacável devassa nos arquivos para verificar o percurso profissional de cada um desse personagens -e constatar até que ponto seus louvores poéticos efetivamente resultaram em cargos, benesses e favores.
Que leituras preconceituosas não se iludam, entretanto: não se trata de uma simples "tese das letras", mas de um trabalho de historiador (já que esse ofício não é privilégio dos que cursaram história), bastante útil a todos que queiram compreender a (dita) mentalidade da época pombalina. Aqui cabe acrescentar, por fim, que "Mecenato Pombalino" encerra preciosa pesquisa iconográfica, igualmente importante para todos os estudiosos do período e valorizada pelo excelente tratamento gráfico que a obra recebeu.


Mecenato Pombalino e Poesia Neoclássica - Basílio da Gama e a Poética do Encômio
Ivan Teixeira
Edusp (Tel. 0/xx/11/818-4149)
620 págs., R$ 65,00





Joaci Pereira Furtado é doutorando em história social pela USP e autor de "Uma República de Leitores" (Hucitec).




Texto Anterior: Newton Bignotto: As lições de Lefort
Próximo Texto: Francisco Alambert: Cartografias euclidianas
Índice

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.