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Lançado o quarto volume da biografia do romancista russo Fiodor Dostoiévski
Contra os niilistas
RUBENS FIGUEIREDO
A biografia tem se revelado um gênero
tão híbrido e maleável quanto o romance
e, a exemplo deste, demonstra certo gosto
de pôr em questão seus próprios fundamentos. O projeto de um longo estudo,
em cinco volumes, em torno da vida do
romancista russo Fiodor Dostoiévski absorveu o professor americano Joseph
Frank desde a década de 1950. No primeiro volume, ele anunciava que não seguiria o método convencional, que parte da
vida para chegar à obra, mas sim o inverso. No entanto, neste quarto volume, "Os
Anos Milagrosos", publicado originalmente em 1995, Frank já apresenta sua
proposta sob outra luz.
Acredita que um estudo "exaustivo do
contexto cultural da Rússia" permitirá
uma compreensão mais apurada da obra
de Dostoiévski do que o enfoque psicológico ou biográfico, "num sentido estritamente pessoal". Sublinha que o último
caminho prevaleceu na crítica ocidental,
ao passo que a crítica russa, a quem
Frank deve muito, pôs mais peso no estudo do meio sociocultural de Dostoiévski
-exatamente a opção adotada por
Frank, sem prejuízo, contudo, do intuito
biográfico que está na origem do seu projeto.
Tom militante
O resultado é um cruzamento de história sociocultural, crítica literária e biografia, em que a abrangência e a profundidade da pesquisa não impedem que se faça
ouvir, por vezes, o tom militante e apaixonado de Frank. Compreende-se, é claro, que ninguém leva a efeito um empreendimento desse vulto sem uma autêntica paixão por seu assunto. Mas defender a pertinência de quase tudo o que
Dostoiévski escreveu, fez ou disse, ao preço de algumas hipóteses e juízos tão taxativos quanto carentes de explicação, já ultrapassa a mistura de tratamentos que
constitui este livro e introduz um componente de outro gênero literário: o panfleto.
Mas, de certo modo, isso até vem a calhar, pois o período abarcado em "Os
Anos Milagrosos", 1865-1871, se caracteriza pelo crescente ardor combativo de
Dostoiévski contra os niilistas. Essa palavra se popularizara instantaneamente na
Rússia após o romance "Pais e Filhos"
(1862), de Turguêniev e, para desgosto de
seu autor, se consagrara como um termo
depreciativo para denominar os opositores mais ferrenhos ao regime tzarista.
Frank desenvolve uma extensa argumentação, com abundância de dados, em favor da tese de que os romances de Dostoiévski -sobretudo dessa fase- devem
ser lidos como autênticas peças de uma
campanha contra as idéias dos niilistas
russos. O percurso, que vai de "Crime e
Castigo" até "Os Demônios", com os romances "O Jogador", "O Idiota" e "O
Eterno Marido" de permeio, se distingue
por um progressivo impulso panfletário.
Não por acaso, ao conceber "Os Demônios", Dostoiévski declarou: "O que estou
escrevendo é algo tendencioso, pretendo
falar com franqueza do modo mais apaixonado que puder. Todos os niilistas e
ocidentalistas gritarão que sou um retrógrado. Para o inferno com eles, direi o
que penso, até a última palavra". O romancista disse depositar suas esperanças
"não no plano artístico, mas no lado tendencioso que dê apenas um panfleto, mas
terei dito o que queria".
Frank traça um panorama bastante esclarecedor do que pensavam os niilistas e
os ocidentalistas e nos ajuda a entender
os motivos da sanha de Dostoiévski. Mas
receio que não nos ajude a entender a sanha dos próprios niilistas e ocidentalistas, pois seu livro carece de referências à
atuação e à natureza do regime tzarista e
às condições de vida da população. O resultado é que, contra esse fundo vazio e
abstratamente moral, os "radicais" -rubrica à qual Frank resume os protagonistas daqueles movimentos- podem parecer ao leitor meros perturbados ou depravados, por conta da sua fraqueza moral -os endemoniados, enfim, que Dostoiévski tendia a ver neles.
Orientação polêmica
As várias vertentes constituintes de
"Os Anos Milagrosos" -biografia, crítica, história, panfleto- se mantêm coesas
graças a um postulado comum: a intenção de Dostoiévski se cumpriria na letra
de seus romances. Ou seja, a leitura correta dos romances dependeria do conhecimento daquilo que Dostoiévski pensava. A suposição é que, na atividade literária, a linguagem pode e deve ser reduzida
à passividade e à transparência ante as intenções do autor. Desse modo, Frank tende a uma leitura demasiado literal das
obras de Dostoiévski, demasiado obediente à orientação polêmica do romancista, anulando boa parte do que há de
conflituoso, ou mesmo de fora de controle, no âmago de seus livros. Provavelmente, aquilo que neles mais nos interessa e nos afeta.
Porém Frank tem o grande mérito de
nos abastecer com tantas informações
que logo nos descobrimos municiados
para resistir ao seu ímpeto tendencioso.
Seu estudo, por exemplo, reforça em nós
a idéia de que o nacionalismo encarniçado de Dostoiévski está na base do composto ideológico em que o escritor se escudava, perante a realidade. "Os Anos
Milagrosos" englobam um período em
que Dostoiévski viveu fora da Rússia, a
fim de fugir dos credores e também da
avidez da viúva do irmão e do próprio enteado, que parasitavam todos os seus
proventos literários -nessa altura, sua
única fonte de renda.
Dostoiévski, no decorrer desses anos,
morou na Alemanha, na Suíça, na Itália e
de novo na Alemanha. E ter de viver no
estrangeiro só fez tornar mais belicoso o
seu nacionalismo, que Frank às vezes
chama de "sentimento patriótico" e apenas numa ocasião qualifica de "chauvinismo exacerbado", ao examinar certa
passagem de "O Jogador" que espezinha
os poloneses exilados.
Como era de prever, seu nacionalismo
se traduzia num ódio -conforme o próprio Dostoiévski reconheceu, sem nenhum arrependimento- especialmente
contra os alemães, os poloneses e os católicos, sem falar dos judeus, que Frank não
menciona. O componente religioso do
nacionalismo de Dostoiévski se enraizava na crença de que a Rússia era a "Terceira Roma", herdeira genuína de Roma
e de Bizâncio, à qual caberia dominar e
regenerar o mundo cristão. Nada menos
que isso. Os dados apresentados por
Frank deixam claro que o repúdio de
Dostoiévski à Europa como um todo, sobretudo desde o Iluminismo, está ligado
a um sentimento de ameaça à fé ortodoxa
russa e às tradições nacionais. Niilistas e
liberais surgiam aos seus olhos quase como invasores.
Frank reproduz estudos importantes a
respeito do que seria, para Dostoiévski, o
traço característico da religiosidade russa: a ênfase no cenoticismo. Ou seja, na
noção de que Cristo, ao encarnar-se,
abriu mão dos atributos divinos. Em razão disso, avulta na religiosidade popular
a imagem de um Cristo sofredor e humilhado, ou mesmo fraco e louco. A análise
que Frank perfaz de "O Idiota" ganha relevo à luz desses conhecimentos teológicos. E permite enquadrar esse romance
-que de outro modo nos pareceria isolado- no arcabouço da vasta polêmica
ideológica balizada por "Crime e Castigo" e "Os Demônios". De quebra, ainda
podemos situar num contexto mais coerente e significativo o contínuo elogio dos
sofredores, dos fracos e do loucos que vigora nos romances de Dostoiévski.
Portanto o mais interessante do livro de
Frank não são seus esforços para retratar
o escritor da forma mais positiva possível. Nessa linha, chega mesmo a classificá-lo de "moderado" e de "imparcial",
contra todas as evidências. O mais relevante está em suas análises da gênese de
cada um dos três grandes romances escritos no período em pauta e na reconstituição do método de trabalho de Dostoiévski.
Antes de propriamente começar um livro, ele enchia vários cadernos com anotações avulsas: criava personagens, desenvolvia vagos núcleos de enredo, sem a
menor idéia de como combiná-los. Para
funcionar, sua imaginação e seu engenho
pareciam depender do ato da escrita e do
trato direto com o texto escrito, em cujas
linhas registra também orientações dirigidas a si mesmo. Aos poucos, no processo de escrever e reescrever essas páginas,
Dostoiévski ia descobrindo os nexos entre os numerosos personagens e enredos,
até se convencer de que algo digno de ser
chamado de um romance já estava em
andamento. Nesse ponto, redigia alguns
capítulos em sequência, depois "jogava
tudo fora", como dizia em suas cartas
-embora às vezes fosse mentira-, e
reescrevia ou refundia tudo, até a forma
definitiva.
Coesão imperfeita
Deve-se ter em mente que, quase
sempre, seus livros foram publicados em
fascículos mensais, nos periódicos chamados pelos russos de "revistas grossas",
e que o escritor ganhava por página. Com
exceção de "Os Demônios" (cuja sequência não foi regular) e de "O Jogador" (escrito em apenas um mês e ditado para
uma estenógrafa que, em seguida, se tornou sua segunda mulher), seus romances
não eram redigidos de ponta a ponta antes da publicação, mas sim escritos à medida que os números das revistas vinham
a público. Daí a necessidade de amadurecer ao máximo, nos cadernos, a idéia geral do romance, antes de dar início à sua
publicação. Daí também a imperfeita
coesão entre as partes, patente por exemplo em "O Idiota" e em "Os Demônios".
O estudioso da obra de Dostoiévski tem a
felicidade de dispor de muitos desses cadernos de notas e Frank nos permite
acompanhar, por via dessas anotações, a
gradual formação das figuras e dos temas
principais de cada um dos romances.
Também dignos de nota são os argumentos de Dostoiévski, reunidos por
Frank, em defesa de seu conceito de romance. Não lhe faltava a consciência de
que a sua ficção não se subordinava ao
realismo puro e simples, então vigente.
Dostoiévski denominou seu estilo de
"realismo fantástico" ou de "idealismo".
Mas, para ele, o fantástico e o excepcional
estavam representados pelos acontecimentos surpreendentes noticiados nos
jornais, fatos não raro sórdidos e escabrosos, por meio dos quais ele esperava
unir o contemporâneo (e polêmico) ao
trágico (e invariável).
"Para os nossos escritores", disse Dostoiévski, "tais fatos são fantásticos, não
dão atenção a eles, mas são realidade.
Apenas deixamos que a realidade passe
diante de nosso nariz. Será que o meu
fantástico Idiota não é realidade? É sim, e
da mais comum. Mesmo agora, essas
personagens devem existir nos estratos
de nossa sociedade separados de seu solo
-estratos que na verdade se tornaram
fantásticos".
Após seus ataques de epilepsia, especialmente assíduos e violentos nessa fase,
Dostoiévski demorava às vezes mais de
um dia para se recuperar e estar de novo
apto a escrever. Certa página de "O Idiota" descreve de forma impressionante
um desses surtos. Mas a ansiada e árdua
volta à realidade estava bem longe de ser
uma experiência de puro interesse literário. O panfleto polêmico, o noticiário de
crimes, o relato da vida de santos, as reviravoltas típicas dos romances de folhetim, a tagarelice dos bêbados -eis o material do desvio pelo fantástico, em que
Dostoiévski contava encontrar a realidade. Assim como, numa outra face do
mesmo paradoxo, se aferrava ao sofrimento como condição da felicidade.
Rubens Figueiredo é escritor e tradutor, autor,
entre outros, de "Barco a Seco" (Companhia das
Letras).
Dostoiévski - Os Anos
Milagrosos, 1865-1871
Joseph Frank
Tradução: Geraldo Gerson de Souza
Edusp (Tel. 0/xx/11/3091-4008)
662 págs., R$ 79,00
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