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Obra traduz e comenta prefácios do romancista Henry James
A atividade do ficcionista
MODESTO CARONE
"A Arte do Romance", livro que traz a
tradução dos "Prefácios" da Edição de
Nova York, de Henry James, e comentários de Marcelo Pen, representa uma contribuição para os nossos estudos literários. Em primeiro lugar, porque a escolha
feita pelo autor incide sobre um escritor
de envergadura, em segundo porque vem
reparar uma lacuna sensível no que diz
respeito à crítica e à teoria do romance
entre nós.
Qualquer estudioso de letras esbarra,
no seu trabalho, em conceitos como ponto de vista, perspectiva, cena, dramatização, construção da trama, forma e estrutura -sem mencionar tantos outros que
aparecem nos "Prefácios" e que já marcaram um padrão entre os especialistas.
Nesse sentido, cabe antecipar que o
acervo teórico de James recebe um tratamento valioso na "Introdução" do livro,
além de oferecer uma tradução competente de oito deles.
A relevância desta "estória de uma estória" é anunciada desde os primeiros tempos de sua recepção, quando Percy Lubbock, em 1909, escreveu que os prefácios
eram "o primeiro acontecimento na "história do romance'". Diga-se de passagem
que tanto "The Craft of Fiction", de Lubbock, como "The Art of the Novel", de Richard Blackmur, são minuciosamente
examinados na introdução de Pen, que
intervém, com proveito do leitor, como
crítico dos dois importantes críticos da linhagem jamesiana.
Teoria geral do romance
Logo de início, é útil lembrar que os
"Prefácios", segundo a leitura de Pen,
têm sido avaliados: 1) como teoria geral
do romance, tese básica de "The Craft of
Fiction", traduzido no Brasil como "A
Técnica da Ficção"; 2) como instrumento
de análise dos romances e histórias curtas
da Edição de Nova York; 3) como trabalho literário independente, que seria necessário inserir no contexto da produção
final de James.
A idéia de teoria geral do romance foi a
que teve maior influência no século 20,
fornecendo munição para o "new criticism" norte-americano. Foi a partir dos
"Prefácios" e do livro de Lubbock que o
romance passou a ser considerado obra
de arte ao invés de mero divertimento
-e aqui é válido perguntar se já não era
essa a principal preocupação de Flaubert
na metade do século 19.
Seja como for, a decorrência principal
dessa postura é que a ficção, ao contrário
da "vida" -da qual ela aliás deriva- é
uma arte "atrelada" aos parâmetros de
forma, projeto e composição. Ou seja: a
arte em geral e a ficção em especial implicam uma estrutura que se opõe às forças
espontâneas do acaso.
Descendo aos detalhes, Lubbock define
os dois métodos -o pictórico e o dramático- que especializam a atividade do
ficcionista. "No primeiro, o leitor se volta
para o narrador e ouve a história; no dramático, o leitor se volta para a história e a
observa".
Nesse passo, Pen intervém para dizer
que é preciso levar em conta o assunto a
ser tratado, que também pode ser pictórico ou dramático. Quando pictórico, ele
pode abarcar uma cena grande ou um período longo de tempo, como acontece em
"Guerra e Paz"; ou então pode se deter no
"retrato de uma alma", caso de "Madame
Bovary" e de "Os Embaixadores".
Mas a história não é, em essência, dramática, apenas o método de sua condução. Em outros termos, é a manipulação
da matéria que dramatiza os "conflitos
internos" e os "motores da consciência"
captados pela obra. "O que interessa
-diz o autor deste livro- é acompanhar o descortinar dos "eventos externos
na mente" do leitor" (sublinho aqui as expressões "conflitos internos", "motores
da consciência", "eventos externos na
mente" para aproveitá-las mais adiante).
É essa circunstância que determina o
"ponto de vista", palavra-chave na estética do romance de Henry James. Segundo
Marcelo Pen, no caso de "Madame Bovary" e de "Os Embaixadores", o autor
centra a narrativa na consciência da personagem principal e por isso evita aparecer em cena, delegando essa tarefa aos
"refletores" ou coadjuvantes colocados
dentro da história.
Voltando aos "Prefácios" e a "A Técnica da Ficção", os pontos de contato entre
ambos são muitos, mas as discrepâncias
também. A principal diferença, segundo
o autor da introdução desta "A Arte do
Romance", é que, "se em Lubbock há um
movimento que busca a "apropriação",
como o crítico que tenta refletir sobre o
trabalho dos artistas, nos "Prefácios" a
tendência reside numa abordagem de
"reapropriação", como o artista ou leitor
privilegiado que reflete em retrospecto
sobre a própria criação".
No caso de James, ele ressuscita, nos
"Prefácios", a própria obra e, ao fazer isso, conta a história de uma história.
O ato de expor a história de uma história é, a seu próprio modo, também uma
narrativa, diz Pen. Por quê? Porque, de
modo análogo à estória representada, a
representação da história também possui
seus personagens e sua vida, ou seja, o seu
enredo, que deve portanto ser narrado. É
exatamente o que a introdução deste livro faz.
Mesmo numa paráfrase vazada por
"brancos", é indispensável recordar o
que James chama de "germe". Esse germe é a idéia inicial que deu origem à fábula, com o seu desenvolvimento posterior.
James o qualifica de "forças furtivas de
expansão". Daí a frase famosa da "Arte
da Ficção", na qual o romancista afirma
que "o mínimo de uma sugestão válida
serve mais a um homem de imaginação
do que o máximo". Pen esclarece, no seu
excelente estudo, que esse germe, aparentemente esquecido, ficou largado no
"poço fundo da cerebração inconsciente". Friso aqui a palavra "inconsciente".
Da objetividade à subjetividade
A essa altura arma-se uma questão histórica que merece atenção. Refiro-me à
passagem do grande realismo francês do
século 19 e de sua exacerbação naturalista, empenhado na busca de objetividade,
para os domínios da subjetividade, remetendo de volta à expressões "retratos da
alma", "conflitos internos", "motores da
consciência", "forças furtivas", "eventos
externos na mente" e sobretudo "inconsciente". O que parece ter acontecido é
que, por volta da virada do século 20, tanto para menos como para mais, já realizada pelos artistas a "varredura" da realidade objetiva, os ficcionistas interessados
no real passaram a pesquisá-lo na esfera
da subjetividade, para onde ele por assim
dizer havia migrado e assumido contornos que exigiam uma nova forma de realismo -aquele que renega as aparências
em nome da verdade. É o que diz Adorno
com outras palavras: "Se o realismo quer
permanecer fiel à sua herança realista e
dizer como realmente são as coisas, então
ele tem de renunciar a um realismo que, à
medida que reproduz a fachada, só serve
para ajudar na sua tarefa de enganar".
Ou seja: a objetivação da subjetividade
tornou-se o alvo dos autores à cata do real
e do verdadeiro -e nesse contexto basta
lembrar os romances de Dostoiévski,
Proust, Machado de Assis,James, Kafka e,
"last but not least", as obras de Freud.
Voltando a Adorno, é dele ainda a afirmação de que, "quando alguém mergulha em si mesmo, não encontra uma personalidade autônoma, desvinculada de
momentos sociais, mas sim as marcas de
sofrimento do mundo alienado". A ficção
de James e os "Prefácios" da Edição de
Nova York não desconhecem esse caminho, o que certamente atesta a sua atualidade. Ela consiste em traçar na escrita as
impressões digitais inscritas na imaginação e na sensibilidade por um universo
fora dos eixos.
O segundo crítico importante de James
que o livro de Marcelo Pen expõe e discute é Richard Blackmur. Trata-se aqui de
um ensaio de crítica geral -"The Art of
the Novel"- que se transformou em
obra de referência sobre os aspectos técnicos da arte ficcional. É de Blackmur a
conclusão taxativa de que "nunca houve
um autor como James, que viu a necessidade e teve a habilidade de criticar específica e deliberadamente sua obra".
Entre os aspectos técnicos da ficção que
ele destaca em James, incluem-se figuras
famosas do discurso crítico, como a "inteligência central" que atua como ponto
de vista para o relato, a percepção de que
o escritor não cria apenas os seus personagens, mas também os seus leitores, a
abordagem direta e a cena dramática, o
tema internacional, o problema do tempo, a ironia e a ambiguidade.
É notório que aqui se omite a miséria
do mundo, o que situaria James, com um
viés de razão, entre os "intimistas à sombra do poder". Mas não é justo esquecer
que um dos seus contos mais fortes,
"Brooksmith", tematiza o "esplendor" e a
derrocada de um mordomo.
Vida e arte
No curso da história ele acaba desempregado e a um passo da indigência por
ter sido abandonado pelo patrão. O narrador, tão cínico quanto não confiável,
diante da "excelência" do criado, recusa-se a oferecer-lhe ajuda na última visita
que faz ao personagem num subúrbio esquálido de Londres. A empatia do autor
implícito pelo herói infeliz não escapa ao
leitor que, nesse momento, se vê obrigado a reconhecer em James a lucidez sobre
o que é "the real thing" no outro lado do
seu cortejo de estetas e milionários.
Nesse caso faz diferença falar na distinção que o escritor americano faz entre
"vida" e "arte". Pois para ele é da "vida"
que emerge o "germe" que dá origem à
obra artística. No discurso de James, "a
vida é em essência uma forma incontida"
-segundo Pen, de amplitude descontrolada-, ao passo que a ficção enquanto
arte requer uma "medida". Dito de outro
modo, em seu caráter caótico, a "vida"
precisa ser organizada pela força restritiva da arte.
Como artista dividido em seu duplo
compromisso com o romance -tanto
no que ele propõe de liberdade como no
que exerce de controle (as palavras são de
Marcelo Pen, como várias outras que têm
sido aqui utilizadas)-, James caminha
de uma ênfase da vida sobre a arte para
uma ênfase do empenho artístico sobre a
vida, especialmente nos "Prefácios". De
qualquer modo, o que o artista procura,
por meio da imaginação, é a própria força
da vida. E isso demonstra seu pacto com
a realidade. Quer dizer: "The Old Pretender" não era um formalista.
Nada disso, entretanto, é tarefa simples,
circunstância realçada pelo autor deste
ensaio quando deixa claro que "estudar a
teoria de James, sobretudo a que está
contida nos "Prefácios", nunca é preto no
branco". Ela é, antes, como afirma, cheia
de nuanças que podem desnortear quem
procura verdades inequívocas (ou lineares). Talvez seja esse o lance que descreva
melhor a célebre "casa da ficção" de James, uma vez que, para ele, essa casa é
uma construção com milhares de janelas
que se abrem atentamente para a "cena
humana". Naturalmente, a esse conteúdo
de verdade histórica corresponde não só
o arcabouço subjetivo do criador e das
suas criaturas, como também a capacidade formal de veiculá-lo.
Marcelo Pen escreve com razão que
muitas vezes é complicado separar o que
James queria dizer do modo como ele o
disse. Isto é: para ele, como para todo artista que honra esse nome, a forma já é
um conteúdo -um conteúdo social sedimentado, para completar, com Adorno, esse pensamento.
O livro que acaba de ser lançado presta
uma homenagem ao trabalho artístico de
James ao se render -muitas vezes mimeticamente- à sua frase labiríntica,
não raro obscura e no entanto lapidar
que, no seu trajeto tortuoso, desenha
aquilo que sustenta, seja nos comentários, seja nas traduções.
As traduções, aliás, são tão exigentes
quanto os comentários, na procura constante de equivalências entre o texto de
partida e a língua de chegada. O resultado
é o encontro entre ambos numa espécie
de "língua terceira", em que as peças traduzidas, sujeitas às proezas verbais do
original, revelam, em última análise, as
virtualidade do nosso idioma.
Nota
Com alterações, este trabalho foi lido numa mesa-redonda na livraria Cultura do shopping Villa-Lobos. Participaram da mesa Arthur Nestrovski, Ismail Xavier, Iumna Maria Simon e o próprio Marcelo Pen.
Modesto Carone é escritor, tradutor de Kafka e
professor de teoria literária e literatura comparada, autor, entre outros livros, de "Resumo de Ana"
(Companhia das Letras).
A Arte do Romance
Henry James
Tradução e organização: Marcelo Pen
Globo (Tel. 0/xx/11/3767-7889)
319 págs., R$ 39,00
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