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O diálogo entre Mário e Drummond
Cartas que te quero
WANDER MELO MIRANDA
É bem conhecida a visita que
Tarsila do Amaral, Mário e Oswald de Andrade, na companhia
de Blaise Cendrars e outros, fazem às cidades históricas de Minas em 1924. O resultado mais fulgurante da viagem é, com certeza,
a descoberta de Aleijadinho e do
barroco, vistos como uma espécie
de origem da tradição artística nacional, que caberia ao modernismo inventar e dar forma.
De passagem por Belo Horizonte, a caravana paulista entra em
contato com jovens escritores do
lugar, atraídos pela aura modernista que os viajantes trazem como bagagem mais preciosa. Pedro Nava relata o encontro com
minúcias em "Beira-mar" (1978),
sua admiração especial por Mário, com quem irá trocar cartas, e
cujo exemplar de "Macunaíma"
(1928), recebido do autor, preenche em 1929 com aquarelas magníficas.
O resultado mais duradouro
desse encontro, ou o mais íntimo
e confidencial, talvez seja a longa
correspondência mantida por
Mário de Andrade (1893-1945) e
Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987), reunida em "Carlos
& Mário". É o tímido mineiro
quem dá a partida, quem demanda a palavra do visitante ilustre:
"Procure-me nas suas memórias
de Belo Horizonte: um rapaz magro, que esteve consigo no Grande
Hotel, e que muito o estima", diz
em 28 de outubro de 1924. A resposta não demora, numa longa
carta: "Eu sofro de gigantismo
epistolar", diz Mário. Gigantismo
que confirma seu "jeito de gostar
da vida", de "viver com religião a
vida": corpo e alma, carne e espírito, erudito e popular, improviso
e disciplina.
Primeira lição ao jovem missivista: dedicar-se ao sacrifício "lindo" (o adjetivo é de Mário) de
construir o Brasil. Carlos bate de
frente, na resposta: "Pessoalmente, acho lastimável essa história de
nascer entre paisagens incultas e
sob céus pouco civilizados (...).
Acho o Brasil infecto". E acrescenta firme e indignado: "Detesto
o Brasil como a um ambiente nocivo à expansão do meu espírito.
Sou hereditariamente europeu,
ou antes: francês". Carlos não entende a lição, Mário rebate com
calma, terá de ter paciência com o
interlocutor inteligente, mas
equivocado anatoliano. Depois de
alongar-se na relação entre nacionalismo e universalismo, na oposição inexistente entre os dois termos, no "despaisamento" provocado pela educação em livros estrangeiros, na riqueza que seria
acrescentar a "raça" brasileira à
humanidade, dá o golpe definitivo: "Os tupis nas suas tabas eram
mais civilizados que nós nas nossas casas de Belo Horizonte e São
Paulo. Por uma simples razão:
não há Civilização. Há civilizações".
A lição vai sendo assimilada aos
poucos pelo discípulo, que se torna depois companheiro do mestre na execução da tarefa inadiável
de criar a nação desejada. O tom
franco de abertura e afinidade
persiste no diálogo que dura de
1924 a 1945, descontados os períodos de interrupção e desentendimentos, nunca bem explicados. A
natureza autobiográfica das cartas aí se destaca pelo modo de revelação pessoal e troca intersubjetiva que carregam. Mário, ao falar
de poetas que admira, confessa a
Carlos em carta de 1944: "O que
eu gosto mais, o que está perto de
mim, como se fosse carne minha,
é você, é o que eu mais vivo". O
amigo responde logo, no mesmo
tom: "Eu me sinto justificado nas
suas obras completas; me sinto
também explicado e realizado".
Tamanha afinidade de personalidades artísticas tão distintas permite que se compreenda melhor,
por meio das cartas, o andamento
complexo -por dentro- do
modernismo. Permite ainda, por
meio das vicissitudes políticas
que ambos enfrentam, às vezes
colocados em lados opostos como
no movimento de 1932 (Mário era
constitucionalista; Drummond,
tenentista), que se interrogue de
nova maneira as relações do intelectual com o poder, da vida com
a arte.
Visão subterrânea
Para que isso aconteça, é bom
seguir a pista oferecida pelo organizador do volume, Silviano Santiago. Em entrevista sobre o trabalho realizado, destaca a pouca
validade hoje de se pensar na posição esquizofrênica de um intelectual dividido entre o emprego
estatal e a crítica ao Estado. A "visão subterrânea" do modernismo
a que as cartas dão acesso esclarece um dado até então pouco considerado da questão. Este seria o
de que "a formação do intelectual
modernista não é política, é literária. A literatura era o lugar de reflexão sobre o indivíduo, a sociedade, o universal".
Embora venha de família abastada, Drummond entra na política para sobreviver por conta própria, para escapar do sustento financeiro do pai, indo trabalhar no
jornal que era órgão oficial do
Partido Republicano Mineiro;
Mário participa do jornal do Partido Democrático nos anos 20, e
em 1935 é nomeado chefe da Divisão de Expansão Cultural e Diretor do Departamento de Cultura
da Municipalidade, em São Paulo.
Carlos muda-se para o Rio, em
1934, para chefiar o gabinete de
Gustavo Capanema, ministro da
Educação e Saúde Pública do governo Vargas. Deixa o cargo em
1945, ano de "A Rosa do Povo",
torna-se co-diretor por apenas alguns meses do diário comunista
"Tribuna do Povo", aceita o convite do amigo Rodrigo M.F. de
Andrade para trabalhar na diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, onde permanece
até a aposentadoria em 1962. Mário, em 1938, muda-se para o Rio,
onde vai ser professor na Universidade do Distrito Federal.
Em nenhum momento das escolhas feitas e dos convites aceitos
está em jogo o partido político de
ambos, mas a "competência para
gerir cultura e educação", ainda
conforme Santiago. Na raiz da
competência, a convicção de Mário e Carlos de que somente pela
ação simultânea de ambas as esferas o país poderia efetivamente
transformar-se e progredir. Em
nenhum momento das cartas, essa convicção é colocada à prova.
Ao contrário, vai-se delineando
consciente como tarefa a ser cumprida, explícita e urgente desde o
início em Mário, conquista mais
vagarosa, mas não menos intensa
(apesar de irônica) em Carlos:
"Precisamos educar o Brasil./
Compraremos professores e livros,/ assimilaremos finas culturas,/ abriremos "dancings" e subvencionaremos as elites", são versos do "Hino Nacional", de "Brejo
das Almas" (1934).
Convicções não escamoteiam
conflitos políticos e pessoais. Destes as cartas nos falam sob uma
perspectiva rigorosa, alicerçadas
que estão na atitude aberta e sem
subterfúgios de um missivista em
relação ao outro. Um dos conflitos citados, o do movimento de
1932, leva Mário a afirmar seu
amor incondicional a São Paulo, o
desejo de que o estado se separe
do resto do Brasil. Conclui a bela e
dilacerada carta de 6 de novembro de 1932 com uma declaração
bélica dirigida a Carlos: "Você,
nacionalmente falando, é um inimigo meu agora. Você talvez não
sinta isso, eu sinto." A correspondência só é retomada meses depois, por iniciativa de Mário, e
prossegue até a mudança dele para o Rio, em razão das intrigas que
o levam à demissão do Departamento de Cultura paulistano.
Carlos se movimenta até conseguir algo para o amigo no Rio.
Mário, aturdido pelos acontecimentos, escreve a Rodrigo M. F.
de Andrade em 14 de junho de
1934: "Quero escuridão, não quero vingar-me de ninguém, quero
escuridão. Qualquer coisa serve,
quero partir, agora que já ficou
provado que não roubei nada,
nem pratiquei desfalques".
No Rio, o contato entre os dois
amigos não será frequente como
nas cartas, mas reafirma o fato de
que, para uma geração formada
pela literatura, o empenho político passa pelo exercício intenso da
palavra escrita, como Mário afirma mais tarde, em carta de 11 de
fevereiro de 1945: "Só o poema me
salva". A opção pela "torre-de-marfim" (o termo é de Mário) não
se apresenta imune às contradições que cercam o poeta, mas como construção de um espaço profissional para o homem de letras
independente da profissão de político. É nesse fio de navalha que o
artista e o escritor, o intelectual
enfim, devem atuar. É ele que as
cartas sublinham como história
de uma amizade e expressão dolorosa de uma felicidade (mais
uma vez Mário) a que a correspondência entre os dois gigantes
do modernismo empresta uma
feição muito singular.
Sob a forma simultânea do
transbordamento afetivo e da razão construtiva, as cartas constituem em si um gênero literário à
parte, legado modernista que o
autor de "Paulicéia Desvairada"
contribuiu como ninguém para
nos deixar.
As 161 cartas ora reunidas encontram em Silviano Santiago um
organizador e comentarista notável. Professor do primeiro curso
sistemático sobre o tema, ministrado em 1988 na PUC-Rio, Santiago vem se dedicando desde então ao estudo da correspondência
literária. Seu livro mais recente,
"A República das Letras" (2003), é
uma coletânea de 41 cartas que
vão de Gonçalves Dias a Ana Cristina César, todas elas referentes ao
ofício de escrever. Especialista no
gênero, ao lado da autobiografia e
do memorialismo, movimenta-se
livremente entre a informação, o
comentário e a interpretação, como destacou Heloisa Buarque de
Hollanda em resenha sobre "Carlos & Mário".
As anotações suplementam o
texto anotado e demonstram com
clareza as relações do eu, da literatura e do Brasil que, segundo outro resenhista do livro, Alcides Villaça, alicerçam as cartas. Às anotações feitas por Drummond, em
"A Lição do Amigo" (1982), Santiago sobrepõe as suas, atualizando a interlocução realizada. Para
ela contribui de forma decisiva a
pesquisa iconográfica cuidadosa e
extensa de Lélia Coelho Frota, rara em obras dessa natureza, iluminando, à sua maneira, o diálogo entre letra e imagem, cerne da
melhor produção modernista. Livro vigoroso em todos os sentidos, "Carlos & Mário" é desde já
fundamental para melhor se entender o que ainda pode ser chamado de cultura brasileira.
Wander Melo Miranda é professor de
teoria da literatura e literatura comparada na UFMG e co-organizador de "Arquivos Literários", entre outros.
Carlos & Mário
Correspondência de Carlos
Drummond de Andrade
e Mário de Andrade
Organização e notas:
Silviano Santiago
Bem-te-vi
(Tel.0/xx//21/3804-8678)
614 págs., R$ 190,00
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