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A coerência da obra de Arthur Luiz Piza
Limites provisórios
SHEILA LEIRNER
Arthur Luiz Piza é um dos mais importantes artistas brasileiros da atualidade. A
sua obra, desenvolvida ao longo de quase
seis décadas, sem dúvida mereceria uma
monografia extensa e aprofundada. Contudo o volume "Arthur Luiz Piza", que
acaba de ser editado numa coleção chamada "Monografias", não é propriamente um livro de estudo que se propõe esgotar tão precioso assunto. É antes um luxuoso catálogo ordenado, uma medida
estratégica de marketing que provê a sustentação e o relançamento do "produto"
Arthur Luiz Piza.
Mas essa é também uma disposição indiscutivelmente oportunista. Aproveita
com astúcia o momento em que o mercado consumidor pode ser ampliado diante
das significativas e bem-sucedidas manifestações do artista durante o ano passado na Europa e no Brasil, como a exposição na Fundação Calouste Gulbenkian
em Paris e as duas retrospectivas na Pinacoteca do Estado de São Paulo e no Museu de Arte do Rio Grande do Sul.
Magnificamente maquiado para se
apresentar como um "livro", este álbum
contém todos os ingredientes aparentes
para garantir o bom êxito (e o bom patrocínio) da iniciativa: bela diagramação,
texto bilíngue, algumas poucas e expressivas fotos históricas, ensaios curtos de
nomes conhecidos da crítica francesa,
uma cronologia, uma escassa bibliografia
(com sete títulos) e -para a alegria dos
colecionadores de Piza- mais de 140
pródigas páginas duplas (cerca de 285, no
total) de ilustrações coloridas quase que
apenas de obras pertencentes às suas coleções. Como os museus e as instituições
culturais também compram trabalhos e
são considerados "colecionadores", além
de darem peso e credibilidade à produção, naturalmente algumas obras de certos acervos ali estão igualmente reproduzidas.
O "livro" "Arthur Luiz Piza", portanto,
não é um livro. É um "catálogo "raisonné'", concebido pelo marchand que representa o artista (Raquel Arnaud) e deve
ser considerado e analisado como tal.
Mas o que é um catálogo "raisonné"?
Num país que ainda não possui essa
tradição, deve-se, antes de tudo, esclarecer que se trata de um volume de ilustrações da produção de um artista geralmente notável, que se publica autonomamente, com textos breves e legendas, para servir como referência ou como um
"arquivo" de sua obra. Esse gênero de publicação pode cobrir todo o trabalho ou
uma determinada parte dele, assim como
apenas uma dada técnica ou linguagem
entre as várias utilizadas (pintura, desenho, gravura, escultura etc.).
Está claro que um catálogo "raisonné"
não deixa de ser uma peça cultural. Afinal, ele servirá para consultas e para o
melhor conhecimento do seu objeto de
atenção. Certamente enriquecerá uma
biblioteca e é possível que possa ser adotado até mesmo por alguma universidade. No entanto a sua finalidade principal
será sempre a de aglutinar uma obra dispersa, de fixar os traços pelos quais ela
poderá ser reencontrada e de valorizá-la
do ponto de vista mercadológico.
Em suma, ele funciona como um porta-fólio -aquela pasta de cartão usada para
guardar papéis, desenhos, estampas
etc.-, só que de forma ordenada e judiciosa. Logo, um catálogo "raisonné" nunca ultrapassa os limites do seu suporte. É,
e sempre será, um não-livro.
Assim, este não-livro, patrocinado e
editado como um livro e apresentado no
release como uma obra "à altura da extensa, variada e instigante produção" de
Arthur Luiz Piza, em vez de suscitar uma
resenha relativa a ele próprio, de imediato só pode nos remeter ao trabalho que
focaliza.
De passagem, certamente poderíamos
comentar que Christine Frérot, a primeira crítica que apresenta o artista, é uma
especialista da arte latino-americana moderna e contemporânea, em especial a do
México, e que o seu pequeno texto se refere principalmente à exposição "Da Colagem ao Movimento", na galeria do
Centro Cultural Calouste Gulbenkian de
Paris, em 2002. Ali, a historiadora aponta
rapidamente as transformações sofridas
por seu trabalho em papel desde que Piza
se radicou em Paris no início dos anos 50
até 2000.
Poderíamos dizer também que o autor
do segundo artigo, Michel Nuridsany
-crítico eminente do jornal "Le Figaro",
familiarizado com a arte brasileira por
suas participações como comissário da
França e depois como correspondente
em várias edições da Bienal de São Paulo- apresenta uma visão delicada e poética da obra de Piza, que ele compara à arte da lítotes e, é claro, aos haicais.
No entanto, na falta de notas biobibliográficas, o leitor comum fica sem saber
quem são os autores dessas duas apresentações, assim como da eficiente e bem
escrita, porém inexplicavelmente não assinada, cronologia feita pelo crítico Tiago
Mesquita.
Quanto à obra de Arthur Luiz Piza, essa
sim ultrapassa todos os limites. Como
poucas, ela revela uma coerência que nada tem a ver com a lógica do "tâcheron"
(na acepção depreciativa de "operário esforçado") ou com o sentido do produto
congruente e repetitivo que o artífice faz
nascer de sua tarefa diária. E quantos artistas/artífices laboriosos o Brasil possui!
Não basta o lavor para chegar a uma
real coerência. A de Piza está nas procuras e nas rupturas constantes, o mesmo
processo que vemos em grandes artistas
como Giacometti ou ainda Matisse, para
quem o trabalho se baseava menos na
realização do que na dificuldade ou mesmo na impossibilidade angustiante de revelar o que eles viam.
Durante quase seis décadas de criação
cotidiana, Piza revela suas interrogações,
pressas, desvios, erros e também verdadeiros feitos de representação geométrica. Podemos nos interrogar sobre as diferenças entre um campo de investigação e
uma expressão plenamente autônoma,
pois o exercício da gravura, desenho e colagem para Piza é o meio necessário, permanente, de ver e de intuir.
Ao longo de sua prática, a expressão do
artista torna-se cada vez mais apurada e
sem concessões. A cada momento, Piza
frustra as expectativas que ele mesmo
cria e se joga em diferentes experiências.
Cada trabalho é realizado como um campo aberto. Não prende, não define, não
traz certezas nem plenitudes. Soberbas,
mas sempre vacilantes, suas linguagens e
técnicas são prospectivas. Sugerem novas
saídas, propõem limites provisórios, testemunham desordens e mutações.
Há 30 anos, por exemplo, Piza veio ao
Brasil para mostrar, na Petite Galerie,
gravuras e múltiplos já sensivelmente
amadurecidos, dignos do excelente gravador, antigo aluno de Friedlander.
Aquelas obras desde muito revelavam
um enorme sentido plástico tanto nas
texturas quanto nas transparências, cor,
relevo e impressão.
A luminosidade e a vibração eram frutos de uma experiência sensível, puramente visual, e de uma expressiva identidade entre o artista e as formas naturais
ou orgânicas, redescobertas e compostas
com grande imaginação. Naquela ocasião Piza afirmou: "Sou um bicho pintando... Para mim a pintura é uma coisa instintiva, natural. Eu dou um tiro e estoura
a gravura!".
Entretanto, apenas três anos depois, o
artista adotou uma severidade e um ascetismo extremos. Com uma coragem formidável ele enfrentou uma nova, despojada e difícil condição na qual o material e
a cor eram praticamente ignorados para
servir como meros suportes de uma relação intensa entre as partes constitutivas
de seus relevos. A despeito disso, no momento de sua exposição na extinta galeria
Arte Global, em 1977, lembro-me de ter
escrito que a dimensão poética, a atração
hipnótica e a mesma plasticidade de seus
trabalhos anteriores continuavam a
emergir naquelas austeras esculturas unidimensionais.
Apesar de suas múltiplas facetas, dos
rompimentos abruptos e vivificantes, a
coerência de Arthur Luiz Piza permaneceu intocada. Ela subsistiu em meio às
trocas espaciais, às voltas e justaposições,
às acumulações e efervescências, às interrupções e extensões. Nada, nenhuma circunstância, conseguiu impedir a harmonia do seu processo. E mesmo um porta-fólio, um "não-livro" de ilustrações, é capaz de nos aproximar desse primoroso
universo.
Sheila Leirner é crítica de arte e autora de "Arte
como Medida" e "Arte e Seu Tempo" (Perspectiva).
Arthur Luiz Piza
Textos de Christine Frérot
e Michel Nuridsany
Concepção: Raquel Arnaud
Cosac & Naify
(Tel. 0/xx/11/3218-1468)
360 págs., R$ 129,00
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