|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Coletânea discute relação entre poder público e desenvolvimento econômico
Lógica do capitalismo global
OSWALDO MUNTEAL FILHO
Nos últimos anos, reapareceu a
discussão sobre o Estado. Intelectuais, "estadistas" do G-7, figuras
da sociedade civil indagam acerca
dos caminhos do Estado ou sobre
a relação entre poder público e
desenvolvimento econômico.
"Estados e Moedas", numa
perspectiva histórica, propõe-se a
debater essa questão a partir de
uma investigação da origem e do
desenvolvimento da crise atual do
Estado, tomando por fio os efeitos
do processo de globalização nos
dois hemisférios. Para tanto, busca compreender a curva histórica
irregular da ação estatal no que
tange às estreitas relações das potências hegemônicas com as flutuações monetárias, crises cambiais e movimentos abruptos de
valorização/desvalorização das
moedas nos anos recentes.
Outro centro de discussão refere-se às razões estruturais que levaram aos picos de desenvolvimento e aos ciclos, muitas vezes
longos, de depressão e estagnação
econômica. Examina-se tanto a
prosperidade dos Estados nacionais que disputam um lugar no
núcleo orgânico da economia capitalista como as fontes que deram forma e consistência ao ideário das teorias de desenvolvimento erigidas no século 20.
Diferentemente do usual em coletâneas, "Estados e Moedas"
apresenta invejável homogeneidade. Embora o conteúdo dos trabalhos seja diversificado, a equipe
demonstra reciprocidade na pesquisa e independência nos diagnósticos a partir dos estudos de
caso, da Coréia à Alemanha. Além
da perspectiva teórica comum de
um capitalismo histórico, a coerência do trabalho deve-se também ao fato de que o livro resulta
de um trabalho coletivo que vem
de longa data.
"Estados e Moedas" atinge um
patamar mais conclusivo em relação ao mapa da globalização esboçado por esse mesmo grupo
em livros anteriores, particularmente em "Poder e Dinheiro:
Uma Economia Política da Globalização" (organizado por José
Luís Fiori e Maria da Conceição
Tavares). Os articulistas escrevem
a partir de uma tradição de pensamento econômico e social brasileiro associada à dimensão internacional da interpretação do Brasil, para a qual nosso país faz parte
do mundo e a sua face exógena
deve ser identificada e estudada
em suas conexões com as dimensões endógenas da nossa sociedade. Relança as bases de uma compreensão que vai além do "local";
propõe a retomada de um conhecimento comprometido com parâmetros universais e nesse programa inclui o Brasil.
Além de combinar o olhar periférico com o estudo do núcleo hegemônico do capitalismo, "Estados e Moedas" também prioriza
uma relação com a temporalidade
-inspirada na noção de tempo
longo difundida por Fernand
Braudel- que procura conciliar
o olhar no acontecimento, nas flutuações conjunturais, com o entendimento das estruturas.
A vocação dos Estados
A compreensão do sistema internacional e da ordem econômica imposta pelo padrão-ouro permeia a lógica de funcionamento
da interação entre Estados e mercados no século 20. Braudel -citado por Fiori- lembra que o sistema de gestão do capitalismo
contemporâneo é tributário de
um legado secular "de grandes e
sistemáticos lucros que permitiram ao capitalismo prosperar e se
expandir indefinidamente nos últimos quinhentos ou seiscentos
anos".
Uma das referências do primeiro bloco do livro "Geopolítica e
Sistemas Monetários" é Max Weber, em especial sua reflexão acerca do papel da força e da violência
na política, indissociável da visão
do desenvolvimento capitalista
como uma permanente "luta de
dominação" entre nações, o que
engendrou nos Estados e nos capitais uma espécie de compulsão
ao império e à globalidade. Nesse
sentido, o sistema interestatal e o
próprio sistema capitalista seriam
desde sua origem, e a um só tempo, nacional e global -uma tensão decisiva para compreender a
lógica do "capitalismo histórico".
Essa retomada de Max Weber, na
medida em que permite estabelecer uma relação permanente entre os Estados, concilia a história
do conflito pela hegemonia do
núcleo orgânico do capitalismo
com as formas "tardias" e dependentes de inserção no espaço global.
Luiz Gonzaga Belluzzo, Carlos
Medeiros e Franklin Serrano prolongam essa reflexão teórica que
explica a estrutura lógica e confere ossatura ao livro. Belluzzo retoma a tese de "O Longo Século 20"
de Giovanni Arrighi como eixo
para sua explicação do papel do
capital financeiro na história do
capitalismo. Indaga se a acumulação de dinheiro é um ponto fora
da curva na história do capitalismo ou faz parte da lógica dos
mercados financeiros contemporâneos. Medeiros e Serrano, por
sua vez, constroem uma espécie
de tipologia histórica dos casos
nacionais de sucesso de desenvolvimento do capitalismo. Casos
excepcionais que ocorrem num
"espaço-tempo" definido pelas
regras e hierarquias impostas pelos sucessivos sistemas monetários internacionais e pela dinâmica de conflitos geopolíticos que
abrem e fecham "janelas de oportunidade" extremamente seletivas.
Na "Introdução" ao livro, Fiori
percorre mais de um século de
pensamento ocidental. Qualifica
os momentos em que ocorrem
saltos na teoria econômica e no
pensamento político em função
de demandas estruturais do capitalismo, valendo-se de uma utilização precisa de "A Grande
Transformação", de Karl Polanyi,
que vai além da tese do caminho
da reciprocidade das trocas.
"Estados e Moedas" privilegia a
história da historiografia do capitalismo. Essa opção metodológica
abriu espaço para os estudos de
caso distribuídos pelas outras três
partes do livro. A abordagem de
conjunturas específicas concentra-se nos elementos empíricos,
em estreita conexão com a análise
dos destinos dos Estados de "capitalismo tardio". Aloísio Teixeira, José Carlos Braga, Ernani Teixeira Filho e Luís Fernandes dedicaram-se respectivamente aos Estados Unidos, Alemanha, Japão e
Rússia, expondo as alternativas
de desenvolvimento que se esboçaram, concretizaram ou fracassaram no decorrer deste século.
Esses países integram um núcleo que, segundo Wallerstein,
atuou em todos os acontecimentos importantes do século 20 (inclusive na maioria dos confrontos). EUA, Alemanha, Japão e
Rússia afirmaram-se como potências a partir de modelos díspares de organização dos meios de
administração, do recurso à força, das estratégias para o crescimento e também no padrão de
intervenção estatal. Outro aspecto relevante desses estudos diz
respeito ao modo de regulação do
emprego e dos salários, com a
mudança de uma regulação de tipo concorrencial para monopolista.
Moinho satânico
O Brasil aparece em "Estados e
as Moedas" de duas maneiras. Em
primeiro lugar, nos estudos de
Conceição Tavares, José Carlos
Miranda, Wilson Cano, Plínio
Sampaio Junior e Luciano Coutinho. Em outro plano, pela revitalização de um pensamento próprio sobre a mundialização confrontada à crise brasileira.
Wilson Cano estuda, de forma
comparada, os impactos da reestruturação econômica na periferia latino-americana. Avalia também o preço do ajuste de políticas
liberalizantes diante do espólio
deixado por décadas de autoritarismo. Luciano Coutinho pensa
alternativas ao comparar desfechos semelhantes das crises asiática e brasileira. Põe em xeque a desorganização das finanças públicas, a perda de dinamismo da economia, a crise do mercado interno e a perda de competitividade
do Brasil frente às exigências do
comércio exterior.
Maria da Conceição Tavares
apresenta um dos estudos mais ricos da coletânea. A formação do
Brasil é recuperada desde a colonização, passando pelo Império
até as múltiplas experiências republicanas. Tavares sabe, e bem,
que a história do Brasil foi durante bom tempo a história de Portugal, no que retoma Celso Furtado
e Caio Prado Jr.
A redescoberta do território e
do Império parece fundamental
para que tenhamos uma noção
dos elos que associam o brasileiro
ao seu passado. Esta memória é
escassa hoje em dia. Afinal de
contas o passado é Portugal, portanto, o "atraso", e o presente é a
República brasileira ainda em
busca dos seus rumos, ora voltada
para o Ocidente, ora flertando
com o despotismo oriental.
A periferia ameaçada de ser o
"celeiro" de uma sociedade sem
trabalho, regulada pelas flutuações do câmbio, pressão da dívida
pública e controle sobre a taxa de
juros, arrisca entrar no mundo
globalizado com uma blindagem
frágil. Segundo Belluzzo, o capitalismo hoje cada vez mais "é o regime de produção em que a riqueza
acumulada sob a forma monetária está sempre disposta a dobrar-se sobre si mesma, na busca da
auto-reprodução. D-D" e não D-M-D" é o processo em estado puro, adequado a seu conceito, livre
dos incômodos e empecilhos de
suas formas materiais particulares. Não se trata de uma deformação, mas do aperfeiçoamento de
sua substância, na medida em que
o dinheiro é o suposto e o resultado do processo de acumulação de
riqueza no capitalismo". Assim a
fragilidade do Estado, a produção
voltada cada vez mais para o domínio e não para o consumo, a
privatização generalizada parecem concorrer para uma espécie
de feudalização do processo de
globalização na periferia do capitalismo.
Estados e Moedas
no Desenvolvimento
das Nações
José Luís Fiori (org.)
Vozes (Tel. 0/xx/24/237-5112)
492 págs., R$ 38,00
Oswaldo Munteal Filho é professor de história moderna e contemporânea na Universidade do Estado do Rio de Janeiro e na Pontifícia Universidade Católica (RJ).
Texto Anterior: Wilma Peres Costa: Os que fizeram a Guerra do Paraguai Próximo Texto: Juarez Guimarães: Dinâmicas do sindicalismo Índice
|