São Paulo, sábado, 08 de abril de 2000


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Correspondência revela a trajetória de Darwin até "Origem das Espécies"

A evolução de Darwin


NELIO BIZZO

O estudo de livros e obras acabadas é, por assim dizer, uma atividade acadêmica consagrada. De certa forma, manuscritos e rascunhos são vistos como produtos parciais, inacabados, incompletos, quando não verdadeiramente imperfeitos, que não poderiam compor a bibliografia de uma tese sem nutrir alguma desconfiança em seus examinadores. Cartas trocadas entre amigos e familiares, em se tratando de cientistas famosos, poderiam talvez inspirar biógrafos sequiosos de detalhes picantes, como a identidade da misteriosa "Dama de Arosa", a companheira secreta de Erwin Shrödinger em sua "escapada" nos Alpes, onde concebeu as teorias que o levariam ao Prêmio Nobel em 1933. No entanto, a partir da criação do Item ("Institut des Textes et Manuscrits Modernes") no CNRS, o Centro Nacional de Pesquisa Científica da França, há pouco mais de 20 anos, o estudo de rascunhos e versões incompletas ganhou uma instituição própria e status científico mediante a crítica genética.
Aqueles que conhecem o mais famoso e emblemático livro de Charles Darwin, "Origem das Espécies", sabem que nada há de mais tórrido, em se tratando de gênero literário, do que a exposição metódica e detalhada de exemplos de plantas e animais que não nos são familiares, ao mesmo tempo em que são nomeadas pessoas de quem nunca ouvimos falar. Detalhe importante, a profusão de nomes e citações é feita sem que tivessem sido apensas notas bibliográficas, imposição já consagrada à época. Postura típica do intelectual brasileiro -que, como diria nosso mordaz Câmara Cascudo, ao fazer dos livros travesseiro, transforma sapo em bailarina-, tal estilo já recebeu adjetivos como "cativante", "excitante", "surpreendente" etc., como se fosse romance magnético, daqueles que não se consegue deixar de ler até o fim caso a primeira página seja vencida.
Muitos se deixaram influenciar pela fama de autor best seller que Darwin ganhou com "Origem das Espécies", uma fama tão disseminada quanto inverídica, além de desnecessária, diga-se de passagem. Ele teria se esgotado no primeiro dia de vendas, como se o público tivesse acorrido às livrarias fazendo filas para comprá-lo, o que teria obrigado o editor a reimprimir o livro sem parar. É bem verdade que "Origem" foi divulgado com muito cuidado e de forma planejada. Uma resenha do livro de Darwin apareceu no jornal literário de maior prestígio da época (o "Atheneum"), no sábado de 19 de novembro de 1859, e fazia alguma sensação do livro, por exemplo, com a pergunta: "Se um macaco se tornou um homem, o que um homem não poderá vir a se tornar?".
No entanto, a atenção do público estava dirigida para outro lançamento da mesma fornada, a narrativa do capitão M'Clintock sobre o paradeiro de Sir Franklin, que chefiara uma desastrosa expedição em busca da "passagem norte", a ligação entre o Atlântico e o Pacífico através do Ártico.
O lançamento dos livros editados por John Murray foi feito em uma feira de atacado, apenas para livreiros, no dia 22 de novembro, três dias depois da estimulante resenha. É bem possível que o editor tenha condicionado a venda deste livro, pelo qual todos esperavam, à compra de outros títulos menos apelativos de sua editora, como o de Darwin. De fato, foram vendidos todos os 7.600 exemplares de M'Clintock e 1.500 exemplares de Darwin, que corresponderam a 8% do total das vendas da feira. No entanto, Murray tinha apenas 1.192 exemplares disponíveis para entrega. A solução foi providenciar uma reimpressão do livro para honrar os negócios feitos no atacado. A terceira edição de "Origem das Espécies" teve que esperar 16 meses (abril de 1861), e a quarta apareceu apenas seis anos depois, em dezembro de 1866. Nesse período, a venda média do livro foi inferior a 80 exemplares por mês, o que configura, mesmo para a época, um quadro totalmente diferente daquele de best seller.
Se apenas 80 leitores contemporâneos de Darwin se animavam a comprar seu livro a cada mês, como terá sido possível a ele perturbar tanto as bem estabelecidas estruturas anglicanas da Inglaterra vitoriana? Ora, quantos leitores atentos teve o "Philosophiae Naturalis Principia Mathematica", de Issac Newton, em 1687? Mesmo sem nos dar pistas do tipo de criatura que o ser humano poderia vir a dar origem no futuro, o livro de Darwin trouxe a certeza de que as verdades bem estabelecidas da época estavam irremediavelmente caducas.
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A crítica genética
Por sua importância teórica e estilo tijolesco, por assim dizer, "Origem das Espécies" tem sido estudado há mais de cem anos com as ferramentas que agora constituem a indumentária da crítica genética. Logo em 1888, seis anos depois da morte de Charles Darwin, seu filho Francis publicava uma transcrição de suas cartas pessoais, com um opúsculo autobiográfico dirigido aos filhos. Reimpressa em 1959, por ocasião do centenário do polêmico lançamento de "Origem", a versão franciscana de "Life and Letters of Charles Darwin" se mostrava exaurida por diversos motivos. A organização das cartas pessoais seguia um roteiro temático que procurava evidenciar um experimentador empírico persistente, horticultor ingênuo que seguia os preceitos de Francis Bacon à risca, justapondo idéias sem tentar nelas influir. Ele enxertava brotos e pensamentos esperando pacientemente pelo resultado, fossem frutos exóticos ou teorias iconoclastas. Além disso, a transcrição da enigmática caligrafia de Darwin era problemática em muitos trechos.
A família tinha doado todo o material pessoal de Darwin para a Universidade de Cambridge, onde ele próprio estudara e vira seu filho tornar-se catedrático de botânica. A universidade organizou meticulosamente suas cartas (são mais de 11 mil ao todo) e biblioteca pessoal, inclusive sua coleção de separatas, tornando-as disponíveis para pesquisas. Foi lá, em sua Sala de Manuscritos, que um grupo liderado por Frederick Burkhardt e Marsha Richmond trabalhou, durante a década de 1980 e boa parte da seguinte, na nova transcrição de todo o material epistolar de Darwin, que resultou em "The Correspondence of Charles Darwin". Ao contrário do que tinha feito Francis Darwin, o material foi organizado de forma cronológica. Os sete primeiros volumes dessa obra portentosa cobrem o período que se estende desde a infância até o final de 1859, quando "Origem das Espécies" veio finalmente a lume. Por iniciativa da Editora Unesp e da Cambridge University Press, temos o privilégio de ver agora um volume condensado das cartas desse período traduzido e acessível ao grande público, com uma seleção feita pelo próprio Burkhardt.
Como Charles Darwin modificou suas idéias sobre a evolução das espécies, das quais "Origem" é tributário? Seguramente as cartas que escreveu ao longo dos cinco anos em que esteve a bordo do Beagle contêm pistas importantes. Ouvimos à farta que Darwin despertou dos braços de Morfeu no arquipélago de Galápagos, já longe dos Andes, quando então seus tentilhões teriam lhe sussurrado o segredo de "Origem" ao ouvido. À moda do boato do best seller, sua correspondência pessoal mostra um quadro radicalmente diferente, um geólogo amador escavando avidamente os Andes, excitado por encontrar conchas marinhas fossilizadas em leitos praianos a 4.000 metros de altitude, colecionando descobertas que punham por terra tudo o que estudara no Jesus College de Cambridge.
Ao rever o que tinha sido levado a acreditar, escrevia tanto quanto podia para sua irmã mais velha, Susan. Em carta de 23 de abril de 1835, ele escreve o que talvez seja a carta mais importante para entender a forma como modificou sua visão sobre a idade da Terra. Quanto tempo uma floresta de araucárias demoraria para ser soterrada pelo mar e depois subsequentemente elevada até "13 & 14 mil pés de altitude"? Os 5.000 anos bíblicos literais seriam suficientes? "Se esse resultado for considerado comprovado, será um dado importantíssimo na teoria da formação do mundo", confidenciou ele à Susan, para em seguida detalhar as evidências que o obrigavam a repensar suas idéias sobre a origem do mundo. A um passo da grande conclusão, arremata a uma irmã que nada sabia de geologia: "Temo que me digas que estou sendo prolixo com minhas descrições & teorias geológicas".
Um parágrafo a mais e talvez as teorias sobre a formação de "Origem" fossem outras. Como vemos, é dessa forma que a leitura de Darwin pode ser verdadeiramente cativante, excitante e surpreendente.



As Cartas de Darwin. Uma Seleta, 1825-1859
Frederick Burkhardt (editor)
Tradução: Vera Ribeiro
Editora Unesp (Tel. 0/xx/11/232-7171)
340 págs., R$ 32,00




Nelio Bizzo é biólogo e professor da Faculdade de Educação da USP.


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