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São Paulo, sábado, 09 de agosto de 2003

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O diálogo entre Mário e Drummond

Cartas que te quero

WANDER MELO MIRANDA

É bem conhecida a visita que Tarsila do Amaral, Mário e Oswald de Andrade, na companhia de Blaise Cendrars e outros, fazem às cidades históricas de Minas em 1924. O resultado mais fulgurante da viagem é, com certeza, a descoberta de Aleijadinho e do barroco, vistos como uma espécie de origem da tradição artística nacional, que caberia ao modernismo inventar e dar forma.
De passagem por Belo Horizonte, a caravana paulista entra em contato com jovens escritores do lugar, atraídos pela aura modernista que os viajantes trazem como bagagem mais preciosa. Pedro Nava relata o encontro com minúcias em "Beira-mar" (1978), sua admiração especial por Mário, com quem irá trocar cartas, e cujo exemplar de "Macunaíma" (1928), recebido do autor, preenche em 1929 com aquarelas magníficas.
O resultado mais duradouro desse encontro, ou o mais íntimo e confidencial, talvez seja a longa correspondência mantida por Mário de Andrade (1893-1945) e Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), reunida em "Carlos & Mário". É o tímido mineiro quem dá a partida, quem demanda a palavra do visitante ilustre: "Procure-me nas suas memórias de Belo Horizonte: um rapaz magro, que esteve consigo no Grande Hotel, e que muito o estima", diz em 28 de outubro de 1924. A resposta não demora, numa longa carta: "Eu sofro de gigantismo epistolar", diz Mário. Gigantismo que confirma seu "jeito de gostar da vida", de "viver com religião a vida": corpo e alma, carne e espírito, erudito e popular, improviso e disciplina.
Primeira lição ao jovem missivista: dedicar-se ao sacrifício "lindo" (o adjetivo é de Mário) de construir o Brasil. Carlos bate de frente, na resposta: "Pessoalmente, acho lastimável essa história de nascer entre paisagens incultas e sob céus pouco civilizados (...). Acho o Brasil infecto". E acrescenta firme e indignado: "Detesto o Brasil como a um ambiente nocivo à expansão do meu espírito. Sou hereditariamente europeu, ou antes: francês". Carlos não entende a lição, Mário rebate com calma, terá de ter paciência com o interlocutor inteligente, mas equivocado anatoliano. Depois de alongar-se na relação entre nacionalismo e universalismo, na oposição inexistente entre os dois termos, no "despaisamento" provocado pela educação em livros estrangeiros, na riqueza que seria acrescentar a "raça" brasileira à humanidade, dá o golpe definitivo: "Os tupis nas suas tabas eram mais civilizados que nós nas nossas casas de Belo Horizonte e São Paulo. Por uma simples razão: não há Civilização. Há civilizações".
A lição vai sendo assimilada aos poucos pelo discípulo, que se torna depois companheiro do mestre na execução da tarefa inadiável de criar a nação desejada. O tom franco de abertura e afinidade persiste no diálogo que dura de 1924 a 1945, descontados os períodos de interrupção e desentendimentos, nunca bem explicados. A natureza autobiográfica das cartas aí se destaca pelo modo de revelação pessoal e troca intersubjetiva que carregam. Mário, ao falar de poetas que admira, confessa a Carlos em carta de 1944: "O que eu gosto mais, o que está perto de mim, como se fosse carne minha, é você, é o que eu mais vivo". O amigo responde logo, no mesmo tom: "Eu me sinto justificado nas suas obras completas; me sinto também explicado e realizado". Tamanha afinidade de personalidades artísticas tão distintas permite que se compreenda melhor, por meio das cartas, o andamento complexo -por dentro- do modernismo. Permite ainda, por meio das vicissitudes políticas que ambos enfrentam, às vezes colocados em lados opostos como no movimento de 1932 (Mário era constitucionalista; Drummond, tenentista), que se interrogue de nova maneira as relações do intelectual com o poder, da vida com a arte.

Visão subterrânea
Para que isso aconteça, é bom seguir a pista oferecida pelo organizador do volume, Silviano Santiago. Em entrevista sobre o trabalho realizado, destaca a pouca validade hoje de se pensar na posição esquizofrênica de um intelectual dividido entre o emprego estatal e a crítica ao Estado. A "visão subterrânea" do modernismo a que as cartas dão acesso esclarece um dado até então pouco considerado da questão. Este seria o de que "a formação do intelectual modernista não é política, é literária. A literatura era o lugar de reflexão sobre o indivíduo, a sociedade, o universal".
Embora venha de família abastada, Drummond entra na política para sobreviver por conta própria, para escapar do sustento financeiro do pai, indo trabalhar no jornal que era órgão oficial do Partido Republicano Mineiro; Mário participa do jornal do Partido Democrático nos anos 20, e em 1935 é nomeado chefe da Divisão de Expansão Cultural e Diretor do Departamento de Cultura da Municipalidade, em São Paulo.
Carlos muda-se para o Rio, em 1934, para chefiar o gabinete de Gustavo Capanema, ministro da Educação e Saúde Pública do governo Vargas. Deixa o cargo em 1945, ano de "A Rosa do Povo", torna-se co-diretor por apenas alguns meses do diário comunista "Tribuna do Povo", aceita o convite do amigo Rodrigo M.F. de Andrade para trabalhar na diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, onde permanece até a aposentadoria em 1962. Mário, em 1938, muda-se para o Rio, onde vai ser professor na Universidade do Distrito Federal.
Em nenhum momento das escolhas feitas e dos convites aceitos está em jogo o partido político de ambos, mas a "competência para gerir cultura e educação", ainda conforme Santiago. Na raiz da competência, a convicção de Mário e Carlos de que somente pela ação simultânea de ambas as esferas o país poderia efetivamente transformar-se e progredir. Em nenhum momento das cartas, essa convicção é colocada à prova. Ao contrário, vai-se delineando consciente como tarefa a ser cumprida, explícita e urgente desde o início em Mário, conquista mais vagarosa, mas não menos intensa (apesar de irônica) em Carlos: "Precisamos educar o Brasil./ Compraremos professores e livros,/ assimilaremos finas culturas,/ abriremos "dancings" e subvencionaremos as elites", são versos do "Hino Nacional", de "Brejo das Almas" (1934).
Convicções não escamoteiam conflitos políticos e pessoais. Destes as cartas nos falam sob uma perspectiva rigorosa, alicerçadas que estão na atitude aberta e sem subterfúgios de um missivista em relação ao outro. Um dos conflitos citados, o do movimento de 1932, leva Mário a afirmar seu amor incondicional a São Paulo, o desejo de que o estado se separe do resto do Brasil. Conclui a bela e dilacerada carta de 6 de novembro de 1932 com uma declaração bélica dirigida a Carlos: "Você, nacionalmente falando, é um inimigo meu agora. Você talvez não sinta isso, eu sinto." A correspondência só é retomada meses depois, por iniciativa de Mário, e prossegue até a mudança dele para o Rio, em razão das intrigas que o levam à demissão do Departamento de Cultura paulistano. Carlos se movimenta até conseguir algo para o amigo no Rio. Mário, aturdido pelos acontecimentos, escreve a Rodrigo M. F. de Andrade em 14 de junho de 1934: "Quero escuridão, não quero vingar-me de ninguém, quero escuridão. Qualquer coisa serve, quero partir, agora que já ficou provado que não roubei nada, nem pratiquei desfalques".
No Rio, o contato entre os dois amigos não será frequente como nas cartas, mas reafirma o fato de que, para uma geração formada pela literatura, o empenho político passa pelo exercício intenso da palavra escrita, como Mário afirma mais tarde, em carta de 11 de fevereiro de 1945: "Só o poema me salva". A opção pela "torre-de-marfim" (o termo é de Mário) não se apresenta imune às contradições que cercam o poeta, mas como construção de um espaço profissional para o homem de letras independente da profissão de político. É nesse fio de navalha que o artista e o escritor, o intelectual enfim, devem atuar. É ele que as cartas sublinham como história de uma amizade e expressão dolorosa de uma felicidade (mais uma vez Mário) a que a correspondência entre os dois gigantes do modernismo empresta uma feição muito singular.
Sob a forma simultânea do transbordamento afetivo e da razão construtiva, as cartas constituem em si um gênero literário à parte, legado modernista que o autor de "Paulicéia Desvairada" contribuiu como ninguém para nos deixar.
As 161 cartas ora reunidas encontram em Silviano Santiago um organizador e comentarista notável. Professor do primeiro curso sistemático sobre o tema, ministrado em 1988 na PUC-Rio, Santiago vem se dedicando desde então ao estudo da correspondência literária. Seu livro mais recente, "A República das Letras" (2003), é uma coletânea de 41 cartas que vão de Gonçalves Dias a Ana Cristina César, todas elas referentes ao ofício de escrever. Especialista no gênero, ao lado da autobiografia e do memorialismo, movimenta-se livremente entre a informação, o comentário e a interpretação, como destacou Heloisa Buarque de Hollanda em resenha sobre "Carlos & Mário".
As anotações suplementam o texto anotado e demonstram com clareza as relações do eu, da literatura e do Brasil que, segundo outro resenhista do livro, Alcides Villaça, alicerçam as cartas. Às anotações feitas por Drummond, em "A Lição do Amigo" (1982), Santiago sobrepõe as suas, atualizando a interlocução realizada. Para ela contribui de forma decisiva a pesquisa iconográfica cuidadosa e extensa de Lélia Coelho Frota, rara em obras dessa natureza, iluminando, à sua maneira, o diálogo entre letra e imagem, cerne da melhor produção modernista. Livro vigoroso em todos os sentidos, "Carlos & Mário" é desde já fundamental para melhor se entender o que ainda pode ser chamado de cultura brasileira.


Wander Melo Miranda é professor de teoria da literatura e literatura comparada na UFMG e co-organizador de "Arquivos Literários", entre outros.


Carlos & Mário
Correspondência de Carlos Drummond de Andrade e Mário de Andrade

Organização e notas: Silviano Santiago
Bem-te-vi
(Tel.0/xx//21/3804-8678)
614 págs., R$ 190,00


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