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Coleção de história terá dez volumes
Síntese da América Latina
LEANDRO KARNAL
A área de América colonial é tão escassa
em novidades no Brasil que qualquer lançamento já deveria ser comemorado como um evento notável. A imensa produção norte-americana, européia e da América hispânica quase nunca é traduzida.
Não nos referimos apenas às obras inovadoras e de vanguarda, mas clássicos de
quase quatro séculos, como os cronistas
Mendieta e Sahagún, do México, a obra
de Poma de Ayala, do Peru colonial e tantos outros. Da mesma forma, obras de referência da historiografia contemporânea, como os livros de John Murra e Nathan Wachtel sobre o mundo andino e a
obra de Serge Gruzinski sobre a colonização do imaginário, permanecem inacessíveis aos leitores menos especializados.
Neste quadro, a tradução da "História
de Cambridge sobre a América Latina" é
um empreendimento corajoso e digno
dos maiores elogios. A associação da
Edusp com a Fundação Alexandre Gusmão promete a obra em dez volumes, dos
quais o primeiro e o segundo já estão disponíveis.
Convém ao historiador profissional levar em conta a conjuntura da produção
de uma obra. O vasto projeto da universidade de Cambridge inicia-se às vésperas
da Primeira Guerra Mundial, num momento de apogeu do Império Britânico.
Com a economia capitaneada por Londres dominando o planeta, era natural
que os intelectuais ingleses tentassem
produzir uma visão de síntese da história
mundial, fazendo dezenas de tomos de
história dedicados à história antiga, moderna, africana, asiática etc. A constituição de visões amplas sobre o mundo conhecido acompanha, em geral, a formação dos impérios. Não foi diferente com
as enciclopédias helenísticas.
Pretensão imperial
Sistematicamente atualizados, estes volumes pretendem uma visão de síntese de
alto nível, o que, forçoso reconhecer, foi
atingido. O mais curioso é que esta pretensão imperial não almeja ser apenas a
explicação inglesa (tão válida como qualquer outra), mas uma explicação que colabore para que a própria América Latina
"obtenha maior consciência da sua própria história".
Nossa consciência, então, deve ser tocada primeiro pelo genocídio. A primeira
linha do primeiro capítulo do professor
Sanchez-Albornoz é representativa: "O
Novo Mundo, quando foi invadido pela
primeira vez pelos espanhóis, era densamente povoado". O uso da palavra invasão e a lembrança das imensas populações indígenas dessa região indicam uma
postura crítica. Fugindo à esquematização dualista de Las Casas, lembra o autor
que as mudanças de dieta, a difusão de
doenças, a depressão psicológica e outros
fatores tendem a matar mais do que a
própria guerra de conquista.
O grande problema desta e qualquer
análise é a exclusão efetiva do índio, que
continua mediatizada ou por cronistas
bem-intencionados e alheios ao mundo
indígena (como Las Casas) ou por cronistas completamente cristianizados (como
Garcilaso). Visões inovadoras como as de
Gordon Brotherston e Ruben Bonifaz
Nuño não ganham destaque. Destaque a
estas visões (o primeiro, especialista em
códices da Mesoamérica, o segundo na
estatuária olmeca e asteca) mostraria ampliações extraordinárias do nosso enfoque, geralmente reduzido à absurda
equação vencedores/vencidos, já sobejamente desgastado pela crítica de Janice
Theodoro. Neste sentido, a tradução destes volumes em detrimento de outros
consagra uma visão de há pelo menos 20
anos, na qual a introdução de palavras
como invasores ou vencedores parecia
redimir e explicar todo o papel dos ibéricos neste continente.
A tradução brasileira introduziu outras
novidades. Primeiro, destaca-se no título
uma coisa inexistente: América Latina
colonial. Sendo a expressão América Latina uma invenção francesa do século 19,
não há possibilidade de aplicar este termo ao período colonial. Para defender esse equívoco poderíamos dizer que ninguém falava em feudalismo na Idade Média e, mesmo assim, existia a prática. Mas
ser latino seria uma prática? Outras questão foi a exclusão de capítulos da obra
original. Já do volume 1 havia sido excluída a análise dos índios da região caribenha (de Mary Helms) ou (mais grave em
tempos de Mercosul) a exclusão dos índios do cone sul da América meridional
(de Jorge Hidalgo). No volume 2 foram
excluídos, por exemplo, o capítulo sobre
a dinâmica social da sociedade colonial
(de James Lockhart) e os capítulos sobre
mulheres e negros nas colônias hispânicas (de Asunción Lavrin e Frederick P.
Bowser).
Limites dramáticos
É lógico que o mercado impõe limites
editoriais dramáticos, mas o resultado na
obra em questão é um reforço da análise
nos pólos, como incas e astecas, e dos
centros coloniais, como Cidade do México e Lima. Da mesma forma, reforça a
mesma visão espanhola, já que para o
projeto espanhol os grupos dominados
pelos incas foram mais importantes do
que os índios araucanos do Chile, por
exemplo. Assim, seduzidos pelo brilho
extraordinário das altas civilizações pré-colombianas (alguém precisa inventar
uma expressão menos ideológica), repetimos o gosto mercantilista.
É notável a escassez de autores da própria América Latina. Autores como Enrique Florescano (México) e Maria Luiza
Marcílio (USP) estão isolados em meio a
especialistas ingleses, franceses e até suecos.
A desatualização bibliográfica, como é
natural, parece mais grave no volume 1
do que no volume 2. Outro aspecto curioso é imaginar um leitor que nunca tenha
visto nada sobre a bibliografia histórica
brasileira, consultando as indicações do
final do volume 2. Lá ele encontraria
obras tão desiguais em quaisquer sentidos, como a "História Geral" (organizada
por Sérgio Buarque de Holanda), a obra
de Pedro Calmon e até a de Varnhagen
estão alinhadas com relativa sem-cerimônia. Recomendar Varnhagen como
obra introdutória e geral sobre o Brasil
equivaleria a dar "O Uraguai", de Basílio
da Gama, para um iniciante no gosto pela
literatura brasileira.
Penúltima observação: se levarmos em
conta que, entre a chegada de Colombo à
América em 1492 e a segunda década do
século 19 (o chamado período colonial)
temos, aproximadamente, 328 anos e que
o período independente conta com cerca
de 180 anos (tomando o ano de 1820 como referência para a América Ibérica), a
correlação de volumes é ainda mais assombrosa: 2 volumes para colônia e 8 para o período independente!
Por fim: Barthes reclamou de Santo
Inácio de Loyola quanto à necessidade de
tudo explicar, enumerar e classificar. Talvez seja este o escopo maior de toda obra
do porte desta coleção. Ao leitor brasileiro a obra servirá tanto para conhecer um
pouco deste continente fascinante como,
e principalmente, da visão européia sobre a América. Em todo caso, não seria
este o destino de toda obra de história: fazer um diálogo entre o mundo coevo e o
do passado, no qual nenhum dos dois
apresenta monólogo ou diálogo total?
História da América Latina - Vol 2
- América Latina Colonial
Leslie Bethell (org.)
Tradução: Mary A. Leite de Barros e
Magda Lopes
Edusp/ Fundação Alexandre Gusmão
(Tel. 0/xx/11/818-4149)
870 págs., R$ 40,00
Leandro Karnal é professor de história da América na
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
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