São Paulo, sábado, 08 de abril de 2000


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Coleção de história terá dez volumes

Síntese da América Latina


LEANDRO KARNAL

A área de América colonial é tão escassa em novidades no Brasil que qualquer lançamento já deveria ser comemorado como um evento notável. A imensa produção norte-americana, européia e da América hispânica quase nunca é traduzida. Não nos referimos apenas às obras inovadoras e de vanguarda, mas clássicos de quase quatro séculos, como os cronistas Mendieta e Sahagún, do México, a obra de Poma de Ayala, do Peru colonial e tantos outros. Da mesma forma, obras de referência da historiografia contemporânea, como os livros de John Murra e Nathan Wachtel sobre o mundo andino e a obra de Serge Gruzinski sobre a colonização do imaginário, permanecem inacessíveis aos leitores menos especializados.
Neste quadro, a tradução da "História de Cambridge sobre a América Latina" é um empreendimento corajoso e digno dos maiores elogios. A associação da Edusp com a Fundação Alexandre Gusmão promete a obra em dez volumes, dos quais o primeiro e o segundo já estão disponíveis.
Convém ao historiador profissional levar em conta a conjuntura da produção de uma obra. O vasto projeto da universidade de Cambridge inicia-se às vésperas da Primeira Guerra Mundial, num momento de apogeu do Império Britânico. Com a economia capitaneada por Londres dominando o planeta, era natural que os intelectuais ingleses tentassem produzir uma visão de síntese da história mundial, fazendo dezenas de tomos de história dedicados à história antiga, moderna, africana, asiática etc. A constituição de visões amplas sobre o mundo conhecido acompanha, em geral, a formação dos impérios. Não foi diferente com as enciclopédias helenísticas.

Pretensão imperial
Sistematicamente atualizados, estes volumes pretendem uma visão de síntese de alto nível, o que, forçoso reconhecer, foi atingido. O mais curioso é que esta pretensão imperial não almeja ser apenas a explicação inglesa (tão válida como qualquer outra), mas uma explicação que colabore para que a própria América Latina "obtenha maior consciência da sua própria história".
Nossa consciência, então, deve ser tocada primeiro pelo genocídio. A primeira linha do primeiro capítulo do professor Sanchez-Albornoz é representativa: "O Novo Mundo, quando foi invadido pela primeira vez pelos espanhóis, era densamente povoado". O uso da palavra invasão e a lembrança das imensas populações indígenas dessa região indicam uma postura crítica. Fugindo à esquematização dualista de Las Casas, lembra o autor que as mudanças de dieta, a difusão de doenças, a depressão psicológica e outros fatores tendem a matar mais do que a própria guerra de conquista.
O grande problema desta e qualquer análise é a exclusão efetiva do índio, que continua mediatizada ou por cronistas bem-intencionados e alheios ao mundo indígena (como Las Casas) ou por cronistas completamente cristianizados (como Garcilaso). Visões inovadoras como as de Gordon Brotherston e Ruben Bonifaz Nuño não ganham destaque. Destaque a estas visões (o primeiro, especialista em códices da Mesoamérica, o segundo na estatuária olmeca e asteca) mostraria ampliações extraordinárias do nosso enfoque, geralmente reduzido à absurda equação vencedores/vencidos, já sobejamente desgastado pela crítica de Janice Theodoro. Neste sentido, a tradução destes volumes em detrimento de outros consagra uma visão de há pelo menos 20 anos, na qual a introdução de palavras como invasores ou vencedores parecia redimir e explicar todo o papel dos ibéricos neste continente.
A tradução brasileira introduziu outras novidades. Primeiro, destaca-se no título uma coisa inexistente: América Latina colonial. Sendo a expressão América Latina uma invenção francesa do século 19, não há possibilidade de aplicar este termo ao período colonial. Para defender esse equívoco poderíamos dizer que ninguém falava em feudalismo na Idade Média e, mesmo assim, existia a prática. Mas ser latino seria uma prática? Outras questão foi a exclusão de capítulos da obra original. Já do volume 1 havia sido excluída a análise dos índios da região caribenha (de Mary Helms) ou (mais grave em tempos de Mercosul) a exclusão dos índios do cone sul da América meridional (de Jorge Hidalgo). No volume 2 foram excluídos, por exemplo, o capítulo sobre a dinâmica social da sociedade colonial (de James Lockhart) e os capítulos sobre mulheres e negros nas colônias hispânicas (de Asunción Lavrin e Frederick P. Bowser).

Limites dramáticos
É lógico que o mercado impõe limites editoriais dramáticos, mas o resultado na obra em questão é um reforço da análise nos pólos, como incas e astecas, e dos centros coloniais, como Cidade do México e Lima. Da mesma forma, reforça a mesma visão espanhola, já que para o projeto espanhol os grupos dominados pelos incas foram mais importantes do que os índios araucanos do Chile, por exemplo. Assim, seduzidos pelo brilho extraordinário das altas civilizações pré-colombianas (alguém precisa inventar uma expressão menos ideológica), repetimos o gosto mercantilista.
É notável a escassez de autores da própria América Latina. Autores como Enrique Florescano (México) e Maria Luiza Marcílio (USP) estão isolados em meio a especialistas ingleses, franceses e até suecos.
A desatualização bibliográfica, como é natural, parece mais grave no volume 1 do que no volume 2. Outro aspecto curioso é imaginar um leitor que nunca tenha visto nada sobre a bibliografia histórica brasileira, consultando as indicações do final do volume 2. Lá ele encontraria obras tão desiguais em quaisquer sentidos, como a "História Geral" (organizada por Sérgio Buarque de Holanda), a obra de Pedro Calmon e até a de Varnhagen estão alinhadas com relativa sem-cerimônia. Recomendar Varnhagen como obra introdutória e geral sobre o Brasil equivaleria a dar "O Uraguai", de Basílio da Gama, para um iniciante no gosto pela literatura brasileira.
Penúltima observação: se levarmos em conta que, entre a chegada de Colombo à América em 1492 e a segunda década do século 19 (o chamado período colonial) temos, aproximadamente, 328 anos e que o período independente conta com cerca de 180 anos (tomando o ano de 1820 como referência para a América Ibérica), a correlação de volumes é ainda mais assombrosa: 2 volumes para colônia e 8 para o período independente!
Por fim: Barthes reclamou de Santo Inácio de Loyola quanto à necessidade de tudo explicar, enumerar e classificar. Talvez seja este o escopo maior de toda obra do porte desta coleção. Ao leitor brasileiro a obra servirá tanto para conhecer um pouco deste continente fascinante como, e principalmente, da visão européia sobre a América. Em todo caso, não seria este o destino de toda obra de história: fazer um diálogo entre o mundo coevo e o do passado, no qual nenhum dos dois apresenta monólogo ou diálogo total?


História da América Latina - Vol 2 - América Latina Colonial
Leslie Bethell (org.)
Tradução: Mary A. Leite de Barros e Magda Lopes
Edusp/ Fundação Alexandre Gusmão (Tel. 0/xx/11/818-4149)
870 págs., R$ 40,00



Leandro Karnal é professor de história da América na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).


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