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São Paulo, sábado, 09 de agosto de 2003

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Continuar a tradição

FELIPE CHAIMOVICH

"Ernesto de Fiori", de Mayra Laudanna, explicita o estado atual da prosa sobre o homenageado (1884-1945) e sua obra. Trata da recepção do pintor e escultor no Brasil, e como dele foi construída uma imagem por escritos e relatos. Conclui-se com uma biografia baseada em pesquisa metódica em arquivos documentais. Contudo a autora não interpreta o legado do artista.
O livro resulta de tese de doutorado defendida no departamento de filosofia da USP. Contribui para uma visão imparcial do assunto tematizado por meio do rigor terminológico advindo da subordinação constante do texto às referências citadas.
A relevância do estudo justifica-se pelo quiproquó reinante entre 1946 e 1975. Segundo a autora, durante o período, repetem-se as teses de uma publicação de Gerda Brentani, de 1946, sobre De Fiori, morto um ano antes: "Os textos de estudiosos que se seguem a ela, ao considerarem o artista na Europa, ou a ampliam ou a abreviam na inclusão de novas idéias, como o faz, por exemplo, Bardi. De 1947 a 1974 cada autor, ao se apropriar do texto de Gerda, o tem como modelo, ainda que o nome da autora possa não ser mencionado. A autoridade do texto de Gerda provém de sua a amizade a de Fiori".
De Fiori viveu no Brasil apenas entre 1936 e 1945, ano em que morreu. Veio da Alemanha em visita à família e, como estava em posição marginalizada pelo nazismo ascendente, acabou por ficar na América, quando irrompeu a Segunda Guerra Mundial.
Assim, o escrito de Gerda Brentani é analisado como modelo predominante na interpretação do nexo entre a fase européia e a brasileira. Mas, como mostra o terceiro capítulo, várias das posições de Gerda Brentani são parciais, seja por escassez de base documental, seja pelos tons modificados pela relação pessoal de amizade.
Ernesto de Fiori nasceu em 1884, provavelmente em Roma. A primeira referência como pintor coincide com sua ida para a Alemanha, em 1904. No início da carreira, aproximou-se do estilo do simbolista suíço Ferdinand Hodler (1853-1918).
Durante a Primeira Guerra, encontra-se com o nascente dadaísmo em Zurique: "De Fiori também quer uma arte moderna; todavia não aceita como "arte" os trabalhos que os dadaístas realizam. Em outubro (de 1918), opondo-se aos dadaístas, em parte à introdução de Jollos, publica "Von der Neuer Kunst" ("Da Nova Arte'), artigo no qual (...) não aceita como arte as "brincadeiras" dos dadaístas, tampouco a arte que "escorre entre os dedos", referindo Picasso e seus "medíocres" seguidores, e os "borrões à maneira de Kandinski". Em dezembro, Jollos publica artigo criticando de Fiori; naturalmente defendendo Kandinski, Arp, Klee, Picasso".
O embate com a arte moderna destaca-se entre os escritos de De Fiori entre as duas guerras. Sua posição é conservadora em comparação com os dadas.
Vive na Alemanha desde 1920 e participa do debate expressionista. Tanto em pintura como em escultura, pratica uma continuidade do simbolismo, manifesta no apego à figuração construída pelos rastros da mão do artista criador.
Interpreta a própria posição como defesa da tradição, acusando de decorativismo toda arte não-figurativa: "Continuar a tradição", como escreve em artigo de 1918, ou considerar as "características" próprias da arte "de todas as grandes épocas de cultura", como está nesse artigo de 1939, não significa prosseguir com as descobertas plásticas das obras passadas ou segui-las; deve-se considerar que a arte não existe sem história, sendo, assim, eterna. Além disso, não é possível fazer arte distanciando-se categoricamente de "qualquer representação", do contrário se faz artesanato, "um belo tapete ou uma decoração de parede, isto é, abstracionismo".
As diretrizes culturais do nazismo implementadas desde 1933 consideram o modernismo de De Fiori de média periculosidade. Obras suas são listadas como arte degenerada e retiradas da exibição pública em museus da Alemanha, mas não chegam a ser exibidas na mostra coletiva "Arte Degenerada".
É neste contexto que desembarca na rua Groenlândia o viajante de 1936. Pretende demorar-se pouco com a mãe e o irmão. O raro comércio de arte em São Paulo faz com que ensaie mudança para os EUA.
"Através de cartas, De Fiori recebe algumas informações sobre seu ateliê de Berlim, que possivelmente foi desalugado em 1939. No final deste ano, o artista se desfaz desse ateliê, como seu advogado comunica à Gau Berlin, em fevereiro de 1940, acrescentando: "Er lebt in Brasilien" (Ele vive no Brasil).'
Os três primeiros capítulos do livro mostram o artista em solo brasileiro. Como a biografia está no final, o leitor fica sem saber da existência anterior de De Fiori à sua chegada por aqui.
Em "Recepção da Obra de Ernesto de Fiori no Brasil", a autora aborda o período entre 1936 e 1945, quando o emigrado europeu convive com a elite paulistana, interage com os raros modernistas locais e repercute na imprensa. São justapostos textos de Menotti del Picchia, Cenni, Sérgio Milliet, Mário de Andrade, Luis Martins e da colunista Odette. A imparcialidade interpretativa de Mayra Laudanna equaliza os discursos numa prosa uniforme.
O capítulo seguinte, "Divulgação da Obra de Ernesto de Fiori", tematiza a figura histórica após o falecimento. A valorização crescente do aspecto modernista do europeu no Brasil é visível ao longo dos anos 50, sedimentando-se a fama a partir da década seguinte. Como escreve o crítico Luis Martins, em 1963: "Esse esquecimento é injusto, mas eu julgo encontrar para ele uma explicação: De Fiori morreu antes do tempo. A valorização da arte moderna, no Brasil, é coisa muito recente; só agora, talvez de uns dez anos para cá, se tanto, o público vem-se interessando por ela".
Segue-se a análise da imagem construída pelos discursos no capítulo "Lugares Comuns". O texto de Gerda Brentani é tomado como base do sentido dominante e comparado à posição de Walter Zanini em 1975, por ocasião da retrospectiva organizada pelo MAC-USP.
O livro encerra-se com a biografia crítica de Ernesto de Fiori. Ao comparar o debate anterior com pesquisa contemporânea rigorosa, Mayra Laudanna redimensiona nossa visão do artista ítalo-austríaco.


Felipe Chaimovich é crítico de arte da Folha.


Ernesto de Fiori
Mayra Laudanna
Edusp (Tel. 0/xx/11/3091-4156)
364 págs., R$ 88,00


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