São Paulo, sábado, 08 de abril de 2000


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Cartografias euclidianas


FRANCISCO ALAMBERT

Na língua portuguesa, a palavra "carta" pode designar tanto a correspondência de ordem pessoal quanto, num sentido geográfico, "mapa", esquadrinhamento criterioso de um corpo físico, de um espaço abstrato. Assim como existem mapas de regiões, existem cartas de constelações, cuja metáfora define o universo de formação pessoal, as afinidades que dão rumo ao pensamento. Euclides da Cunha foi um incansável correspondente (recentemente Walnice Galvão recolheu-lhe a correspondência num precioso volume), bem como um grande mapeador dos espaços brasileiros de ordem geográfica, etnográfica, histórica. Em "À Margem da História" (publicado em 1909, um mês após a morte do autor -que, entretanto, chegou a preparar sua edição), encontramos a reunião de todo esse universo: as regiões e as constelações da cartografia euclidiana.
Em "Os Sertões", o mapeamento dos problemas brasileiros é visto a partir do que Euclides definia como o "Norte" (que geograficamente compreende a região Nordeste). O "Sul" (conceito que abrange as regiões abaixo do Espírito Santo, incluindo partes de Goiás e Mato Grosso) é estudado em, por exemplo, "Outros Contrastes e Confrontos". Civilização e barbárie, progresso e atraso, litoral e sertão, Monarquia e República (os pólos em contraste e confronto, segundo o raciocínio do autor) coexistem na relação entre essas regiões e dentro delas próprias. Mas havia um outro espaço que não se resumia nas antinomias da história nacional. Nem norte nem sul, a Amazônia era a última fronteira.
"Terra sem História", a primeira parte do livro, apresenta o que deveria ser a introdução de um extenso trabalho sobre a particularidade amazônica. Como já fizera em relação ao São Francisco (no Norte) e ao Tietê (no Sul), é o rio Amazonas que organiza a cartografia sociológica do autor. Por meio dele, os nordestinos fugidos da seca ganham território, encontrando-se com os índios fugidos das bandeiras paulistas. Desse "cruzamento", sob "um clima caluniado", Euclides encontra novas figuras sociais: o seringueiro e o caucheiro. Foram eles, os fortes sertanejos da mata, que garantiram a unidade e a integridade do território, ainda que dispersos e abandonados na monumentalidade da região. Euclides reclama a atenção para esse mundo particular em gestação, onde "brasileiro" é quase "estrangeiro". A civilização brasileira deveria integrar a exuberância amazônica em sua história para completar sua formação.

Integração Norte-Sul
Daí a segunda parte do livro concentrar-se na necessidade da intervenção. Em "Viação Sul-Americana" ou em "Primado do Pacífico", o autor pensa as condições e possibilidades da integração, via transporte férreo, da região amazônica com o Brasil e com o resto do mundo. A questão era chegar ao oceano Pacífico, pois era esse o "próprio deslocamento da civilização em geral". Aqui a análise de Euclides toma tons quase premonitórios, bem ao gosto de alguns de seus cultores. Ele acreditava que a luta por mercados e o surgimento do Oriente no cenário do comércio mundial fatalmente levariam a uma crise de "expansão imperialista", antepondo os EUA e o Japão. Por isso, era imperativo um processo integracionista não apenas no Brasil, mas deste com toda a América do Sul, união que seria capaz de fazer frente ao tempo da mais violenta "conquista de mercados".
Como que seguindo seu roteiro cartográfico, "Da Independência à República", a terceira parte do livro, busca mapear a história política do Brasil. Publicado em 1900 no jornal "O Estado de São Paulo", faz um balanço do século 19 brasileiro. Para Euclides, a unidade brasileira estruturou-se a partir da mentalidade criada no enraizamento das crenças católicas unidas às superstições medievais, ao fetichismo indígena e ao animismo africano, aliada ao fator social decisivo da escravidão. A história política do século 19 foi um penoso e contraditório desbaratamento desse universo, consumado na "revolução" republicana e abolicionista. O problema do novo século seria então instituir os valores universais ali onde existiam apenas os fanatismos e dar forma politicamente moderna a uma sociedade "desfibrada". A revolução republicana apenas iniciava sua efetivação.
Depois da cartografia geo-econômica e do mapeamento das tarefas de nossas forças políticas progressistas, Euclides passa, na quarta parte do livro ("Estrelas Indecifráveis"), a delimitar a cartografia de suas constelações pessoais. Reflexões aparentemente soltas tratam de estrelas, religiões e ciência na busca do desvendamento de "nosso próprio destino". De Kepler, toma o exemplo de um espírito que passava, "com o mesmo entusiasmo fervoroso, do rigorismo impecável das suas linhas geométricas para os êxtases arrebatados dos crentes". Posso estar enganado, mas me parece que aqui o autor, buscando fechar o universo de suas obsessões pessoais, caracteriza a visão do intelectual engajado que planejou para si mesmo.


Francisco Alambert é professor do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista e membro da comissão executiva da revista "praga" (Hucitec).


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