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São Paulo, sábado, 09 de agosto de 2003

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Filósofos examinam o direito de mentir

Do príncipe ao assassino

RENATO JANINE RIBEIRO

Merece elogio a iniciativa de Fernando Puente, que organizou este pequeno e útil livro sobre "Os Filósofos e a Mentira", com textos de Rousseau, Benjamin Constant e Kant.
A oposição se dá basicamente entre Kant e os dois filósofos franceses de origem suíça. Rousseau, em 1776 ou 77, introduz duas idéias mestras. A primeira é a de que dizer a verdade é uma obrigação, digamos, relacional. Tenho o dever de dizer a verdade em relação a certas pessoas, não a todas. Se um ladrão me perguntar se tenho dinheiro, não preciso dizer que sim. A segunda é a de que a verdade não se separa da justiça. Por isso ela não está nos detalhes, mas no espírito.
Dizer a verdade é promover a justiça. E isso permite uma tolerância com a fábula. Rousseau, aliás, é o único dos três a falar da ficção -que poderia ser uma espécie de mentira-, e mesmo da ficção que se introduz nas conversas cotidianas. É interessante ler seu texto à luz de "A Arte da Conservação", de Peter Burke, que discute como, nos séculos 17 e 18, os europeus elaboram essa delicada arte de conversar em sociedade, de tratar de assuntos leves com desconhecidos, de criar um elo social que, embora frouxo (nossa "conversa mole") -ou justamente por ser frouxo-, serve como um primeiro vínculo entre as pessoas. E isso ainda é mais curioso por sabermos Rousseau arredio à vida social e, sobretudo, a esse vínculo leve, quase frívolo, devedor da etiqueta cortesã.
Vinte anos depois, Constant prolonga a questão de Rousseau, embora sem o citar. Critica um "filósofo alemão", que sustentaria que sempre se deve dizer a verdade, mesmo a um assassino que busca sua vítima. Dado que Constant pensa que nesse caso se pode mentir, mas concorda com o imperativo da verdade, ele precisará investigar o elo que falta, na passagem da teoria à prática, para que se possa embasar teoricamente o que a maioria das pessoas faria.
Constant pensa que faltou um "princípio intermediário". Não basta o princípio de dizer a verdade. É preciso ainda determinar quem tem direito à verdade. Se ele fosse hegeliano, diria que faltaram mediações entre a afirmação abstrata, universal, do pensador alemão, e o concreto ao qual remete. Essas mediações ele propõe suprir com um novo princípio.
Não há paralelo entre a reputação atual de Constant e a de Kant: daí, talvez, o respeito com que Kant é tratado em sua réplica, que não é das mais convincentes. Mas penso que aqui faltou algo na edição. Em nota, informa-se que o "filósofo alemão" criticado por Constant seria Michaëlis, mas a carapuça é assumida por Kant. Por quê?
E acrescenta a nota que Kant teria tratado de algo parecido, mas em outros termos: o de um criado a quem a polícia (e não um ladrão) pergunta onde está seu patrão. A diferença é enorme. Penso que o livro ganharia se incluísse a passagem referida e, sobretudo, o que Kant afirma sobre o imperativo categórico e sua abrangência universal.
Sem isso, a discussão fica truncada, pontual demais. E o mérito de Kant está justamente no que sai do pontual. Seu ponto forte é o mais teórico, quando nega que dizer a verdade seja uma obrigação que teríamos em relação a determinada pessoa. É um dever incondicional, diz ele, e depois especifica tratar-se de uma obrigação em relação à humanidade como um todo. E é isso o que assegura a manutenção dos elos sociais. Sem veracidade, sem confiança, não há contrato e, portanto, não resta sociedade.
Há, porém, um ponto mais fraco na argumentação de Kant, quando faz intervir o acaso: o homem de Constant, diz ele, poderia mentir ao assassino, dizendo que sua vítima saiu de casa; mas e se, enquanto isso, a vítima tivesse mesmo saído? Seria morta. O curioso é que Kant diz que Constant faz intervir o acaso, quando é Kant quem o faz. Mas parece que isso expressa sua dificuldade em responder à questão.
O mérito do filósofo alemão está em pensar a veracidade em termos do que nos une aos outros.
Contudo podemos imaginar como Rousseau responderia a isso. Ele diria que, se a verdade é o que funda as relações, ela não é fim em si, mas meio para promover relações sociais, e que ademais sejam justas. Portanto, não se poderia pensá-la sem a justiça, o que daria razão a ele, Rousseau, e implicaria três coisas. Primeira: só tenho dever de dizer a verdade quando acarretar resultados justos (nunca a um assassino). Segunda: a verdade que importa não é a dos miúdos fatos (onde está fulano?), mas a das coisas que contam (quero deixar que o matem?). Terceira: dizer a verdade é um dever relacional (o que não se confunde com relativo).
A diferença seria que, para Kant, o dever teria por beneficiário a humanidade inteira, e não a potencial vítima do assassino. Mas, ao aceitar Kant que dizer a verdade seja uma obrigação em relação a outrem, ele terá aceitado o caráter relacional desse dever. Poderíamos objetar que a humanidade inteira é beneficiada quando, a um criminoso, se nega a verdade de um fato. Poderemos dizer que ele, uma vez preso, tem direito a toda a verdade que lhe assegure ampla defesa. Mas, ele solto e ameaçador, podemos negar-lhe a verdade que o capacite a cometer seus crimes.
Aliás, nos dois casos é a humanidade como um todo que é considerada. Um julgamento sem defesa fere a justiça em todos nós.
Mas o que importa não é a posição que tomemos, nessa importante polêmica. É que os três autores partam da mentira para enfocar a verdade. Pensam-na partindo de sua recusa deliberada. Como não debatem o erro, mas a mentira, não estão na teoria do conhecimento, mas na ética e na política. E assim os três perguntam o que a verdade gera nos elos sociais. Talvez por isso as coisas fiquem mais difíceis para Kant. E no entanto é ele quem melhor enuncia que, sem confiança, não há contrato nem sociedade. O que está em jogo é a sintonia fina entre verdade e confiança, entre mentira e sociedade. É um belo debate.
Ainda mais porque há aqui um grande ausente: Maquiavel. Menções indiretas aparecem a ele, como quando Rousseau repele os que julgam os discursos dos homens "pelos efeitos que produzem". E no entanto é ele quem melhor justificou o direito, não só de mentir, como de fazer todo o mal -pelo bem maior que esse possa gerar.
Diante da questão mais ampla do mal, a mentira aparece como um tema quase menor. E talvez ela seja isso mesmo. O mal, em Maquiavel, era praticado pelo príncipe. Era grande. A mentira, no final do século 18, é tema posto pelos três filósofos sempre no plano das relações privadas e, acrescentaria, defensivas. Os três debatem o direito de mentir quando se responde a uma pergunta difícil. Nenhum deles nem sequer medita um direito de mentir sem pergunta, sem provocação. E esse é um sintoma da passagem que ocorre do público ao privado, do governante da Renascença ao homem privado da sociedade burguesa: vai-se do mal deliberado à mentira defensiva.


Renato Janine Ribeiro é professor de filosofia política no departamento de filosofia da USP.


Os Filósofos e a Mentira
Jean-Jacques Rousseau, Immanuel Kant, Benjamin Constant Fernando Puente (Org.)
Ed. da UFMG
(Tel.0/xx/31/3499-4650)
86 págs., R$ 15,00



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