São Paulo, sábado, 08 de setembro de 2001

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Uma nova e primorosa coleção de poesia

Quatro espelhos

O Gerifalto
Celso Luiz Paulini
152 págs., R$ 24,00
Azougue Editorial
(Tel. 0/xx/21/ 2239-6606)

A Sombra do Leopardo
Claudio Daniel
88 págs., R$ 22,00
Azougue Editorial

A Vida É Assim
Alberto Pucheu
64 págs., R$ 18,00
Azougue Editorial

Ser Infinitas Palavras
Afonso Henriques Neto
264 págs., R$ 28,00
Azougue Editorial

RUBENS R. TORRES FILHO

Dos livros publicados pela editora Azougue o que melhor conheço é o do poeta e dramaturgo Celso Luiz Paulini, meu amigo e companheiro na juventude. Nascido em 28 de setembro de 1929, morreu em 21 de agosto de 1992, deixando um vazio e muita saudade. Uma pessoa extremamente simpática e de grande talento para as letras: a poesia e a dramaturgia. Este livro, que contém sua poesia completa, inclui uma resenha minha do volume "Gerifalto Primus et Secundus", publicado à custa do autor em 1979, mas eu gostaria de acrescentar aqui outras observações por conta desta edição da poesia completa do Paulini.
Basta ler o poema inédito (profético?) que ele compôs no ano de sua morte, sob o título de "Percepção":
"Calamo-nos. Não ousávamos retomar o fio interrompido de uma conversa./ Os olhos, esses, buscaram outros espelhos/ dispersos na sombria sala./ Estávamos de perfil e o chá esfriava nas xícaras/ enquanto pétalas fanadas borravam o linho branco da toalha./ Soaram seis horas. Um de nós tentou uma palavra./ Foi então que percebemo-nos mortos".
Com a leitura desse poema, percebemos que o poeta mantém a elegância de sempre, os constantes jogos de palavras e uma certa percepção afiada do destino. Quem sabe, já tivesse um pressentimento de sua própria morte a ocorrer naquele ano, um mês antes de completar 63 anos.
Paulini conservou até o fim a mesma qualidade na dicção, o bom gosto na escolha das palavras, o luxo e a secura sempre encontrados desde seus poemas iniciais. Por isso insisto em falar de seu preciosismo, quando me lembro de sua exibição de carinho pelo homem, acolhido entre outros animais (confira-se "Animália", págs. 26-27), como o cavalo e o cão. "Homem": "Não pasta. Morde às vezes/ Outras vezes manso se declina/ Na gama vária de angústia e aflição./ Tem no chão os pés./ Na cabeça estrelas o atormentam/ Pois que não sabe (é mártir)/ Onde pousar o coração".
Nesse poema do primeiro "Gerifalto" (1963), temos o poeta observador de todas as naturezas, de olhar igualitário e sóbrio, que podemos conferir até anos depois, como no poema "Pedra" (pág.81), de 1979: "A mais nítida/ A mais dura/ A mais límpida das pedras./ Aquela que trazias no coração aberto/ E cujo nome guardavas sob sete selos./ A pedra de ângulo/ Sobre a qual se assentam os edifícios/ E os engenheiros constroem a tarde/ Com a precisão de um pássaro/ Que em vôo sobe, contempla/ E cai".
Onde a generosidade e o misticismo, comum a toda sua obra, em conjunto com o domínio da linguagem, converge para a naturalidade com que, imaginamos, fala de sua própria morte.
De Claudio Daniel (pseudônimo de Cláudio Alexandre de Barros Teixeira), escolhi o poema "Grécia" (pág. 34) para citar aqui: "Um Jogo de centauros/ Inflama/ o trigo da pele;/ grita teu olho,/ dos pés à cabeça;/ teu olho é pele,/ teu olho é sol/ de sêmen, desfaz/ o rosto na água,/ acasala tuas éguas./ Depois lacera-te,/ lapida tua boca,/ bebe tua urina./ Arde a terra,/ arde a carne./ Então, cada bílis/ e fleuma; despido/ como um deus,/ abraça a deusa/ do silente mistério".
Com o verso curto, sem concessões à métrica, o poeta exibe uma familiaridade com a poesia, com as técnicas mais recentes (desde João Cabral e os concretistas) e um domínio da gramática que surpreendem o crítico e o leitor. Uma certa elegância, que perpassa seus versos, é admirável.
Já o livro "A Vida É Assim", de Alberto Pucheu, é feito com uma linguagem, pode-se dizer, muito fértil, mas bem dosada, revelando uma sensibilidade à flor da pele, um certo controle literário muito sutil. Seus poemas são, na verdade, prosas quebradas em versos, o que, de um lado, estabiliza o fluxo, de outro, fica um pouco a incerteza se valeria a pena varrer daqui e dali uma certa comodidade:
"A casa em que moro. A cidade que me habita./ Nem ao menos a campainha tem soado, o carteiro não toca há alguns dias/ (os carros passam, para garagens residenciais/ ou públicas), o entregador da lista telefônica/ acaba de bater, desmentindo a frase mencionada (passa um/ homem vendendo cocada/ para os operários da obra do lado. Eu,/ operário da obra ao lado, compro uma cocada/ para meu filho), mas não atendo ao chamado". (do poema "Tudo Acontece Agora pela Primeira Vez"). Mas esses versos longos vão nos ensinando a tomar fôlego para a prosa de fato que se instala na segunda parte de seu livro.
O livro "Ser Infinitas Palavras", de Afonso Henriques Neto, descendente do simbolista Alphonsus de Guimarães, reúne sua produção poética (escolhida) e os inéditos que formam o volume "A Água Não Envelhece" numa clara metáfora da teimosia de que são feitos os poetas. Como exemplo, dois poemas do livro "Ossos do Paraíso" (de 1981):
"Number One": "A chuva de pássaros e o cachecol de estrelas/ o peixe no congelador e o segredo das cinzas/ o gole no escuro e o mistério violado/ o hálito torturado e a sombra no sol/ a vertigem de sal e o instante sem tempo/ poesia, incomparável dia".
"Number None": "A cagada grossa e o casamento na roça/ um pássaro na mão e uma porrada no fogão/ o deletério no palácio e o burocrata no ópio/ o tiro na cara paranóia escancara/ a máscara sem dono e a tortura tortura/ pois não ia, nunca volto um dia".
Há concisão no manejar das palavras e esgotamento preciso de sentido, suas imagens resvalam pelo real e pelo que se quer dele: "... Cidade dos labirintos uivantes/ delirantes vinhedos abafados/ sonâmbulas epidemias & espermas filosofais// Satã, se enfureça de nossa imensa miséria ..." , do recente poema "Outras Litanias". Com uma ênfase especial sobre a fugacidade das coisas e sensações.
Temos então uma nova coleção de poesia que, em sua totalidade, mostra uma escolha primorosa de poetas claramente notáveis.


Rubens Rodrigues Torres Filho é poeta e autor, entre outros livros, de "Novolume" (Iluminuras).



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