São Paulo, sábado, 09 de setembro de 2000

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O realismo de Petrônio

CLAUDIOMAR DOS REIS GONÇALVES

A publicação do livro de Fábio Faversani, professor de história antiga da Universidade Federal de Ouro Preto, representa contribuição a ser destacada no contexto da recente produção sobre a Antiguidade. Seu mérito é duplo: antes de mais nada, o trabalho possibilitou a abertura de um diálogo entre as análises derivadas do âmbito da literatura clássica e as da historiografia sobre a Antiguidade; em segundo lugar, reabilitou o "Satyricon" como evidência histórica para novas incursões.
00O que chama a atenção no livro é a pesquisa minuciosa da fonte e da bibliografia e o cuidado em estabelecer um itinerário analítico que o faz percorrer as grandes polêmicas que cercam o "Satyricon": datação e autoria, estilo e intenções petronianos, entre outros temas. No caso particular da autoria, Faversani se afasta da perspectiva tacitiana narrada nos "Anais" -segundo a qual Petrônio teria escrito a obra no decorrer de seu suicídio: com as veias abertas-, mas, por meio da crítica interna, mantém sua datação no século 1º d.C.
00Quanto ao gênero literário, aproxima-se do ponto de vista recentemente formulado de Costas Panayotakis, argumentando, entretanto, que a obra não seria um longo mimo. A construção petroniana seria algo inédito: "Fruto da somatória de recursos de diversos gêneros preexistentes", elaborada a partir de três elementos: o realismo petroniano, a "redutio ad absurdum" e a penetração psicológica.
00O itinerário proposto atinge seu ponto máximo no capítulo "Relações de Poder e Análise da Pobreza", no qual o autor perfila uma série de críticas a autores como Karl Marx, Max Weber, Paul Veyne, Moses Finley, Ramsey MacMullen, A. Wallace-Hadrill, Géza Alföldy, Jean Andreau, Pierre Vidal-Naquet, Jean-Pierre Vernant, M. Rostovtzeff e mesmo C. Whittaker, entre outros, aproximando-se das perspectivas analíticas propostas em diversos trabalhos por Peter Garnsey e Richard Saller. Sem dúvida, o grande debate travado com a bibliografia permite ao autor elaborar ardorosas críticas, seja às posturas diante do objeto que propõe estudar -os livres pobres-, seja às duas perspectivas conceituais que elege como foco de atenção: os conceitos de "classe" e de "estamento".
00Procurando demonstrar os limites conceituais com os quais se deparam as teorias marxista e weberiana, o autor propõe as "relações diretas de poder" como categoria que irá definir a pobreza social. Nesse sentido, as relações diretas de poder seriam "interações estabelecidas entre os agentes, pressupondo alguns elementos, dentre os quais destacamos: uma pretensão a longa duração; a ausência de uma regulamentação legal ou coercitiva; a ocorrência de uma troca regular de bens, serviços ou demonstração de distinção como elementos concretizadores da relação; flexibilidade, no sentido de que se podem alterar pela promoção social qualitativamente significativa de um dos agentes; a existência de uma estimativa recíproca da posição social de um agente pelo outro, que será assumida como diferente, ou igual, segundo o tipo determinado de relação de poder estabelecida".
00Analisando as pesquisas sobre a pobreza e escravidão no Brasil -Jacob Gorender, Maria Sylvia C. Franco, Alice P. Canabrava e outros-, Faversani chega à conclusão que as imagens construídas sobre os pobres remetem muito mais a "caminhos a não seguir do que a pistas a percorrer".
00Portanto a noção de pobre seria "antes de tudo, relativa. Alguém pode ser pobre do ponto de vista de um agente social, mas não de outro, colocado em ponto diverso da escala social. A pobreza é, assim, uma noção complexa que se relaciona com as políticas de controle social, que criam uma taxonomia cuja a historicidade é riquíssima".
00Na parte final de seu livro, "Relações de Poder no "Satyricon'", o autor procurará demonstrar como o conceito de "relações diretas de poder" responde melhor à explicação da pobreza. Subdividindo o "Satyricon" em quatro episódios -"Episódio de Quartilla"; "Viagem a Crotona"; "Farsa de Crotona" e "Cena Trimalchionis"-, Faversani analisa as relações de poder entre os principais personagens da obra quanto a seus status social, econômico e jurídico. Exemplar da aplicação do conceito de relações diretas de poder é a análise feita sobre Quartilla: "Enquanto o dinheiro de Ascyltos e Encolpius ficava escondido, a riqueza de Quartilla era superexposta; se Ascyltos e Encolpius fugiam de relações sociais estáveis e procuravam se manter ao máximo incógnitos, Quartilla investia nelas, quer comprando escravos, quer conquistando clientes, quer assumindo posições de poder em seu universo social, como a de sacerdotisa. Desse modo, o que faz Quartilla uma mulher rica, não é sua riqueza tão-somente, mas principalmente sua inserção, no universo das relações sociais de poder, em uma posição de comando". Contudo o personagem Trimalchio é ainda alvo de maior atenção.
00Ponto central de seu trabalho, Faversani lembra que muitos historiadores reduzem Trimalchio, considerando-o unicamente por suas relações econômicas ou jurídicas, limitando o conhecimento sobre a sociedade romana. O liberto Trimalchio demonstraria que fazia amplo uso de suas relações de poder com seus escravos, sua esposa e seus comensais, muito embora num "universo de relações de poder mais amplo, mostrar-se-ia pobre".
00Não tenho dúvidas quanto ao cuidado com que Faversani analisa as relações diretas de poder e as estratégias de afirmação social, procurando demonstrar as fragilidades de outras taxonomias. Entretanto podemos perceber que novos conceitos implicam a resolução de novos problemas metodológicos, como, por exemplo, o da aplicação de tais conceitos sobre personagens literários fictícios: o caso de Trimalchio, por exemplo. Discordâncias à parte, o trabalho de Fábio Faversani ficará como aquele que inspirou uma nova fase de estudos propriamente históricos sobre a obra petroniana no Brasil e pode contribuir, em muito, nas várias discussões já estabelecidas pela tradição dos estudos clássicos internacionais.



A Pobreza no "Satyricon" de Petrônio
Fábio Faversani
Editora da Universidade Federal de Ouro Preto
(Tel. 0/xx/31/559-1493)
169 págs., R$ 12,00



Claudiomar dos Reis Gonçalves é professor de história antiga na Universidade Estadual de Londrina.



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