UOL


São Paulo, sábado, 09 de agosto de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Lançado o quarto volume da biografia do romancista russo Fiodor Dostoiévski

Contra os niilistas

RUBENS FIGUEIREDO

A biografia tem se revelado um gênero tão híbrido e maleável quanto o romance e, a exemplo deste, demonstra certo gosto de pôr em questão seus próprios fundamentos. O projeto de um longo estudo, em cinco volumes, em torno da vida do romancista russo Fiodor Dostoiévski absorveu o professor americano Joseph Frank desde a década de 1950. No primeiro volume, ele anunciava que não seguiria o método convencional, que parte da vida para chegar à obra, mas sim o inverso. No entanto, neste quarto volume, "Os Anos Milagrosos", publicado originalmente em 1995, Frank já apresenta sua proposta sob outra luz.
Acredita que um estudo "exaustivo do contexto cultural da Rússia" permitirá uma compreensão mais apurada da obra de Dostoiévski do que o enfoque psicológico ou biográfico, "num sentido estritamente pessoal". Sublinha que o último caminho prevaleceu na crítica ocidental, ao passo que a crítica russa, a quem Frank deve muito, pôs mais peso no estudo do meio sociocultural de Dostoiévski -exatamente a opção adotada por Frank, sem prejuízo, contudo, do intuito biográfico que está na origem do seu projeto.

Tom militante
O resultado é um cruzamento de história sociocultural, crítica literária e biografia, em que a abrangência e a profundidade da pesquisa não impedem que se faça ouvir, por vezes, o tom militante e apaixonado de Frank. Compreende-se, é claro, que ninguém leva a efeito um empreendimento desse vulto sem uma autêntica paixão por seu assunto. Mas defender a pertinência de quase tudo o que Dostoiévski escreveu, fez ou disse, ao preço de algumas hipóteses e juízos tão taxativos quanto carentes de explicação, já ultrapassa a mistura de tratamentos que constitui este livro e introduz um componente de outro gênero literário: o panfleto.
Mas, de certo modo, isso até vem a calhar, pois o período abarcado em "Os Anos Milagrosos", 1865-1871, se caracteriza pelo crescente ardor combativo de Dostoiévski contra os niilistas. Essa palavra se popularizara instantaneamente na Rússia após o romance "Pais e Filhos" (1862), de Turguêniev e, para desgosto de seu autor, se consagrara como um termo depreciativo para denominar os opositores mais ferrenhos ao regime tzarista. Frank desenvolve uma extensa argumentação, com abundância de dados, em favor da tese de que os romances de Dostoiévski -sobretudo dessa fase- devem ser lidos como autênticas peças de uma campanha contra as idéias dos niilistas russos. O percurso, que vai de "Crime e Castigo" até "Os Demônios", com os romances "O Jogador", "O Idiota" e "O Eterno Marido" de permeio, se distingue por um progressivo impulso panfletário. Não por acaso, ao conceber "Os Demônios", Dostoiévski declarou: "O que estou escrevendo é algo tendencioso, pretendo falar com franqueza do modo mais apaixonado que puder. Todos os niilistas e ocidentalistas gritarão que sou um retrógrado. Para o inferno com eles, direi o que penso, até a última palavra". O romancista disse depositar suas esperanças "não no plano artístico, mas no lado tendencioso que dê apenas um panfleto, mas terei dito o que queria".
Frank traça um panorama bastante esclarecedor do que pensavam os niilistas e os ocidentalistas e nos ajuda a entender os motivos da sanha de Dostoiévski. Mas receio que não nos ajude a entender a sanha dos próprios niilistas e ocidentalistas, pois seu livro carece de referências à atuação e à natureza do regime tzarista e às condições de vida da população. O resultado é que, contra esse fundo vazio e abstratamente moral, os "radicais" -rubrica à qual Frank resume os protagonistas daqueles movimentos- podem parecer ao leitor meros perturbados ou depravados, por conta da sua fraqueza moral -os endemoniados, enfim, que Dostoiévski tendia a ver neles.

Orientação polêmica
As várias vertentes constituintes de "Os Anos Milagrosos" -biografia, crítica, história, panfleto- se mantêm coesas graças a um postulado comum: a intenção de Dostoiévski se cumpriria na letra de seus romances. Ou seja, a leitura correta dos romances dependeria do conhecimento daquilo que Dostoiévski pensava. A suposição é que, na atividade literária, a linguagem pode e deve ser reduzida à passividade e à transparência ante as intenções do autor. Desse modo, Frank tende a uma leitura demasiado literal das obras de Dostoiévski, demasiado obediente à orientação polêmica do romancista, anulando boa parte do que há de conflituoso, ou mesmo de fora de controle, no âmago de seus livros. Provavelmente, aquilo que neles mais nos interessa e nos afeta.
Porém Frank tem o grande mérito de nos abastecer com tantas informações que logo nos descobrimos municiados para resistir ao seu ímpeto tendencioso. Seu estudo, por exemplo, reforça em nós a idéia de que o nacionalismo encarniçado de Dostoiévski está na base do composto ideológico em que o escritor se escudava, perante a realidade. "Os Anos Milagrosos" englobam um período em que Dostoiévski viveu fora da Rússia, a fim de fugir dos credores e também da avidez da viúva do irmão e do próprio enteado, que parasitavam todos os seus proventos literários -nessa altura, sua única fonte de renda.
Dostoiévski, no decorrer desses anos, morou na Alemanha, na Suíça, na Itália e de novo na Alemanha. E ter de viver no estrangeiro só fez tornar mais belicoso o seu nacionalismo, que Frank às vezes chama de "sentimento patriótico" e apenas numa ocasião qualifica de "chauvinismo exacerbado", ao examinar certa passagem de "O Jogador" que espezinha os poloneses exilados.
Como era de prever, seu nacionalismo se traduzia num ódio -conforme o próprio Dostoiévski reconheceu, sem nenhum arrependimento- especialmente contra os alemães, os poloneses e os católicos, sem falar dos judeus, que Frank não menciona. O componente religioso do nacionalismo de Dostoiévski se enraizava na crença de que a Rússia era a "Terceira Roma", herdeira genuína de Roma e de Bizâncio, à qual caberia dominar e regenerar o mundo cristão. Nada menos que isso. Os dados apresentados por Frank deixam claro que o repúdio de Dostoiévski à Europa como um todo, sobretudo desde o Iluminismo, está ligado a um sentimento de ameaça à fé ortodoxa russa e às tradições nacionais. Niilistas e liberais surgiam aos seus olhos quase como invasores.
Frank reproduz estudos importantes a respeito do que seria, para Dostoiévski, o traço característico da religiosidade russa: a ênfase no cenoticismo. Ou seja, na noção de que Cristo, ao encarnar-se, abriu mão dos atributos divinos. Em razão disso, avulta na religiosidade popular a imagem de um Cristo sofredor e humilhado, ou mesmo fraco e louco. A análise que Frank perfaz de "O Idiota" ganha relevo à luz desses conhecimentos teológicos. E permite enquadrar esse romance -que de outro modo nos pareceria isolado- no arcabouço da vasta polêmica ideológica balizada por "Crime e Castigo" e "Os Demônios". De quebra, ainda podemos situar num contexto mais coerente e significativo o contínuo elogio dos sofredores, dos fracos e do loucos que vigora nos romances de Dostoiévski.
Portanto o mais interessante do livro de Frank não são seus esforços para retratar o escritor da forma mais positiva possível. Nessa linha, chega mesmo a classificá-lo de "moderado" e de "imparcial", contra todas as evidências. O mais relevante está em suas análises da gênese de cada um dos três grandes romances escritos no período em pauta e na reconstituição do método de trabalho de Dostoiévski.
Antes de propriamente começar um livro, ele enchia vários cadernos com anotações avulsas: criava personagens, desenvolvia vagos núcleos de enredo, sem a menor idéia de como combiná-los. Para funcionar, sua imaginação e seu engenho pareciam depender do ato da escrita e do trato direto com o texto escrito, em cujas linhas registra também orientações dirigidas a si mesmo. Aos poucos, no processo de escrever e reescrever essas páginas, Dostoiévski ia descobrindo os nexos entre os numerosos personagens e enredos, até se convencer de que algo digno de ser chamado de um romance já estava em andamento. Nesse ponto, redigia alguns capítulos em sequência, depois "jogava tudo fora", como dizia em suas cartas -embora às vezes fosse mentira-, e reescrevia ou refundia tudo, até a forma definitiva.

Coesão imperfeita
Deve-se ter em mente que, quase sempre, seus livros foram publicados em fascículos mensais, nos periódicos chamados pelos russos de "revistas grossas", e que o escritor ganhava por página. Com exceção de "Os Demônios" (cuja sequência não foi regular) e de "O Jogador" (escrito em apenas um mês e ditado para uma estenógrafa que, em seguida, se tornou sua segunda mulher), seus romances não eram redigidos de ponta a ponta antes da publicação, mas sim escritos à medida que os números das revistas vinham a público. Daí a necessidade de amadurecer ao máximo, nos cadernos, a idéia geral do romance, antes de dar início à sua publicação. Daí também a imperfeita coesão entre as partes, patente por exemplo em "O Idiota" e em "Os Demônios". O estudioso da obra de Dostoiévski tem a felicidade de dispor de muitos desses cadernos de notas e Frank nos permite acompanhar, por via dessas anotações, a gradual formação das figuras e dos temas principais de cada um dos romances.
Também dignos de nota são os argumentos de Dostoiévski, reunidos por Frank, em defesa de seu conceito de romance. Não lhe faltava a consciência de que a sua ficção não se subordinava ao realismo puro e simples, então vigente. Dostoiévski denominou seu estilo de "realismo fantástico" ou de "idealismo". Mas, para ele, o fantástico e o excepcional estavam representados pelos acontecimentos surpreendentes noticiados nos jornais, fatos não raro sórdidos e escabrosos, por meio dos quais ele esperava unir o contemporâneo (e polêmico) ao trágico (e invariável).
"Para os nossos escritores", disse Dostoiévski, "tais fatos são fantásticos, não dão atenção a eles, mas são realidade. Apenas deixamos que a realidade passe diante de nosso nariz. Será que o meu fantástico Idiota não é realidade? É sim, e da mais comum. Mesmo agora, essas personagens devem existir nos estratos de nossa sociedade separados de seu solo -estratos que na verdade se tornaram fantásticos".
Após seus ataques de epilepsia, especialmente assíduos e violentos nessa fase, Dostoiévski demorava às vezes mais de um dia para se recuperar e estar de novo apto a escrever. Certa página de "O Idiota" descreve de forma impressionante um desses surtos. Mas a ansiada e árdua volta à realidade estava bem longe de ser uma experiência de puro interesse literário. O panfleto polêmico, o noticiário de crimes, o relato da vida de santos, as reviravoltas típicas dos romances de folhetim, a tagarelice dos bêbados -eis o material do desvio pelo fantástico, em que Dostoiévski contava encontrar a realidade. Assim como, numa outra face do mesmo paradoxo, se aferrava ao sofrimento como condição da felicidade.


Rubens Figueiredo é escritor e tradutor, autor, entre outros, de "Barco a Seco" (Companhia das Letras).


Dostoiévski - Os Anos Milagrosos, 1865-1871
Joseph Frank
Tradução: Geraldo Gerson de Souza
Edusp (Tel. 0/xx/11/3091-4008)
662 págs., R$ 79,00



Texto Anterior: Continuar a tradição
Próximo Texto: Cartas que te quero
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.