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Correspondência revela a trajetória de Darwin até "Origem das Espécies"
A evolução de Darwin
NELIO BIZZO
O estudo de livros e obras acabadas é,
por assim dizer, uma atividade acadêmica consagrada. De certa forma, manuscritos e rascunhos são vistos como produtos parciais, inacabados, incompletos,
quando não verdadeiramente imperfeitos, que não poderiam compor a bibliografia de uma tese sem nutrir alguma
desconfiança em seus examinadores.
Cartas trocadas entre amigos e familiares,
em se tratando de cientistas famosos, poderiam talvez inspirar biógrafos sequiosos de detalhes picantes, como a identidade da misteriosa "Dama de Arosa", a
companheira secreta de Erwin Shrödinger em sua "escapada" nos Alpes, onde
concebeu as teorias que o levariam ao
Prêmio Nobel em 1933. No entanto, a
partir da criação do Item ("Institut des
Textes et Manuscrits Modernes") no
CNRS, o Centro Nacional de Pesquisa
Científica da França, há pouco mais de 20
anos, o estudo de rascunhos e versões incompletas ganhou uma instituição própria e status científico mediante a crítica
genética.
Aqueles que conhecem o mais famoso e
emblemático livro de Charles Darwin,
"Origem das Espécies", sabem que nada
há de mais tórrido, em se tratando de gênero literário, do que a exposição metódica e detalhada de exemplos de plantas e
animais que não nos são familiares, ao
mesmo tempo em que são nomeadas
pessoas de quem nunca ouvimos falar.
Detalhe importante, a profusão de nomes
e citações é feita sem que tivessem sido
apensas notas bibliográficas, imposição
já consagrada à época. Postura típica do
intelectual brasileiro -que, como diria
nosso mordaz Câmara Cascudo, ao fazer
dos livros travesseiro, transforma sapo
em bailarina-, tal estilo já recebeu adjetivos como "cativante", "excitante", "surpreendente" etc., como se fosse romance
magnético, daqueles que não se consegue
deixar de ler até o fim caso a primeira página seja vencida.
Muitos se deixaram influenciar pela fama de autor best seller que Darwin ganhou com "Origem das Espécies", uma
fama tão disseminada quanto inverídica,
além de desnecessária, diga-se de passagem. Ele teria se esgotado no primeiro dia
de vendas, como se o público tivesse
acorrido às livrarias fazendo filas para
comprá-lo, o que teria obrigado o editor a
reimprimir o livro sem parar. É bem verdade que "Origem" foi divulgado com
muito cuidado e de forma planejada.
Uma resenha do livro de Darwin apareceu no jornal literário de maior prestígio
da época (o "Atheneum"), no sábado de
19 de novembro de 1859, e fazia alguma
sensação do livro, por exemplo, com a
pergunta: "Se um macaco se tornou um
homem, o que um homem não poderá
vir a se tornar?".
No entanto, a atenção do público estava
dirigida para outro lançamento da mesma fornada, a narrativa do capitão
M'Clintock sobre o paradeiro de Sir
Franklin, que chefiara uma desastrosa
expedição em busca da "passagem norte", a ligação entre o Atlântico e o Pacífico
através do Ártico.
O lançamento dos livros editados por
John Murray foi feito em uma feira de
atacado, apenas para livreiros, no dia 22
de novembro, três dias depois da estimulante resenha. É bem possível que o editor
tenha condicionado a venda deste livro,
pelo qual todos esperavam, à compra de
outros títulos menos apelativos de sua
editora, como o de Darwin. De fato, foram vendidos todos os 7.600 exemplares
de M'Clintock e 1.500 exemplares de Darwin, que corresponderam a 8% do total
das vendas da feira. No entanto, Murray
tinha apenas 1.192 exemplares disponíveis para entrega. A solução foi providenciar uma reimpressão do livro para honrar os negócios feitos no atacado. A terceira edição de "Origem das Espécies" teve que esperar 16 meses (abril de 1861), e a
quarta apareceu apenas seis anos depois,
em dezembro de 1866. Nesse período, a
venda média do livro foi inferior a 80
exemplares por mês, o que configura,
mesmo para a época, um quadro totalmente diferente daquele de best seller.
Se apenas 80 leitores contemporâneos
de Darwin se animavam a comprar seu livro a cada mês, como terá sido possível a
ele perturbar tanto as bem estabelecidas
estruturas anglicanas da Inglaterra vitoriana? Ora, quantos leitores atentos teve o
"Philosophiae Naturalis Principia Mathematica", de Issac Newton, em 1687?
Mesmo sem nos dar pistas do tipo de
criatura que o ser humano poderia vir a
dar origem no futuro, o livro de Darwin
trouxe a certeza de que as verdades bem
estabelecidas da época estavam irremediavelmente caducas.
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A crítica genética
Por sua importância teórica e estilo tijolesco, por assim dizer, "Origem das Espécies" tem sido estudado há mais de
cem anos com as ferramentas que agora
constituem a indumentária da crítica genética. Logo em 1888, seis anos depois da
morte de Charles Darwin, seu filho Francis publicava uma transcrição de suas
cartas pessoais, com um opúsculo autobiográfico dirigido aos filhos. Reimpressa
em 1959, por ocasião do centenário do
polêmico lançamento de "Origem", a
versão franciscana de "Life and Letters of
Charles Darwin" se mostrava exaurida
por diversos motivos. A organização das
cartas pessoais seguia um roteiro temático que procurava evidenciar um experimentador empírico persistente, horticultor ingênuo que seguia os preceitos de
Francis Bacon à risca, justapondo idéias
sem tentar nelas influir. Ele enxertava
brotos e pensamentos esperando pacientemente pelo resultado, fossem frutos
exóticos ou teorias iconoclastas. Além
disso, a transcrição da enigmática caligrafia de Darwin era problemática em
muitos trechos.
A família tinha doado todo o material
pessoal de Darwin para a Universidade
de Cambridge, onde ele próprio estudara
e vira seu filho tornar-se catedrático de
botânica. A universidade organizou meticulosamente suas cartas (são mais de 11
mil ao todo) e biblioteca pessoal, inclusive sua coleção de separatas, tornando-as
disponíveis para pesquisas. Foi lá, em sua
Sala de Manuscritos, que um grupo liderado por Frederick Burkhardt e Marsha
Richmond trabalhou, durante a década
de 1980 e boa parte da seguinte, na nova
transcrição de todo o material epistolar
de Darwin, que resultou em "The Correspondence of Charles Darwin". Ao contrário do que tinha feito Francis Darwin,
o material foi organizado de forma cronológica. Os sete primeiros volumes dessa obra portentosa cobrem o período que
se estende desde a infância até o final de
1859, quando "Origem das Espécies" veio
finalmente a lume. Por iniciativa da Editora Unesp e da Cambridge University
Press, temos o privilégio de ver agora um
volume condensado das cartas desse período traduzido e acessível ao grande público, com uma seleção feita pelo próprio
Burkhardt.
Como Charles Darwin modificou suas
idéias sobre a evolução das espécies, das
quais "Origem" é tributário? Seguramente as cartas que escreveu ao longo dos cinco anos em que esteve a bordo do Beagle
contêm pistas importantes. Ouvimos à
farta que Darwin despertou dos braços
de Morfeu no arquipélago de Galápagos,
já longe dos Andes, quando então seus
tentilhões teriam lhe sussurrado o segredo de "Origem" ao ouvido. À moda do
boato do best seller, sua correspondência
pessoal mostra um quadro radicalmente
diferente, um geólogo amador escavando
avidamente os Andes, excitado por encontrar conchas marinhas fossilizadas
em leitos praianos a 4.000 metros de altitude, colecionando descobertas que punham por terra tudo o que estudara no
Jesus College de Cambridge.
Ao rever o que tinha sido levado a acreditar, escrevia tanto quanto podia para
sua irmã mais velha, Susan. Em carta de
23 de abril de 1835, ele escreve o que talvez seja a carta mais importante para entender a forma como modificou sua visão
sobre a idade da Terra. Quanto tempo
uma floresta de araucárias demoraria para ser soterrada pelo mar e depois subsequentemente elevada até "13 & 14 mil pés
de altitude"? Os 5.000 anos bíblicos literais seriam suficientes? "Se esse resultado
for considerado comprovado, será um
dado importantíssimo na teoria da formação do mundo", confidenciou ele à
Susan, para em seguida detalhar as evidências que o obrigavam a repensar suas
idéias sobre a origem do mundo. A um
passo da grande conclusão, arremata a
uma irmã que nada sabia de geologia:
"Temo que me digas que estou sendo
prolixo com minhas descrições & teorias
geológicas".
Um parágrafo a mais e talvez as teorias
sobre a formação de "Origem" fossem
outras. Como vemos, é dessa forma que a
leitura de Darwin pode ser verdadeiramente cativante, excitante e surpreendente.
As Cartas de Darwin.
Uma Seleta, 1825-1859
Frederick Burkhardt (editor)
Tradução: Vera Ribeiro
Editora Unesp
(Tel. 0/xx/11/232-7171)
340 págs., R$ 32,00
Nelio Bizzo é biólogo e professor da Faculdade de
Educação da USP.
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