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São Paulo, sábado, 09 de agosto de 2003

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O longo declínio econômico

ANTONIO CARLOS MACEDO E SILVA

"Situe-se!", pede a voz em off. "Não posso. Olho em volta e o que vejo são meus contemporâneos". É mais ou menos nesses termos que uma tirinha de Luis Fernando Veríssimo expressa a perplexidade do indivíduo de hoje. Onde outros encontrariam o reconforto do rebanho, o personagem parece enxergar-se e aos contemporâneos como companheiros na mesma nau de rumo ignorado; parece dar-se conta de como é difícil conjugar verbos e articular ações no tempo presente.
Robert Brenner -historiador até pouco tempo identificado à pesquisa sobre a transição do feudalismo ao capitalismo- está entre os contemporâneos que se dedicam ao duro ofício de explicar o aqui e o agora, lançando um olhar além e acima da manada. Em "O Boom e a Bolha", Brenner dá sequência a um longo ensaio publicado em 1998 na "New Left Review" ("A Economia da Turbulência Global"). Ambos integram um projeto ambicioso -dissecado por Giovanni Arrighi, de forma respeitosamente crítica, em longa resenha no número de março-abril deste ano da mesma revista- cujo principal objetivo parecer ser o de oferecer uma interpretação original do "longo declínio" econômico.
Mas de que longo declínio se trata? Ora, deste mesmo em que temos vivido uma boa parte de nossas vidas e que assola a economia global do início dos anos 70 até, possivelmente, os dias de hoje. Sem excluir o "boom" (isto é, os dez anos de crescimento da economia norte-americana até 2001) e a "bolha" (a valorização descomedida das ações, particularmente de empresas de alta tecnologia). Já se percebe que a perspectiva do historiador não é a mesma dos pastores (e dos rebanhos) embarcados na onda da "Nova Economia".
Historiadores (e até economistas sérios) sabem que os anos de ouro da economia capitalista não tiveram início com Thatcher e Reagan nem foram coroados pela ascensão vertiginosa das cotações na Nasdaq. Os anos de ouro foram as três décadas após a Segunda Grande Guerra, justamente os tão vilipendiados anos do keynesianismo e do Estado de bem-estar social.
A demonstração dessa tese, realizada com maior detalhe no livro anterior (e retomada no capítulo um de "O Boom e a Bolha"), é apenas um ponto de partida.
Com pertinácia quase obsessiva, Brenner centra o foco sobre três questões. Quais as causas fundamentais do longo declínio? Por que motivos as reações a ele, tanto no plano das decisões empresariais quanto no das políticas econômicas dos países centrais e das decisões, acabaram por promover sua perpetuação? Em que medida o inegável dinamismo da economia norte-americana nos anos 90 indicaria a abertura de uma nova fase de crescimento harmônico da economia mundial?
Para Brenner, a harmonia entre as nações está longe de ser um resultado inevitável das transações econômicas. A combinação entre concorrência e interdependência entre os países pode produzir resultados coerentes e ganhos coletivos. Pôde fazê-lo, até certo ponto, nas primeiras décadas do pós-guerra, marcadas por forte crescimento e por um movimento de convergência por parte de um conjunto de países (minoritários, mas significativos) em direção aos padrões de produção e consumo característicos da sociedade norte-americana. Porém, a partir de certo momento, essa mesma convergência desdobrou-se em redundância: excesso de produção e excesso de capacidade produtiva gerando intensificação da concorrência, e esta gerando ainda mais redundância de capital (e trabalho).
A organização dos 11 capítulos de "O Boom e a Bolha" é basicamente cronológica. O mais importante fio é o que acompanha, desde 1973, a evolução da economia e da política econômica nos Estados Unidos. A descrição de eventos em outros países, assim como de negociações internacionais, embora mereça alguma atenção, está subordinada ao objetivo de elucidar a trajetória norte-americana. Afinal, como mostra o autor, no período, o desempenho econômico das demais regiões amolda-se, com graus de liberdade maiores ou menores (e jamais muito grandes), aos ziguezagues voluntariosos da maior economia (e do mais poderoso Estado) do mundo. Mesmo os norte-americanos, porém, esbarram uma e outra vez nos limites de sua hegemonia, dada a crescente interdependência entre as principais economias. Momentos de aguda (e deliberada) desvalorização do dólar permitem a retomada do investimento, do crescimento da produtividade e da competitividade norte-americana, ao mesmo tempo em que suscitam processos recessivos na Europa e no Japão. Com isso, terminam por impor a recuperação do dólar, para evitar prejuízos maiores à própria economia norte-americana.
Para Brenner, as políticas econômicas apenas têm promovido o que os franceses chamariam de "fuga para a frente": soluções parciais e provisórias que deixam intocados os problemas de fundo. Profundamente perturbadora é a insinuação de que uma depressão profunda, que destrua o capital redundante, seja condição necessária à retomada sustentada do crescimento.
Longe de apontar uma saída, o crescimento da economia norte-americana nos anos 90 pode ter apenas agravado a situação: sob o efeito da euforia produzida pela valorização das ações, deu-se um excesso de investimento e de consumo, legando excesso de endividamento das empresas e das famílias norte-americanas, que podem originar um segundo mergulho recessivo -dos Estados Unidos e da economia global.
Aviso: não se trata de leitura fácil. O objetivo não é seduzir, quanto menos entreter o leitor. Parágrafo após parágrafo, Brenner enuncia, esmiúça e articula o trajeto de um amplo conjunto de variáveis econômicas: preços, salários, produtividade, juros, taxas de câmbio são empregados para comparações entre o desempenho de setores da economia e entre economias. Infelizmente, as séries a partir das quais foram gerados os muitos gráficos não são apresentadas no livro.
Mas a principal dificuldade reside na flagrante ausência de revisão técnica da tradução. Não é a primeira vez, aliás, que a Record assim deprecia uma boa escolha editorial. Sem o apoio de revisão técnica, mesmo o mais esforçado tradutor corre o risco de produzir todo tipo de ruídos, de meras esquisitices a aberrações conceituais. Na falta de maior espaço para desfiar o rol de equívocos (alguns dos quais inviabilizam a compreensão de partes importantes do argumento), sugiro ao leitor que se socorra da edição original.


Antonio Carlos Macedo e Silva é professor no Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e autor de "Macroeconomia sem Equilíbrio" (Vozes).


O Boom e a Bolha - Os EUA na Economia Mundial
Robert Brenner
Tradução: Zaida Maldonado
Record (Tel. 0/xx/21/2585-2000)
414 págs., R$ 33,00



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