São Paulo, sábado, 09 de setembro de 2000

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Estudiosos interrogam o mito como gênero
Decifra-me e devoro-te

JACYNTHO L. BRANDÃO

Poucos temas foram tão valorizados em nosso século quanto o mito. Não que antes tenha sido menosprezado, pois o interesse por ele se manifesta desde os primeiros poetas, filósofos e historiadores gregos, atravessa a Idade Média, deságua no renascimento e no iluminismo, numa gama variada de juízos. Entretanto é a partir do romantismo que se constitui a moderna ciência do mito -o que significa que, como em outras esferas, é aí que se encontra o ponto de inflexão cujas possibilidades o século que (quase) passou explorou a fundo.
Recorde-se o título do livro de Karl Müller, de 1825: "Prolegômenos para uma Mitologia Científica". Desde então, uma linha ininterrupta de estudiosos se ocupou do assunto, incluindo nomes do porte de Bachofen, Frazer, Freud, Jung, Mircea Eliade, Dumézil, Lévi-Strauss, Vernant, Walter Burkert -além de nosso Eudoro de Sousa.
Definiu-se o mito como símbolo, reflexo de acontecimentos históricos, um modo irracional de pensar, ilustração do rito, traço da mentalidade arcaica, expressão do inconsciente (individual ou coletivo) etc. Para dar conta desse Proteu, nada menos que o conjunto das ciências do homem se debateu com ele, desenvolvendo metodologias como a estruturalista e a psicanalítica, além de toda sorte de comparatismos. Se portanto a ciência dos mitos deve muito a nosso século, deve ele também muito a esse campo privilegiado onde se elaboraram e testaram concepções e métodos do pensamento contemporâneo.
Os dois livros em epígrafe incluem-se nessa tradição, lidando com a questão que acredito ser básica: afinal, que gênero de discurso é o mito, do ponto de vista do que lhe é inerente e de sua destinação? Porque falar de mito implica considerar outros discursos que se identificam como não míticos, ou, dito de outro modo: ele só se torna problemático na relação com regimes de verdade diferentes, o que inclui a própria mitologia enquanto ciência.

O historiador e o mito
O fio condutor do livro de Francisco Murari é justamente a tensão entre mito e história. Trata-se de coletânea de estudos, cujo título é inspirado por Cornford, que, com seu "Thucydides Mythhistoricus", pretendia relativizar a distância tradicional entre mito e historiografia, a exemplo do que também fez em "Principium Sapientiae" com relação àquele e à filosofia. Se ambas, história e filosofia, inauguram-se marcando sua diferença com relação ao mito, nem por isso o aniquilam ou, o que é mais relevante, abandonam-no elas próprias.
É por isso que os historiadores sempre tiveram de enfrentá-lo. Afinal, que tipo de documento vêm a ser os mitos? Ministrando ambas certo tipo de conhecimento do passado, o que faz com que a história não se reduza à mitologia? Qual a esfera social e mental a que se destinam uma e outra?
Como se vê, são questões de fundo, as quais Francisco Murari retoma de dois modos: de um lado, abordando cenas ou episódios da epopéia e da tragédia; de outro, analisando o estatuto da historiografia a partir das formulações de Tucídides.
Sem dúvida, o que há de mais interessante se encontra nesse segundo grupo de ensaios, sobretudo no longuíssimo capítulo intitulado "História e Epopéia": os princípios da narrativa (130 páginas que poderiam bem ser um livro à parte). Nele se procede a estudo detalhado do prólogo de Tucídides, em que se examinam seis "princípios constitutivos da narrativa" histórica, definidos como axiológico, teleológico, onomasiológico, metodológico, arqueológico e etiológico.
Que não se espante quem lê com termos tão cifrados: como esclarece o autor, trata-se de abordar, respectivamente, as questões da grandeza, do valor, do sujeito, da verdade, do início e da causa, tais como postuladas pela história, não tanto discernindo o que a distingue da epopéia, mas antes discutindo o discernimento que Tucídides e os historiadores em geral pretendem incutir no leitor.
Decerto não será surpresa que num livro sobre a história se fale tanto de poesia. Não só os historiadores, nas últimas décadas, exorcizaram a desclassificação tradicional da literatura como documento como também a teoria da história encetou com esta um amplo diálogo. Assim, o livro de Francisco Murari representa um balanço importante, leitura extremamente rica e instrutiva, em que pese a tendência a um estilo rebuscado e, em alguns pontos, exageradamente difícil.
O que se pode concluir é que a história não propriamente dialoga com o mito, mas com a poesia, tendo um acesso a ele que é portanto mediatizado. Como a relação da história com o mito é complexa, assim também o é a deste com a poesia, problema para o qual se tem dedicado pouca atenção. Foi justo por isso que os poetas compuseram prólogos, explicitando para o ouvinte a situação, o princípio e os fins da narrativa, já que não eram meros memorialistas, na exata medida em que é a musa, e não a memória, que os inspira. A necessidade que o historiador tem de prólogos decorre dessa necessidade do poeta, lidando cada qual com sua musa. Pergunta-se então: podemos falar de uma mitistória -ou antes deveríamos admitir um híbrido de história e poesia?

(Re)contar os mitos
Não deixam de ser as possibilidades do mito enquanto narrativa que Jean-Pierre Vernant explora em sua obra mais recente. Depois de dedicar inúmeros estudos à mitologia grega, da perspectiva do que chamou de psicologia histórica, fundando uma escola de interpretação que fez sucesso e angariou adeptos pelo mundo afora, deixa-se levar agora, aos 85 anos, pela experiência da simples narração.
Na origem, estão certas férias de avô e neto: "Toda noite, quando chegava a hora de Julien ir para a cama, eu o ouvia me chamar de seu quarto: Jipé, a história, a história! Eu ia me sentar perto dele e lhe contava uma lenda grega. Encontrava-a facilmente no repertório de mitos que eu passava meu tempo a analisar. Mas os transmitia de outra forma, à maneira de um conto de fadas". Tanto que o título inicialmente pensado para o volume foi "Era uma Vez...".
Que se atingiu o objetivo não deixa dúvidas o livro, uma excelente mitografia que percorre os mais importantes conjuntos de mitos gregos: no plano das origens, a cosmogonia, a teogonia e a antropogonia; no plano heróico, os ciclos troiano, tebano e argivo.
A par da instrução e do prazer para uma ampla gama de leitores, a obra guarda um interesse especial para aqueles que se habituaram a ver em Vernant um expert (ou mesmo um guru) da ciência do mito: a transformação do mitólogo em mitógrafo. É bem verdade que o primeiro se manifesta muito (talvez mais que o devido) nos capítulos iniciais. Entretanto, na medida em que avança, assume o gosto de narrar, ganha desenvoltura e aprende mesmo a inserir comentários reflexivos sem perturbar o relato: o capítulo dedicado a Ulisses é exemplar, ao combinar ciência e simplicidade.
Poder-se-ia perguntar: mas é possível contar mitos gregos hoje -ou o que se pode é apenas destrinchá-los e interpretá-los a fim de que se tornem compreensíveis para nós que estamos separados deles por milênios? Escrever mitos exige não só que se proceda a escolhas no universo das diferentes versões, mas também -e sobretudo-um delicado processo de apropriação pertinente para o tempo em que se conta. Fernanda Montenegro, por exemplo, diz que jamais montou uma peça grega porque, não acreditando o público atual nos deuses, a trama (o "mythos") perde seu sentido. Kierkegaard percebeu a extensão do problema, admitindo que reescrever os dramas antigos exigiria dotá-los de uma forte carga psicológica moderna.
Em Vernant a dosagem parece exata: pinceladas psicológicas (como a explicitação dos sentimentos de Telêmaco quando da volta do pai), a par de bons achados que aproximam o leitor de imagens distantes. Registre-se só um deles: Prometeu, no universo divino, exprime a "contestação interna", agindo sempre "como se liderasse no Olimpo uma espécie de movimento estudantil", um Maio de 68. Mais que tudo, porém, o autor faz uma colheita inteligente, encadeando num relato contínuo o que nas fontes antigas se encontra mais ou menos disperso, como bom herdeiro de Apolodoro.

O desafio da esfinge
Numa versão da disputa entre Teseu e o Minotauro desenhada pelo cartunista Laerte, o herói avança pelo labirinto, descobre a rota certa, atinge o centro e mata o monstro. Contudo, acontece o inesperado: o matador se torna ele próprio a fera, no antro atulhado de esqueletos de outros vencedores. Como observa a propósito Marcelo Pimenta Marques, é por isso que o minotauro é eterno: quem o vence nele se transforma. Teseu não fora o primeiro decifrador, não seria o último.
Essa parece ser a principal lição do século em que pontificaram os mitos -belamente ilustrada quando um de seus mais prestigiados decifradores decide enfim apenas contá-los. Se não sabemos para que servem, pelo menos sabemos que merecem ser narrados. Conforme Luciano, caso se extirpassem os mitos da Grécia, os guias de turismo morreriam de fome, pois ninguém ia querer ouvir a verdade nem de graça. Existe uma verdade do mito? Mais cruel que a esfinge diante de Édipo, ele responde, desafiando-nos: decifra-me que eu te devoro!



O Universo, os Deuses, os Homens
Jean-Pierre Vernant.
Tradução: Rosa Freire d'Aguiar
Companhia das Letras
(Tel. 0/xx/11/ 3846-0801)
210 págs., R$ 24,50

Mithistória
Francisco Murari Pires
Humanitas/FFLCH - USP
(Tel. 0/xx/11/ 3878-4589)
474 págs., R$ 20,00



Jacyntho Lins Brandão é professor de língua e literatura gregas da Universidade Federal de Minas Gerais e autor de "O Fosso de Babel" (Nova Fronteira).


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