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O realismo de Petrônio
CLAUDIOMAR DOS REIS GONÇALVES
A publicação do livro de Fábio Faversani, professor de
história antiga da Universidade Federal de Ouro Preto, representa contribuição a ser destacada no contexto da recente produção sobre a Antiguidade. Seu mérito é duplo:
antes de mais nada, o trabalho possibilitou a abertura de
um diálogo entre as análises derivadas do âmbito da literatura clássica e as da historiografia sobre a Antiguidade; em
segundo lugar, reabilitou o "Satyricon" como evidência
histórica para novas incursões.
00O que chama a atenção no livro é a pesquisa minuciosa
da fonte e da bibliografia e o cuidado em estabelecer um itinerário analítico que o faz percorrer as grandes polêmicas
que cercam o "Satyricon": datação e autoria, estilo e intenções petronianos, entre outros temas. No caso particular da
autoria, Faversani se afasta da perspectiva tacitiana narrada nos "Anais" -segundo a qual Petrônio teria escrito a
obra no decorrer de seu suicídio: com as veias abertas-,
mas, por meio da crítica interna, mantém sua datação no
século 1º d.C.
00Quanto ao gênero literário, aproxima-se do ponto de
vista recentemente formulado de Costas Panayotakis, argumentando, entretanto, que a obra não seria um longo
mimo. A construção petroniana seria algo inédito: "Fruto
da somatória de recursos de diversos gêneros preexistentes", elaborada a partir de três elementos: o realismo petroniano, a "redutio ad absurdum" e a penetração psicológica.
00O itinerário proposto atinge seu ponto máximo no capítulo "Relações de Poder e Análise da Pobreza", no qual o
autor perfila uma série de críticas a autores como Karl
Marx, Max Weber, Paul Veyne, Moses Finley, Ramsey
MacMullen, A. Wallace-Hadrill, Géza Alföldy, Jean Andreau, Pierre Vidal-Naquet, Jean-Pierre Vernant, M. Rostovtzeff e mesmo C. Whittaker, entre outros, aproximando-se das perspectivas analíticas propostas em diversos
trabalhos por Peter Garnsey e Richard Saller. Sem dúvida, o
grande debate travado com a bibliografia permite ao autor
elaborar ardorosas críticas, seja às posturas diante do objeto que propõe estudar -os livres pobres-, seja às duas
perspectivas conceituais que elege como foco de atenção:
os conceitos de "classe" e de "estamento".
00Procurando demonstrar os limites conceituais com os
quais se deparam as teorias marxista e weberiana, o autor
propõe as "relações diretas de poder" como categoria que
irá definir a pobreza social. Nesse sentido, as relações diretas de poder seriam "interações estabelecidas entre os
agentes, pressupondo alguns elementos, dentre os quais
destacamos: uma pretensão a longa duração; a ausência de
uma regulamentação legal ou coercitiva; a ocorrência de
uma troca regular de bens, serviços ou demonstração de
distinção como elementos concretizadores da relação; flexibilidade, no sentido de que se podem alterar pela promoção social qualitativamente significativa de um dos agentes;
a existência de uma estimativa recíproca da posição social
de um agente pelo outro, que será assumida como diferente, ou igual, segundo o tipo determinado de relação de poder estabelecida".
00Analisando as pesquisas sobre a pobreza e escravidão no
Brasil -Jacob Gorender, Maria Sylvia C. Franco, Alice P.
Canabrava e outros-, Faversani chega à conclusão que as
imagens construídas sobre os pobres remetem muito mais
a "caminhos a não seguir do que a pistas a percorrer".
00Portanto a noção de pobre seria "antes de tudo, relativa.
Alguém pode ser pobre do ponto de vista de um agente social, mas não de outro, colocado em ponto diverso da escala social. A pobreza é, assim, uma noção complexa que se
relaciona com as políticas de controle social, que criam
uma taxonomia cuja a historicidade é riquíssima".
00Na parte final de seu livro, "Relações de Poder no "Satyricon'", o autor procurará demonstrar como o conceito de
"relações diretas de poder" responde melhor à explicação
da pobreza. Subdividindo o "Satyricon" em quatro episódios -"Episódio de Quartilla"; "Viagem a Crotona"; "Farsa de Crotona" e "Cena Trimalchionis"-, Faversani analisa as relações de poder entre os principais personagens da
obra quanto a seus status social, econômico e jurídico.
Exemplar da aplicação do conceito de relações diretas de
poder é a análise feita sobre Quartilla: "Enquanto o dinheiro de Ascyltos e Encolpius ficava escondido, a riqueza de
Quartilla era superexposta; se Ascyltos e Encolpius fugiam
de relações sociais estáveis e procuravam se manter ao máximo incógnitos, Quartilla investia nelas, quer comprando
escravos, quer conquistando clientes, quer assumindo posições de poder em seu universo social, como a de sacerdotisa. Desse modo, o que faz Quartilla uma mulher rica, não
é sua riqueza tão-somente, mas principalmente sua inserção, no universo das relações sociais de poder, em uma posição de comando". Contudo o personagem Trimalchio é
ainda alvo de maior atenção.
00Ponto central de seu trabalho, Faversani lembra que
muitos historiadores reduzem Trimalchio, considerando-o unicamente por suas relações econômicas ou jurídicas, limitando o conhecimento sobre a sociedade romana. O liberto Trimalchio demonstraria que fazia amplo uso de
suas relações de poder com seus escravos, sua esposa e seus
comensais, muito embora num "universo de relações de
poder mais amplo, mostrar-se-ia pobre".
00Não tenho dúvidas quanto ao cuidado com que Faversani analisa as relações diretas de poder e as estratégias de
afirmação social, procurando demonstrar as fragilidades
de outras taxonomias. Entretanto podemos perceber que
novos conceitos implicam a resolução de novos problemas
metodológicos, como, por exemplo, o da aplicação de tais
conceitos sobre personagens literários fictícios: o caso de
Trimalchio, por exemplo. Discordâncias à parte, o trabalho
de Fábio Faversani ficará como aquele que inspirou uma
nova fase de estudos propriamente históricos sobre a obra
petroniana no Brasil e pode contribuir, em muito, nas várias discussões já estabelecidas pela tradição dos estudos
clássicos internacionais.
A Pobreza no "Satyricon" de Petrônio
Fábio Faversani
Editora da Universidade Federal de Ouro Preto
(Tel. 0/xx/31/559-1493)
169 págs., R$ 12,00
Claudiomar dos Reis Gonçalves é professor de história antiga na Universidade Estadual de Londrina.
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