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São Paulo, sábado, 09 de agosto de 2003

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Obra traduz e comenta prefácios do romancista Henry James

A atividade do ficcionista

MODESTO CARONE

"A Arte do Romance", livro que traz a tradução dos "Prefácios" da Edição de Nova York, de Henry James, e comentários de Marcelo Pen, representa uma contribuição para os nossos estudos literários. Em primeiro lugar, porque a escolha feita pelo autor incide sobre um escritor de envergadura, em segundo porque vem reparar uma lacuna sensível no que diz respeito à crítica e à teoria do romance entre nós.
Qualquer estudioso de letras esbarra, no seu trabalho, em conceitos como ponto de vista, perspectiva, cena, dramatização, construção da trama, forma e estrutura -sem mencionar tantos outros que aparecem nos "Prefácios" e que já marcaram um padrão entre os especialistas.
Nesse sentido, cabe antecipar que o acervo teórico de James recebe um tratamento valioso na "Introdução" do livro, além de oferecer uma tradução competente de oito deles.
A relevância desta "estória de uma estória" é anunciada desde os primeiros tempos de sua recepção, quando Percy Lubbock, em 1909, escreveu que os prefácios eram "o primeiro acontecimento na "história do romance'". Diga-se de passagem que tanto "The Craft of Fiction", de Lubbock, como "The Art of the Novel", de Richard Blackmur, são minuciosamente examinados na introdução de Pen, que intervém, com proveito do leitor, como crítico dos dois importantes críticos da linhagem jamesiana.

Teoria geral do romance
Logo de início, é útil lembrar que os "Prefácios", segundo a leitura de Pen, têm sido avaliados: 1) como teoria geral do romance, tese básica de "The Craft of Fiction", traduzido no Brasil como "A Técnica da Ficção"; 2) como instrumento de análise dos romances e histórias curtas da Edição de Nova York; 3) como trabalho literário independente, que seria necessário inserir no contexto da produção final de James.
A idéia de teoria geral do romance foi a que teve maior influência no século 20, fornecendo munição para o "new criticism" norte-americano. Foi a partir dos "Prefácios" e do livro de Lubbock que o romance passou a ser considerado obra de arte ao invés de mero divertimento -e aqui é válido perguntar se já não era essa a principal preocupação de Flaubert na metade do século 19.
Seja como for, a decorrência principal dessa postura é que a ficção, ao contrário da "vida" -da qual ela aliás deriva- é uma arte "atrelada" aos parâmetros de forma, projeto e composição. Ou seja: a arte em geral e a ficção em especial implicam uma estrutura que se opõe às forças espontâneas do acaso.
Descendo aos detalhes, Lubbock define os dois métodos -o pictórico e o dramático- que especializam a atividade do ficcionista. "No primeiro, o leitor se volta para o narrador e ouve a história; no dramático, o leitor se volta para a história e a observa".
Nesse passo, Pen intervém para dizer que é preciso levar em conta o assunto a ser tratado, que também pode ser pictórico ou dramático. Quando pictórico, ele pode abarcar uma cena grande ou um período longo de tempo, como acontece em "Guerra e Paz"; ou então pode se deter no "retrato de uma alma", caso de "Madame Bovary" e de "Os Embaixadores".
Mas a história não é, em essência, dramática, apenas o método de sua condução. Em outros termos, é a manipulação da matéria que dramatiza os "conflitos internos" e os "motores da consciência" captados pela obra. "O que interessa -diz o autor deste livro- é acompanhar o descortinar dos "eventos externos na mente" do leitor" (sublinho aqui as expressões "conflitos internos", "motores da consciência", "eventos externos na mente" para aproveitá-las mais adiante). É essa circunstância que determina o "ponto de vista", palavra-chave na estética do romance de Henry James. Segundo Marcelo Pen, no caso de "Madame Bovary" e de "Os Embaixadores", o autor centra a narrativa na consciência da personagem principal e por isso evita aparecer em cena, delegando essa tarefa aos "refletores" ou coadjuvantes colocados dentro da história.
Voltando aos "Prefácios" e a "A Técnica da Ficção", os pontos de contato entre ambos são muitos, mas as discrepâncias também. A principal diferença, segundo o autor da introdução desta "A Arte do Romance", é que, "se em Lubbock há um movimento que busca a "apropriação", como o crítico que tenta refletir sobre o trabalho dos artistas, nos "Prefácios" a tendência reside numa abordagem de "reapropriação", como o artista ou leitor privilegiado que reflete em retrospecto sobre a própria criação".
No caso de James, ele ressuscita, nos "Prefácios", a própria obra e, ao fazer isso, conta a história de uma história.
O ato de expor a história de uma história é, a seu próprio modo, também uma narrativa, diz Pen. Por quê? Porque, de modo análogo à estória representada, a representação da história também possui seus personagens e sua vida, ou seja, o seu enredo, que deve portanto ser narrado. É exatamente o que a introdução deste livro faz.
Mesmo numa paráfrase vazada por "brancos", é indispensável recordar o que James chama de "germe". Esse germe é a idéia inicial que deu origem à fábula, com o seu desenvolvimento posterior. James o qualifica de "forças furtivas de expansão". Daí a frase famosa da "Arte da Ficção", na qual o romancista afirma que "o mínimo de uma sugestão válida serve mais a um homem de imaginação do que o máximo". Pen esclarece, no seu excelente estudo, que esse germe, aparentemente esquecido, ficou largado no "poço fundo da cerebração inconsciente". Friso aqui a palavra "inconsciente".

Da objetividade à subjetividade
A essa altura arma-se uma questão histórica que merece atenção. Refiro-me à passagem do grande realismo francês do século 19 e de sua exacerbação naturalista, empenhado na busca de objetividade, para os domínios da subjetividade, remetendo de volta à expressões "retratos da alma", "conflitos internos", "motores da consciência", "forças furtivas", "eventos externos na mente" e sobretudo "inconsciente". O que parece ter acontecido é que, por volta da virada do século 20, tanto para menos como para mais, já realizada pelos artistas a "varredura" da realidade objetiva, os ficcionistas interessados no real passaram a pesquisá-lo na esfera da subjetividade, para onde ele por assim dizer havia migrado e assumido contornos que exigiam uma nova forma de realismo -aquele que renega as aparências em nome da verdade. É o que diz Adorno com outras palavras: "Se o realismo quer permanecer fiel à sua herança realista e dizer como realmente são as coisas, então ele tem de renunciar a um realismo que, à medida que reproduz a fachada, só serve para ajudar na sua tarefa de enganar".
Ou seja: a objetivação da subjetividade tornou-se o alvo dos autores à cata do real e do verdadeiro -e nesse contexto basta lembrar os romances de Dostoiévski, Proust, Machado de Assis,James, Kafka e, "last but not least", as obras de Freud.
Voltando a Adorno, é dele ainda a afirmação de que, "quando alguém mergulha em si mesmo, não encontra uma personalidade autônoma, desvinculada de momentos sociais, mas sim as marcas de sofrimento do mundo alienado". A ficção de James e os "Prefácios" da Edição de Nova York não desconhecem esse caminho, o que certamente atesta a sua atualidade. Ela consiste em traçar na escrita as impressões digitais inscritas na imaginação e na sensibilidade por um universo fora dos eixos.
O segundo crítico importante de James que o livro de Marcelo Pen expõe e discute é Richard Blackmur. Trata-se aqui de um ensaio de crítica geral -"The Art of the Novel"- que se transformou em obra de referência sobre os aspectos técnicos da arte ficcional. É de Blackmur a conclusão taxativa de que "nunca houve um autor como James, que viu a necessidade e teve a habilidade de criticar específica e deliberadamente sua obra".
Entre os aspectos técnicos da ficção que ele destaca em James, incluem-se figuras famosas do discurso crítico, como a "inteligência central" que atua como ponto de vista para o relato, a percepção de que o escritor não cria apenas os seus personagens, mas também os seus leitores, a abordagem direta e a cena dramática, o tema internacional, o problema do tempo, a ironia e a ambiguidade.
É notório que aqui se omite a miséria do mundo, o que situaria James, com um viés de razão, entre os "intimistas à sombra do poder". Mas não é justo esquecer que um dos seus contos mais fortes, "Brooksmith", tematiza o "esplendor" e a derrocada de um mordomo.

Vida e arte
No curso da história ele acaba desempregado e a um passo da indigência por ter sido abandonado pelo patrão. O narrador, tão cínico quanto não confiável, diante da "excelência" do criado, recusa-se a oferecer-lhe ajuda na última visita que faz ao personagem num subúrbio esquálido de Londres. A empatia do autor implícito pelo herói infeliz não escapa ao leitor que, nesse momento, se vê obrigado a reconhecer em James a lucidez sobre o que é "the real thing" no outro lado do seu cortejo de estetas e milionários.
Nesse caso faz diferença falar na distinção que o escritor americano faz entre "vida" e "arte". Pois para ele é da "vida" que emerge o "germe" que dá origem à obra artística. No discurso de James, "a vida é em essência uma forma incontida" -segundo Pen, de amplitude descontrolada-, ao passo que a ficção enquanto arte requer uma "medida". Dito de outro modo, em seu caráter caótico, a "vida" precisa ser organizada pela força restritiva da arte.
Como artista dividido em seu duplo compromisso com o romance -tanto no que ele propõe de liberdade como no que exerce de controle (as palavras são de Marcelo Pen, como várias outras que têm sido aqui utilizadas)-, James caminha de uma ênfase da vida sobre a arte para uma ênfase do empenho artístico sobre a vida, especialmente nos "Prefácios". De qualquer modo, o que o artista procura, por meio da imaginação, é a própria força da vida. E isso demonstra seu pacto com a realidade. Quer dizer: "The Old Pretender" não era um formalista.
Nada disso, entretanto, é tarefa simples, circunstância realçada pelo autor deste ensaio quando deixa claro que "estudar a teoria de James, sobretudo a que está contida nos "Prefácios", nunca é preto no branco". Ela é, antes, como afirma, cheia de nuanças que podem desnortear quem procura verdades inequívocas (ou lineares). Talvez seja esse o lance que descreva melhor a célebre "casa da ficção" de James, uma vez que, para ele, essa casa é uma construção com milhares de janelas que se abrem atentamente para a "cena humana". Naturalmente, a esse conteúdo de verdade histórica corresponde não só o arcabouço subjetivo do criador e das suas criaturas, como também a capacidade formal de veiculá-lo.
Marcelo Pen escreve com razão que muitas vezes é complicado separar o que James queria dizer do modo como ele o disse. Isto é: para ele, como para todo artista que honra esse nome, a forma já é um conteúdo -um conteúdo social sedimentado, para completar, com Adorno, esse pensamento.
O livro que acaba de ser lançado presta uma homenagem ao trabalho artístico de James ao se render -muitas vezes mimeticamente- à sua frase labiríntica, não raro obscura e no entanto lapidar que, no seu trajeto tortuoso, desenha aquilo que sustenta, seja nos comentários, seja nas traduções.
As traduções, aliás, são tão exigentes quanto os comentários, na procura constante de equivalências entre o texto de partida e a língua de chegada. O resultado é o encontro entre ambos numa espécie de "língua terceira", em que as peças traduzidas, sujeitas às proezas verbais do original, revelam, em última análise, as virtualidade do nosso idioma.


Nota
Com alterações, este trabalho foi lido numa mesa-redonda na livraria Cultura do shopping Villa-Lobos. Participaram da mesa Arthur Nestrovski, Ismail Xavier, Iumna Maria Simon e o próprio Marcelo Pen.

Modesto Carone é escritor, tradutor de Kafka e professor de teoria literária e literatura comparada, autor, entre outros livros, de "Resumo de Ana" (Companhia das Letras).



A Arte do Romance
Henry James
Tradução e organização: Marcelo Pen
Globo (Tel. 0/xx/11/3767-7889)
319 págs., R$ 39,00


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