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Estudiosos interrogam o mito como gênero
Decifra-me e devoro-te
JACYNTHO L. BRANDÃO
Poucos temas foram tão valorizados em nosso século quanto o
mito. Não que antes tenha sido
menosprezado, pois o interesse
por ele se manifesta desde os primeiros poetas, filósofos e historiadores gregos, atravessa a Idade
Média, deságua no renascimento
e no iluminismo, numa gama variada de juízos. Entretanto é a partir do romantismo que se constitui a moderna ciência do mito
-o que significa que, como em
outras esferas, é aí que se encontra
o ponto de inflexão cujas possibilidades o século que (quase) passou explorou a fundo.
Recorde-se o título do livro de
Karl Müller, de 1825: "Prolegômenos para uma Mitologia Científica". Desde então, uma linha ininterrupta de estudiosos se ocupou
do assunto, incluindo nomes do
porte de Bachofen, Frazer, Freud,
Jung, Mircea Eliade, Dumézil, Lévi-Strauss, Vernant, Walter Burkert -além de nosso Eudoro de
Sousa.
Definiu-se o mito como símbolo, reflexo de acontecimentos históricos, um modo irracional de
pensar, ilustração do rito, traço da
mentalidade arcaica, expressão
do inconsciente (individual ou
coletivo) etc. Para dar conta desse
Proteu, nada menos que o conjunto das ciências do homem se
debateu com ele, desenvolvendo
metodologias como a estruturalista e a psicanalítica, além de toda
sorte de comparatismos. Se portanto a ciência dos mitos deve
muito a nosso século, deve ele
também muito a esse campo privilegiado onde se elaboraram e
testaram concepções e métodos
do pensamento contemporâneo.
Os dois livros em epígrafe incluem-se nessa tradição, lidando
com a questão que acredito ser
básica: afinal, que gênero de discurso é o mito, do ponto de vista
do que lhe é inerente e de sua destinação? Porque falar de mito implica considerar outros discursos
que se identificam como não míticos, ou, dito de outro modo: ele
só se torna problemático na relação com regimes de verdade diferentes, o que inclui a própria mitologia enquanto ciência.
O historiador e o mito
O fio condutor do livro de Francisco Murari é justamente a tensão entre mito e história. Trata-se
de coletânea de estudos, cujo título é inspirado por Cornford, que,
com seu "Thucydides Mythhistoricus", pretendia relativizar a distância tradicional entre mito e
historiografia, a exemplo do que
também fez em "Principium Sapientiae" com relação àquele e à
filosofia. Se ambas, história e filosofia, inauguram-se marcando
sua diferença com relação ao mito, nem por isso o aniquilam ou, o
que é mais relevante, abandonam-no elas próprias.
É por isso que os historiadores
sempre tiveram de enfrentá-lo.
Afinal, que tipo de documento
vêm a ser os mitos? Ministrando
ambas certo tipo de conhecimento do passado, o que faz com que a
história não se reduza à mitologia? Qual a esfera social e mental a
que se destinam uma e outra?
Como se vê, são questões de
fundo, as quais Francisco Murari
retoma de dois modos: de um lado, abordando cenas ou episódios
da epopéia e da tragédia; de outro,
analisando o estatuto da historiografia a partir das formulações de
Tucídides.
Sem dúvida, o que há de mais
interessante se encontra nesse segundo grupo de ensaios, sobretudo no longuíssimo capítulo intitulado "História e Epopéia": os
princípios da narrativa (130 páginas que poderiam bem ser um livro à parte). Nele se procede a estudo detalhado do prólogo de Tucídides, em que se examinam seis
"princípios constitutivos da narrativa" histórica, definidos como
axiológico, teleológico, onomasiológico, metodológico, arqueológico e etiológico.
Que não se espante quem lê
com termos tão cifrados: como
esclarece o autor, trata-se de abordar, respectivamente, as questões
da grandeza, do valor, do sujeito,
da verdade, do início e da causa,
tais como postuladas pela história, não tanto discernindo o que a
distingue da epopéia, mas antes
discutindo o discernimento que
Tucídides e os historiadores em
geral pretendem incutir no leitor.
Decerto não será surpresa que
num livro sobre a história se fale
tanto de poesia. Não só os historiadores, nas últimas décadas,
exorcizaram a desclassificação
tradicional da literatura como documento como também a teoria
da história encetou com esta um
amplo diálogo. Assim, o livro de
Francisco Murari representa um
balanço importante, leitura extremamente rica e instrutiva, em que
pese a tendência a um estilo rebuscado e, em alguns pontos, exageradamente difícil.
O que se pode concluir é que a
história não propriamente dialoga com o mito, mas com a poesia,
tendo um acesso a ele que é portanto mediatizado. Como a relação da história com o mito é complexa, assim também o é a deste
com a poesia, problema para o
qual se tem dedicado pouca atenção. Foi justo por isso que os poetas compuseram prólogos, explicitando para o ouvinte a situação,
o princípio e os fins da narrativa,
já que não eram meros memorialistas, na exata medida em que é a
musa, e não a memória, que os
inspira. A necessidade que o historiador tem de prólogos decorre
dessa necessidade do poeta, lidando cada qual com sua musa.
Pergunta-se então: podemos falar
de uma mitistória -ou antes deveríamos admitir um híbrido de
história e poesia?
(Re)contar os mitos
Não deixam de ser as possibilidades do mito enquanto narrativa
que Jean-Pierre Vernant explora
em sua obra mais recente. Depois
de dedicar inúmeros estudos à
mitologia grega, da perspectiva
do que chamou de psicologia histórica, fundando uma escola de
interpretação que fez sucesso e
angariou adeptos pelo mundo
afora, deixa-se levar agora, aos 85
anos, pela experiência da simples
narração.
Na origem, estão certas férias de
avô e neto: "Toda noite, quando
chegava a hora de Julien ir para a
cama, eu o ouvia me chamar de
seu quarto: Jipé, a história, a história! Eu ia me sentar perto dele e
lhe contava uma lenda grega. Encontrava-a facilmente no repertório de mitos que eu passava meu
tempo a analisar. Mas os transmitia de outra forma, à maneira de
um conto de fadas". Tanto que o
título inicialmente pensado para
o volume foi "Era uma Vez...".
Que se atingiu o objetivo não
deixa dúvidas o livro, uma excelente mitografia que percorre os
mais importantes conjuntos de
mitos gregos: no plano das origens, a cosmogonia, a teogonia e a
antropogonia; no plano heróico,
os ciclos troiano, tebano e argivo.
A par da instrução e do prazer
para uma ampla gama de leitores,
a obra guarda um interesse especial para aqueles que se habituaram a ver em Vernant um expert
(ou mesmo um guru) da ciência
do mito: a transformação do mitólogo em mitógrafo. É bem verdade que o primeiro se manifesta
muito (talvez mais que o devido)
nos capítulos iniciais. Entretanto,
na medida em que avança, assume o gosto de narrar, ganha desenvoltura e aprende mesmo a inserir comentários reflexivos sem
perturbar o relato: o capítulo dedicado a Ulisses é exemplar, ao
combinar ciência e simplicidade.
Poder-se-ia perguntar: mas é
possível contar mitos gregos hoje
-ou o que se pode é apenas destrinchá-los e interpretá-los a fim
de que se tornem compreensíveis
para nós que estamos separados
deles por milênios? Escrever mitos exige não só que se proceda a
escolhas no universo das diferentes versões, mas também -e sobretudo-um delicado processo
de apropriação pertinente para o
tempo em que se conta. Fernanda
Montenegro, por exemplo, diz
que jamais montou uma peça grega porque, não acreditando o público atual nos deuses, a trama (o
"mythos") perde seu sentido.
Kierkegaard percebeu a extensão
do problema, admitindo que
reescrever os dramas antigos exigiria dotá-los de uma forte carga
psicológica moderna.
Em Vernant a dosagem parece
exata: pinceladas psicológicas
(como a explicitação dos sentimentos de Telêmaco quando da
volta do pai), a par de bons achados que aproximam o leitor de
imagens distantes. Registre-se só
um deles: Prometeu, no universo
divino, exprime a "contestação
interna", agindo sempre "como
se liderasse no Olimpo uma espécie de movimento estudantil", um
Maio de 68. Mais que tudo, porém, o autor faz uma colheita inteligente, encadeando num relato
contínuo o que nas fontes antigas
se encontra mais ou menos disperso, como bom herdeiro de
Apolodoro.
O desafio da esfinge
Numa versão da disputa entre
Teseu e o Minotauro desenhada
pelo cartunista Laerte, o herói
avança pelo labirinto, descobre a
rota certa, atinge o centro e mata o
monstro. Contudo, acontece o
inesperado: o matador se torna
ele próprio a fera, no antro atulhado de esqueletos de outros vencedores. Como observa a propósito
Marcelo Pimenta Marques, é por
isso que o minotauro é eterno:
quem o vence nele se transforma.
Teseu não fora o primeiro decifrador, não seria o último.
Essa parece ser a principal lição
do século em que pontificaram os
mitos -belamente ilustrada
quando um de seus mais prestigiados decifradores decide enfim
apenas contá-los. Se não sabemos
para que servem, pelo menos sabemos que merecem ser narrados. Conforme Luciano, caso se
extirpassem os mitos da Grécia,
os guias de turismo morreriam de
fome, pois ninguém ia querer ouvir a verdade nem de graça. Existe
uma verdade do mito? Mais cruel
que a esfinge diante de Édipo, ele
responde, desafiando-nos: decifra-me que eu te devoro!
O Universo, os Deuses, os Homens
Jean-Pierre Vernant.
Tradução: Rosa Freire d'Aguiar
Companhia das Letras
(Tel. 0/xx/11/ 3846-0801)
210 págs., R$ 24,50
Mithistória
Francisco Murari Pires
Humanitas/FFLCH - USP
(Tel. 0/xx/11/ 3878-4589)
474 págs., R$ 20,00
Jacyntho Lins Brandão é professor de
língua e literatura gregas da Universidade Federal de Minas Gerais e autor de "O
Fosso de Babel" (Nova Fronteira).
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