São Paulo, sábado, 08 de abril de 2000


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Coletânea discute relação entre poder público e desenvolvimento econômico

Lógica do capitalismo global


OSWALDO MUNTEAL FILHO

Nos últimos anos, reapareceu a discussão sobre o Estado. Intelectuais, "estadistas" do G-7, figuras da sociedade civil indagam acerca dos caminhos do Estado ou sobre a relação entre poder público e desenvolvimento econômico.
"Estados e Moedas", numa perspectiva histórica, propõe-se a debater essa questão a partir de uma investigação da origem e do desenvolvimento da crise atual do Estado, tomando por fio os efeitos do processo de globalização nos dois hemisférios. Para tanto, busca compreender a curva histórica irregular da ação estatal no que tange às estreitas relações das potências hegemônicas com as flutuações monetárias, crises cambiais e movimentos abruptos de valorização/desvalorização das moedas nos anos recentes.
Outro centro de discussão refere-se às razões estruturais que levaram aos picos de desenvolvimento e aos ciclos, muitas vezes longos, de depressão e estagnação econômica. Examina-se tanto a prosperidade dos Estados nacionais que disputam um lugar no núcleo orgânico da economia capitalista como as fontes que deram forma e consistência ao ideário das teorias de desenvolvimento erigidas no século 20.
Diferentemente do usual em coletâneas, "Estados e Moedas" apresenta invejável homogeneidade. Embora o conteúdo dos trabalhos seja diversificado, a equipe demonstra reciprocidade na pesquisa e independência nos diagnósticos a partir dos estudos de caso, da Coréia à Alemanha. Além da perspectiva teórica comum de um capitalismo histórico, a coerência do trabalho deve-se também ao fato de que o livro resulta de um trabalho coletivo que vem de longa data.
"Estados e Moedas" atinge um patamar mais conclusivo em relação ao mapa da globalização esboçado por esse mesmo grupo em livros anteriores, particularmente em "Poder e Dinheiro: Uma Economia Política da Globalização" (organizado por José Luís Fiori e Maria da Conceição Tavares). Os articulistas escrevem a partir de uma tradição de pensamento econômico e social brasileiro associada à dimensão internacional da interpretação do Brasil, para a qual nosso país faz parte do mundo e a sua face exógena deve ser identificada e estudada em suas conexões com as dimensões endógenas da nossa sociedade. Relança as bases de uma compreensão que vai além do "local"; propõe a retomada de um conhecimento comprometido com parâmetros universais e nesse programa inclui o Brasil.
Além de combinar o olhar periférico com o estudo do núcleo hegemônico do capitalismo, "Estados e Moedas" também prioriza uma relação com a temporalidade -inspirada na noção de tempo longo difundida por Fernand Braudel- que procura conciliar o olhar no acontecimento, nas flutuações conjunturais, com o entendimento das estruturas.

A vocação dos Estados
A compreensão do sistema internacional e da ordem econômica imposta pelo padrão-ouro permeia a lógica de funcionamento da interação entre Estados e mercados no século 20. Braudel -citado por Fiori- lembra que o sistema de gestão do capitalismo contemporâneo é tributário de um legado secular "de grandes e sistemáticos lucros que permitiram ao capitalismo prosperar e se expandir indefinidamente nos últimos quinhentos ou seiscentos anos".
Uma das referências do primeiro bloco do livro "Geopolítica e Sistemas Monetários" é Max Weber, em especial sua reflexão acerca do papel da força e da violência na política, indissociável da visão do desenvolvimento capitalista como uma permanente "luta de dominação" entre nações, o que engendrou nos Estados e nos capitais uma espécie de compulsão ao império e à globalidade. Nesse sentido, o sistema interestatal e o próprio sistema capitalista seriam desde sua origem, e a um só tempo, nacional e global -uma tensão decisiva para compreender a lógica do "capitalismo histórico". Essa retomada de Max Weber, na medida em que permite estabelecer uma relação permanente entre os Estados, concilia a história do conflito pela hegemonia do núcleo orgânico do capitalismo com as formas "tardias" e dependentes de inserção no espaço global.
Luiz Gonzaga Belluzzo, Carlos Medeiros e Franklin Serrano prolongam essa reflexão teórica que explica a estrutura lógica e confere ossatura ao livro. Belluzzo retoma a tese de "O Longo Século 20" de Giovanni Arrighi como eixo para sua explicação do papel do capital financeiro na história do capitalismo. Indaga se a acumulação de dinheiro é um ponto fora da curva na história do capitalismo ou faz parte da lógica dos mercados financeiros contemporâneos. Medeiros e Serrano, por sua vez, constroem uma espécie de tipologia histórica dos casos nacionais de sucesso de desenvolvimento do capitalismo. Casos excepcionais que ocorrem num "espaço-tempo" definido pelas regras e hierarquias impostas pelos sucessivos sistemas monetários internacionais e pela dinâmica de conflitos geopolíticos que abrem e fecham "janelas de oportunidade" extremamente seletivas.
Na "Introdução" ao livro, Fiori percorre mais de um século de pensamento ocidental. Qualifica os momentos em que ocorrem saltos na teoria econômica e no pensamento político em função de demandas estruturais do capitalismo, valendo-se de uma utilização precisa de "A Grande Transformação", de Karl Polanyi, que vai além da tese do caminho da reciprocidade das trocas.
"Estados e Moedas" privilegia a história da historiografia do capitalismo. Essa opção metodológica abriu espaço para os estudos de caso distribuídos pelas outras três partes do livro. A abordagem de conjunturas específicas concentra-se nos elementos empíricos, em estreita conexão com a análise dos destinos dos Estados de "capitalismo tardio". Aloísio Teixeira, José Carlos Braga, Ernani Teixeira Filho e Luís Fernandes dedicaram-se respectivamente aos Estados Unidos, Alemanha, Japão e Rússia, expondo as alternativas de desenvolvimento que se esboçaram, concretizaram ou fracassaram no decorrer deste século.
Esses países integram um núcleo que, segundo Wallerstein, atuou em todos os acontecimentos importantes do século 20 (inclusive na maioria dos confrontos). EUA, Alemanha, Japão e Rússia afirmaram-se como potências a partir de modelos díspares de organização dos meios de administração, do recurso à força, das estratégias para o crescimento e também no padrão de intervenção estatal. Outro aspecto relevante desses estudos diz respeito ao modo de regulação do emprego e dos salários, com a mudança de uma regulação de tipo concorrencial para monopolista.

Moinho satânico
O Brasil aparece em "Estados e as Moedas" de duas maneiras. Em primeiro lugar, nos estudos de Conceição Tavares, José Carlos Miranda, Wilson Cano, Plínio Sampaio Junior e Luciano Coutinho. Em outro plano, pela revitalização de um pensamento próprio sobre a mundialização confrontada à crise brasileira.
Wilson Cano estuda, de forma comparada, os impactos da reestruturação econômica na periferia latino-americana. Avalia também o preço do ajuste de políticas liberalizantes diante do espólio deixado por décadas de autoritarismo. Luciano Coutinho pensa alternativas ao comparar desfechos semelhantes das crises asiática e brasileira. Põe em xeque a desorganização das finanças públicas, a perda de dinamismo da economia, a crise do mercado interno e a perda de competitividade do Brasil frente às exigências do comércio exterior.
Maria da Conceição Tavares apresenta um dos estudos mais ricos da coletânea. A formação do Brasil é recuperada desde a colonização, passando pelo Império até as múltiplas experiências republicanas. Tavares sabe, e bem, que a história do Brasil foi durante bom tempo a história de Portugal, no que retoma Celso Furtado e Caio Prado Jr.
A redescoberta do território e do Império parece fundamental para que tenhamos uma noção dos elos que associam o brasileiro ao seu passado. Esta memória é escassa hoje em dia. Afinal de contas o passado é Portugal, portanto, o "atraso", e o presente é a República brasileira ainda em busca dos seus rumos, ora voltada para o Ocidente, ora flertando com o despotismo oriental.
A periferia ameaçada de ser o "celeiro" de uma sociedade sem trabalho, regulada pelas flutuações do câmbio, pressão da dívida pública e controle sobre a taxa de juros, arrisca entrar no mundo globalizado com uma blindagem frágil. Segundo Belluzzo, o capitalismo hoje cada vez mais "é o regime de produção em que a riqueza acumulada sob a forma monetária está sempre disposta a dobrar-se sobre si mesma, na busca da auto-reprodução. D-D" e não D-M-D" é o processo em estado puro, adequado a seu conceito, livre dos incômodos e empecilhos de suas formas materiais particulares. Não se trata de uma deformação, mas do aperfeiçoamento de sua substância, na medida em que o dinheiro é o suposto e o resultado do processo de acumulação de riqueza no capitalismo". Assim a fragilidade do Estado, a produção voltada cada vez mais para o domínio e não para o consumo, a privatização generalizada parecem concorrer para uma espécie de feudalização do processo de globalização na periferia do capitalismo.



Estados e Moedas no Desenvolvimento das Nações
José Luís Fiori (org.)
Vozes (Tel. 0/xx/24/237-5112)
492 págs., R$ 38,00



Oswaldo Munteal Filho é professor de história moderna e contemporânea na Universidade do Estado do Rio de Janeiro e na Pontifícia Universidade Católica (RJ).


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