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Obra clássica do século 1º a.C. é traduzida
A ciência do arquiteto
LUIZ ARMANDO BAGOLIN
Deve consternar o leitor o fato de a primeira tradução integral para a língua
portuguesa dos célebres "Dez Livros sobre Arquitetura" ou simplesmente "Da
Arquitetura", de Vitrúvio, escritos em
meados do século 1º a.C., chegar às estantes com falhas e um exíguo corpo de notas explicativas. É preciso reconhecer que
traduzir os textos vitruvianos, recolhidos
de vários manuscritos (uma vez que o
texto autógrafo se perdeu) não é tarefa fácil. Os parágrafos são, muitas vezes, lacônicos, fragmentários. O texto foi escrito
rudemente no gênero médio (instrutivo)
e é muito diferente, quanto à elocução, de
obras como a de Varrão, "De Lingua Latina", por exemplo.
Leon Battista Alberti, em "De Re Aedificatoria", escrito na segunda metade do
século 15, censurou Vitrúvio por tais imperfeições, pois, aparentemente, ele escreveu "numa linguagem que não é latina
nem grega", dificultando a sua compreensão pelos modernos. Tais dificuldades poderiam redimir qualquer tentativa
de tradução desse material, tornando-a
uma escolha necessária entre outras inúmeras possibilidades que se abrem ante
os olhos do tradutor. Mas é exatamente
dessa falta de abertura que se ressente a
atual publicação, pois parece admitir um
trânsito seguro e unívoco entre categorias de pensamento de épocas distintas,
não assinalando ao leitor nem as imperfeições nem os significados particulares
expressos no texto vitruviano, muitas vezes irrecuperáveis para os nosso dias.
Peço aqui licença, a título de contribuição, para apontar duas passagens que poderiam ser melhor elaboradas nessa tradução. Em Vitrúvio, 1º,1º,1 (sigo a tradução francesa "Les Belles Lettres", Paris,
1990), o texto diz: "A ciência do arquiteto
é ornada de muitas disciplinas e várias
erudições, cujo juízo aprova toda obra
concluída com outras artes. Ela nasce de
indústria e de raciocínio". Na tradução
atual temos o seguinte:"A ciência do arquiteto é ornada por muitos conhecimentos e saberes variados, pelos critérios
da qual são julgadas todas as obras das
demais artes. Ela nasce da prática e da
teoria".
Indústria e raciocínio
Ora, se na primeira parte do parágrafo
verificamos a tomada de partido por uma
não literalidade na tradução, talvez, a fim
de tornar a leitura do texto em português
mais agradável ao leitor (é importante
observar que as tópicas copiosidade/
muitos/ e variedade/variados/ foram
mantidas); na segunda parte, no entanto,
o tradutor falha quanto à compreensão
de categorias semânticas específicas no
texto vitruviano. Assim, "indústria" e
"raciocínio" anacronizam-se em "prática" e "teoria", termos por demais ideologizados em nossa época.
Em um outro trecho, o tradutor nos
traz o seguinte: "As imagens da disposição, que em grego chamam-se "ideai" são
estas: planta, elevação e perspectiva.
Planta é o uso metricamente definido da
régua e do compasso(...). Elevação, por
sua vez, é a imagem da fachada metricamente representada segundo o partido
da futura obra, assim como perspectiva é
o esboço da fachada e das laterais em fuga, concorrendo todas as suas linhas para
o ponto central de uma circunferência".
Em primeiro lugar, "planta", "elevação" e "perspectiva" não servem como
traduções absolutas, tendo-se em vista as
regras de representação gráfico-arquitetônica modernas, de "ichnographia",
"orthografia" e "scaenographia". Além
disso, o tradutor perde a oportunidade de
explicar como "perspectiva", termo inexistente à época de Vitrúvio, poderia ser
apresentado supostamente como conceito derivado de "cenografia". Também
não refere a utilização de "imagem pintada ou colorida segundo cálculos ou razões" na apresentação de "ortografia"
(nem sequer em nota o suposto aparecimento de cor é mencionado), tomando
apenas a expressão "metricamente representados" como suficiente. E "cenografia" não é "esboço de fachada e laterais
em fuga" (o que nos levaria a afirmar a
existência de perspectiva de ponto cêntrico, como a utilizada por Brunelleschi, no
tempo de Vitrúvio), mas o "traçado" das
mesmas em "abscendências" (recuos)
"que correspondem a todas as linhas que
estão no entorno do centro".
Não desejo e nem posso me alongar
muito nestas considerações, mas seria
muito interessante que a atual tradução
pudesse ser cuidadosamente revisada e o
corpo de notas ampliado, a exemplo da
edição francesa aqui citada.
Quanto à apresentação da tradução,
feita pelo professor Júlio Roberto Katinsky, devo dizer que, apesar da preciosa
colaboração no que concerne ao esboço
de uma fortuna do texto vitruviano, suas
idéias acerca da inserção de Vitrúvio no
quadro social de sua época e sobre o romano como uma espécie de precursor do
"ideário renascentista" causam estranheza. Como também é estranha a identificação do texto vitruviano com os gêneros
"tratado" e "poesia" ou, de qualquer modo, como transmissor sistematizado de
"tecnologia antiga" oposta, porquanto
interessada em descrições ordenadas de
práticas de trabalho, à "tecnologia moderna", para a qual consentiu a crítica
moderna com o nome de Filippo Brunelleschi.
O professor Katinsky parece corroborar, em sua apresentação, a crítica (tenha-se em mente Argan, Zevi e outros) segundo a qual Brunelleschi é entendido como
ponto de ruptura fatual e, assim, despreza as tópicas circulantes à época de Alberti, Manetti e Vasari, dirigidas, em particular, ao louvor dos artífices florentinos. Para Katinsky, se atividades outrora consideradas menores, ou "vis", foram alçadas
à categoria de "nobres" à época de Brunelleschi, o encarecimento das mesmas no
tempo de Vitrúvio se dá pela retórica,
"thécne" por excelência, conforme diz,
pois compreensiva de todas as "thécnes"
particulares que são fundamentos da cidade. Em seu texto, contudo, Vitrúvio
restringe as ciências partícipes do gênero
médio, "mediocres scientias", nas quais
devem ser instruídos os arquitetos, louvados, exatamente por deterem erudição
parcimoniosa nessas muitas artes.
Katinsky lança-se, então, à decifração
da intenção subjacente nos escritos vitruvianos. A própria recolha de comentários
sobre "tecnologia antiga" por parte de
Vitrúvio permite sabê-la: o arquiteto está,
antes de tudo, preocupado com a sobrevivência da Pólis. O texto latino, portanto, se endereçaria a poderosos, governantes e construtores ciosos pelo bem-estar
da cidade. Para Katinsky, tal intenção poderia ser revalidada pela sociedade atual
desde que a mesma se queira organizada
politicamente também com o auxílio dos
conhecimentos do arquiteto. Ou como
diz: "O que subsiste de seu livro, ainda
hoje, é o desafio proposto: aceitaremos
como legítima a proposição da formação
de arquitetos de conhecimento incompleto, necessário exclusivamente a atender o momento e o lugar, ou reafirmamos a formação técnica integrada na visão maior da República, participando
criativamente do destino comum?". Resta saber: a que república o professor se refere?
Da Arquitetura
Marco Vitrúvio Polião
Apresentação: Júlio Roberto Katinsky
Tradução e notas: Marco Aurélio Lagonegro
Hucitec (tel. 0/xx/11/2409318)
248 págs., R$ 29,00
Luiz Armando Bagolin é artista plástico.
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