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São Paulo, sábado, 09 de agosto de 2003

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A coerência da obra de Arthur Luiz Piza

Limites provisórios

SHEILA LEIRNER

Arthur Luiz Piza é um dos mais importantes artistas brasileiros da atualidade. A sua obra, desenvolvida ao longo de quase seis décadas, sem dúvida mereceria uma monografia extensa e aprofundada. Contudo o volume "Arthur Luiz Piza", que acaba de ser editado numa coleção chamada "Monografias", não é propriamente um livro de estudo que se propõe esgotar tão precioso assunto. É antes um luxuoso catálogo ordenado, uma medida estratégica de marketing que provê a sustentação e o relançamento do "produto" Arthur Luiz Piza.
Mas essa é também uma disposição indiscutivelmente oportunista. Aproveita com astúcia o momento em que o mercado consumidor pode ser ampliado diante das significativas e bem-sucedidas manifestações do artista durante o ano passado na Europa e no Brasil, como a exposição na Fundação Calouste Gulbenkian em Paris e as duas retrospectivas na Pinacoteca do Estado de São Paulo e no Museu de Arte do Rio Grande do Sul.
Magnificamente maquiado para se apresentar como um "livro", este álbum contém todos os ingredientes aparentes para garantir o bom êxito (e o bom patrocínio) da iniciativa: bela diagramação, texto bilíngue, algumas poucas e expressivas fotos históricas, ensaios curtos de nomes conhecidos da crítica francesa, uma cronologia, uma escassa bibliografia (com sete títulos) e -para a alegria dos colecionadores de Piza- mais de 140 pródigas páginas duplas (cerca de 285, no total) de ilustrações coloridas quase que apenas de obras pertencentes às suas coleções. Como os museus e as instituições culturais também compram trabalhos e são considerados "colecionadores", além de darem peso e credibilidade à produção, naturalmente algumas obras de certos acervos ali estão igualmente reproduzidas.
O "livro" "Arthur Luiz Piza", portanto, não é um livro. É um "catálogo "raisonné'", concebido pelo marchand que representa o artista (Raquel Arnaud) e deve ser considerado e analisado como tal. Mas o que é um catálogo "raisonné"?
Num país que ainda não possui essa tradição, deve-se, antes de tudo, esclarecer que se trata de um volume de ilustrações da produção de um artista geralmente notável, que se publica autonomamente, com textos breves e legendas, para servir como referência ou como um "arquivo" de sua obra. Esse gênero de publicação pode cobrir todo o trabalho ou uma determinada parte dele, assim como apenas uma dada técnica ou linguagem entre as várias utilizadas (pintura, desenho, gravura, escultura etc.).
Está claro que um catálogo "raisonné" não deixa de ser uma peça cultural. Afinal, ele servirá para consultas e para o melhor conhecimento do seu objeto de atenção. Certamente enriquecerá uma biblioteca e é possível que possa ser adotado até mesmo por alguma universidade. No entanto a sua finalidade principal será sempre a de aglutinar uma obra dispersa, de fixar os traços pelos quais ela poderá ser reencontrada e de valorizá-la do ponto de vista mercadológico.
Em suma, ele funciona como um porta-fólio -aquela pasta de cartão usada para guardar papéis, desenhos, estampas etc.-, só que de forma ordenada e judiciosa. Logo, um catálogo "raisonné" nunca ultrapassa os limites do seu suporte. É, e sempre será, um não-livro.
Assim, este não-livro, patrocinado e editado como um livro e apresentado no release como uma obra "à altura da extensa, variada e instigante produção" de Arthur Luiz Piza, em vez de suscitar uma resenha relativa a ele próprio, de imediato só pode nos remeter ao trabalho que focaliza.
De passagem, certamente poderíamos comentar que Christine Frérot, a primeira crítica que apresenta o artista, é uma especialista da arte latino-americana moderna e contemporânea, em especial a do México, e que o seu pequeno texto se refere principalmente à exposição "Da Colagem ao Movimento", na galeria do Centro Cultural Calouste Gulbenkian de Paris, em 2002. Ali, a historiadora aponta rapidamente as transformações sofridas por seu trabalho em papel desde que Piza se radicou em Paris no início dos anos 50 até 2000.
Poderíamos dizer também que o autor do segundo artigo, Michel Nuridsany -crítico eminente do jornal "Le Figaro", familiarizado com a arte brasileira por suas participações como comissário da França e depois como correspondente em várias edições da Bienal de São Paulo- apresenta uma visão delicada e poética da obra de Piza, que ele compara à arte da lítotes e, é claro, aos haicais.
No entanto, na falta de notas biobibliográficas, o leitor comum fica sem saber quem são os autores dessas duas apresentações, assim como da eficiente e bem escrita, porém inexplicavelmente não assinada, cronologia feita pelo crítico Tiago Mesquita.
Quanto à obra de Arthur Luiz Piza, essa sim ultrapassa todos os limites. Como poucas, ela revela uma coerência que nada tem a ver com a lógica do "tâcheron" (na acepção depreciativa de "operário esforçado") ou com o sentido do produto congruente e repetitivo que o artífice faz nascer de sua tarefa diária. E quantos artistas/artífices laboriosos o Brasil possui!
Não basta o lavor para chegar a uma real coerência. A de Piza está nas procuras e nas rupturas constantes, o mesmo processo que vemos em grandes artistas como Giacometti ou ainda Matisse, para quem o trabalho se baseava menos na realização do que na dificuldade ou mesmo na impossibilidade angustiante de revelar o que eles viam.
Durante quase seis décadas de criação cotidiana, Piza revela suas interrogações, pressas, desvios, erros e também verdadeiros feitos de representação geométrica. Podemos nos interrogar sobre as diferenças entre um campo de investigação e uma expressão plenamente autônoma, pois o exercício da gravura, desenho e colagem para Piza é o meio necessário, permanente, de ver e de intuir.
Ao longo de sua prática, a expressão do artista torna-se cada vez mais apurada e sem concessões. A cada momento, Piza frustra as expectativas que ele mesmo cria e se joga em diferentes experiências. Cada trabalho é realizado como um campo aberto. Não prende, não define, não traz certezas nem plenitudes. Soberbas, mas sempre vacilantes, suas linguagens e técnicas são prospectivas. Sugerem novas saídas, propõem limites provisórios, testemunham desordens e mutações.
Há 30 anos, por exemplo, Piza veio ao Brasil para mostrar, na Petite Galerie, gravuras e múltiplos já sensivelmente amadurecidos, dignos do excelente gravador, antigo aluno de Friedlander. Aquelas obras desde muito revelavam um enorme sentido plástico tanto nas texturas quanto nas transparências, cor, relevo e impressão.
A luminosidade e a vibração eram frutos de uma experiência sensível, puramente visual, e de uma expressiva identidade entre o artista e as formas naturais ou orgânicas, redescobertas e compostas com grande imaginação. Naquela ocasião Piza afirmou: "Sou um bicho pintando... Para mim a pintura é uma coisa instintiva, natural. Eu dou um tiro e estoura a gravura!".
Entretanto, apenas três anos depois, o artista adotou uma severidade e um ascetismo extremos. Com uma coragem formidável ele enfrentou uma nova, despojada e difícil condição na qual o material e a cor eram praticamente ignorados para servir como meros suportes de uma relação intensa entre as partes constitutivas de seus relevos. A despeito disso, no momento de sua exposição na extinta galeria Arte Global, em 1977, lembro-me de ter escrito que a dimensão poética, a atração hipnótica e a mesma plasticidade de seus trabalhos anteriores continuavam a emergir naquelas austeras esculturas unidimensionais.
Apesar de suas múltiplas facetas, dos rompimentos abruptos e vivificantes, a coerência de Arthur Luiz Piza permaneceu intocada. Ela subsistiu em meio às trocas espaciais, às voltas e justaposições, às acumulações e efervescências, às interrupções e extensões. Nada, nenhuma circunstância, conseguiu impedir a harmonia do seu processo. E mesmo um porta-fólio, um "não-livro" de ilustrações, é capaz de nos aproximar desse primoroso universo.


Sheila Leirner é crítica de arte e autora de "Arte como Medida" e "Arte e Seu Tempo" (Perspectiva).


Arthur Luiz Piza
Textos de Christine Frérot e Michel Nuridsany
Concepção: Raquel Arnaud
Cosac & Naify
(Tel. 0/xx/11/3218-1468)
360 págs., R$ 129,00


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