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Filósofos examinam o direito de mentir
Do príncipe ao assassino
RENATO JANINE RIBEIRO
Merece elogio a iniciativa de
Fernando Puente, que organizou
este pequeno e útil livro sobre "Os
Filósofos e a Mentira", com textos
de Rousseau, Benjamin Constant
e Kant.
A oposição se dá basicamente
entre Kant e os dois filósofos franceses de origem suíça. Rousseau,
em 1776 ou 77, introduz duas
idéias mestras. A primeira é a de
que dizer a verdade é uma obrigação, digamos, relacional. Tenho o
dever de dizer a verdade em relação a certas pessoas, não a todas.
Se um ladrão me perguntar se tenho dinheiro, não preciso dizer
que sim. A segunda é a de que a
verdade não se separa da justiça.
Por isso ela não está nos detalhes,
mas no espírito.
Dizer a verdade é promover a
justiça. E isso permite uma tolerância com a fábula. Rousseau,
aliás, é o único dos três a falar da
ficção -que poderia ser uma espécie de mentira-, e mesmo da
ficção que se introduz nas conversas cotidianas. É interessante ler
seu texto à luz de "A Arte da Conservação", de Peter Burke, que
discute como, nos séculos 17 e 18,
os europeus elaboram essa delicada arte de conversar em sociedade, de tratar de assuntos leves
com desconhecidos, de criar um
elo social que, embora frouxo
(nossa "conversa mole") -ou
justamente por ser frouxo-, serve como um primeiro vínculo entre as pessoas. E isso ainda é mais
curioso por sabermos Rousseau
arredio à vida social e, sobretudo,
a esse vínculo leve, quase frívolo,
devedor da etiqueta cortesã.
Vinte anos depois, Constant
prolonga a questão de Rousseau,
embora sem o citar. Critica um
"filósofo alemão", que sustentaria
que sempre se deve dizer a verdade, mesmo a um assassino que
busca sua vítima. Dado que Constant pensa que nesse caso se pode
mentir, mas concorda com o imperativo da verdade, ele precisará
investigar o elo que falta, na passagem da teoria à prática, para
que se possa embasar teoricamente o que a maioria das pessoas faria.
Constant pensa que faltou um
"princípio intermediário". Não
basta o princípio de dizer a verdade. É preciso ainda determinar
quem tem direito à verdade. Se ele
fosse hegeliano, diria que faltaram
mediações entre a afirmação abstrata, universal, do pensador alemão, e o concreto ao qual remete.
Essas mediações ele propõe suprir com um novo princípio.
Não há paralelo entre a reputação atual de Constant e a de Kant:
daí, talvez, o respeito com que
Kant é tratado em sua réplica, que
não é das mais convincentes. Mas
penso que aqui faltou algo na edição. Em nota, informa-se que o
"filósofo alemão" criticado por
Constant seria Michaëlis, mas a
carapuça é assumida por Kant.
Por quê?
E acrescenta a nota que Kant teria tratado de algo parecido, mas
em outros termos: o de um criado
a quem a polícia (e não um ladrão) pergunta onde está seu patrão. A diferença é enorme. Penso
que o livro ganharia se incluísse a
passagem referida e, sobretudo, o
que Kant afirma sobre o imperativo categórico e sua abrangência
universal.
Sem isso, a discussão fica truncada, pontual demais. E o mérito
de Kant está justamente no que
sai do pontual. Seu ponto forte é o
mais teórico, quando nega que dizer a verdade seja uma obrigação
que teríamos em relação a determinada pessoa. É um dever incondicional, diz ele, e depois especifica tratar-se de uma obrigação
em relação à humanidade como
um todo. E é isso o que assegura a
manutenção dos elos sociais. Sem
veracidade, sem confiança, não
há contrato e, portanto, não resta
sociedade.
Há, porém, um ponto mais fraco na argumentação de Kant,
quando faz intervir o acaso: o homem de Constant, diz ele, poderia
mentir ao assassino, dizendo que
sua vítima saiu de casa; mas e se,
enquanto isso, a vítima tivesse
mesmo saído? Seria morta. O curioso é que Kant diz que Constant
faz intervir o acaso, quando é
Kant quem o faz. Mas parece que
isso expressa sua dificuldade em
responder à questão.
O mérito do filósofo alemão está
em pensar a veracidade em termos do que nos une aos outros.
Contudo podemos imaginar
como Rousseau responderia a isso. Ele diria que, se a verdade é o
que funda as relações, ela não é
fim em si, mas meio para promover relações sociais, e que ademais
sejam justas. Portanto, não se poderia pensá-la sem a justiça, o que
daria razão a ele, Rousseau, e implicaria três coisas. Primeira: só
tenho dever de dizer a verdade
quando acarretar resultados justos (nunca a um assassino). Segunda: a verdade que importa
não é a dos miúdos fatos (onde está fulano?), mas a das coisas que
contam (quero deixar que o matem?). Terceira: dizer a verdade é
um dever relacional (o que não se
confunde com relativo).
A diferença seria que, para
Kant, o dever teria por beneficiário a humanidade inteira, e não a
potencial vítima do assassino.
Mas, ao aceitar Kant que dizer a
verdade seja uma obrigação em
relação a outrem, ele terá aceitado
o caráter relacional desse dever.
Poderíamos objetar que a humanidade inteira é beneficiada quando, a um criminoso, se nega a verdade de um fato. Poderemos dizer
que ele, uma vez preso, tem direito a toda a verdade que lhe assegure ampla defesa. Mas, ele solto e
ameaçador, podemos negar-lhe a
verdade que o capacite a cometer
seus crimes.
Aliás, nos dois casos é a humanidade como um todo que é considerada. Um julgamento sem defesa fere a justiça em todos nós.
Mas o que importa não é a posição que tomemos, nessa importante polêmica. É que os três autores partam da mentira para enfocar a verdade. Pensam-na partindo de sua recusa deliberada. Como não debatem o erro, mas a
mentira, não estão na teoria do
conhecimento, mas na ética e na
política. E assim os três perguntam o que a verdade gera nos elos
sociais. Talvez por isso as coisas fiquem mais difíceis para Kant. E
no entanto é ele quem melhor
enuncia que, sem confiança, não
há contrato nem sociedade. O que
está em jogo é a sintonia fina entre
verdade e confiança, entre mentira e sociedade. É um belo debate.
Ainda mais porque há aqui um
grande ausente: Maquiavel. Menções indiretas aparecem a ele, como quando Rousseau repele os
que julgam os discursos dos homens "pelos efeitos que produzem". E no entanto é ele quem
melhor justificou o direito, não só
de mentir, como de fazer todo o
mal -pelo bem maior que esse
possa gerar.
Diante da questão mais ampla
do mal, a mentira aparece como
um tema quase menor. E talvez
ela seja isso mesmo. O mal, em
Maquiavel, era praticado pelo
príncipe. Era grande. A mentira,
no final do século 18, é tema posto
pelos três filósofos sempre no plano das relações privadas e, acrescentaria, defensivas. Os três debatem o direito de mentir quando se
responde a uma pergunta difícil.
Nenhum deles nem sequer medita um direito de mentir sem pergunta, sem provocação. E esse é
um sintoma da passagem que
ocorre do público ao privado, do
governante da Renascença ao homem privado da sociedade burguesa: vai-se do mal deliberado à
mentira defensiva.
Renato Janine Ribeiro é professor de
filosofia política no departamento de filosofia da USP.
Os Filósofos e a Mentira
Jean-Jacques Rousseau,
Immanuel Kant, Benjamin Constant
Fernando Puente (Org.)
Ed. da UFMG
(Tel.0/xx/31/3499-4650)
86 págs., R$ 15,00
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