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Obras destacam diálogos com filósofos anteriores
Os aliados de Nietzsche
VIRGINIA DE A. FIGUEIREDO
Dentre os lançamentos marcando os
cem anos da morte de Nietzsche, devem-se destacar os dois livros de Scarlett Marton: o primeiro é uma nova edição de sua
tese de doutorado, publicada em 1990
(Brasiliense); o segundo faz parte da coleção "Sendas e Veredas", dedicada a
Nietzsche e criada pelo Grupo de Estudos
Nietzsche (GEN).
Se a leitura de "Das Forças Cósmicas"
requer certo fôlego para acompanhar um
estudo sistemático sobre as principais
noções da filosofia nietzschiana, a do segundo, composto por 11 ensaios, redigidos durante 20 anos, incita-nos a um outro tipo de abordagem, menos contínua,
mais ao sabor do próprio filósofo, que
passou a declarar sua preferência pelo estilo aforismático, em detrimento da forma do tratado.
No livro-tese, é de se ressaltar um precioso confronto com o criticismo kantiano. A importância desse diálogo entre
Kant e Nietzsche se evidencia num fato
imediatamente verificável: dos seis capítulos, dois são inteiramente dedicados a
ele. Tentando uma explicitação do adjetivo mais enigmático e talvez inédito que
qualifica as "forças" no título da obra,
chamo a atenção aqui principalmente para o momento daquele diálogo com a dialética transcendental.
Nietzsche e Kant
Na introdução, a autora anuncia que
acompanhará os ataques de Nietzsche à
teologia, à psicologia e à cosmologia racionais. No quinto capítulo, conclui que,
em se tratando das duas primeiras, os
textos de Nietzsche (mais do que herdeiro, quase aliado de Kant) apareceriam como a "contrapartida da "Dialética Transcendental", procurando refazer a crítica
kantiana à metafísica dogmática porque
lhe teria faltado radicalidade". Quanto à
cosmologia, embora continue, a meu ver,
herdeiro de Kant, no sentido mais profundo da própria crítica à metafísica,
Nietzsche acaba por incluí-lo dentro dos
limites daquilo que sua crítica tanto tentara combater.
Esse é o resultado inevitável da redução
que sofre nas mãos de Nietzsche a oposição entre fenômeno e coisa em si, identificada àquela tradicional entre sensível e
inteligível e, além disso, da ignorância
quanto à diferença kantiana entre conhecer e pensar, como nos lembra a autora.
Ora, a questão ainda é das fronteiras. A
hora de definir o mundo torna-se então
decisiva: para Nietzsche, Kant ainda habita o país da metafísica. Talvez o que
Heidegger tenha feito depois com o próprio Nietzsche nada mais seja do que a repetição dessa mesma operação, e assim
por diante... Até quando a filosofia será a
história desses parricídios que passam de
pai para filho?
Mas há um outro lado, precioso, desse
diálogo, que trai, no confronto, o encontro, já que ele tem a virtude das intuições
fortes, que consistem em ir contra a superfície ou consciência de um pensamento, contra o que Lacoue-Labarthe chamou de "as vociferações de Nietzsche",
para alcançar essa outra dimensão de
uma afinidade recusada, e às vezes até insuspeita, que é a do impensado. Esse encontro é, mais uma vez e de certa maneira, antecipado por Heidegger quando,
em seu seminário sobre "A Vontade de
Potência Enquanto Arte", mostrou a relação existente entre a força criadora de
Nietzsche e a imaginação transcendental
de Kant.
Contra todos?
O diálogo de Nietzsche com os outros
pensadores, se não é a síntese da atitude
da autora diante da obra do filósofo, poderia, pelo menos, constituir uma chave
de leitura dos ensaios contidos no outro
livro, "Extravagâncias".
Confrontando-se talvez com uma idéia
de Roberto Machado em "Deleuze e a Filosofia" (Graal, 1990) -a de que, para
Nietzsche, "pensar afirmativamente
acarreta necessariamente pensar contra
todos"-, Scarlett Marton põe o filósofo
para conversar com aqueles que o antecederam, não apenas Kant, mas também
Descartes, Heráclito e Hegel; e, além disso, reexamina, quase sempre criticamente, o diálogo de Nietzsche com uma "aliada" posterior, a nossa contemporaneidade, representada principalmente pelas
leituras empreendidas por Heidegger e
Foucault. Num dos ensaios, ela propõe
que o trabalho de Wolfgang Müller-Lauter constitui uma alternativa àquelas interpretações "ainda tão em voga entre
nós".
No esforço de resumir o outro fundamento da tese contida em "Das Forças
Cósmicas", que é, a meu ver, a teoria das
forças, socorro-me da nota 33 ao primeiro capítulo. Ela me interessa por dois motivos: o metodológico e o objetivo. Vamos ao primeiro: a respeito de Deleuze,
Marton ali explicita seu procedimento,
que, profundamente erudito, consiste em
reconhecer o lugar de uma determinada
interpretação, perspectiva e até influência, logo seguidas de uma ressalva, uma
discordância, a singularizar o seu ponto
de vista.
Já em "Extravagâncias", aquele modo
de apresentação sofre um refinamento
que pretende radicalizar o estilo aforismático, definido como "a possibilidade
de perseguir uma idéia partindo de diferentes perspectivas", contrário ao estilo,
digamos, "da idéia fixa" que, ao "perseguir uma idéia, abandona várias outras
pelo caminho". Se a fidelidade a esse
perspectivismo está, em Marton como
em Nietzsche, "a serviço do experimentalismo" e, portanto, fiel ao que a própria
autora descreve como a "opção filosófica" de Nietzsche, o resultado para o leitor, a meu ver, é ainda de difícil apreciação estética, pois o estilo acaba por assumir quase a forma de um recenseamento
erudito ou mesmo de uma música serial
que, sabemos, é tão rara e efetivamente
ouvida.
Extraio, um pouco ao acaso, um desses
parágrafos, do ensaio sobre a doutrina do
eterno retorno: "Houve quem a encarasse como a maneira pela qual os seres humanos lidam com o passado. (...) Houve
quem acreditasse que ela consistia num
teste psicoespiritual para avaliar nossas
atitudes e sentimentos em relação à nossa
própria vida. (...) Houve, também, quem
a aproximasse do "conhece-te a ti mesmo'; o demônio que, impertinente, se põe
a falar do eterno retorno lembraria o "daimon" socrático. (...) Houve ainda quem a
julgasse a expressão de uma orientação
fundamental face à vida. (...) Houve, enfim, quem a concebesse como a representação de uma posição particular diante da
vida".
Espírito iconoclasta
Talvez seja um dos propósitos deliberados dessa opção de escrita: enfatizar o aspecto ruminante e até enfadonho que
provocam as batidas do martelo e com isso afastar as apropriações ligeiras de um
pensamento que, pelo seu espírito iconoclasta, de modo paradoxal, acabou sendo
idolatrado -no Brasil, especialmente
pela juventude.
O segundo motivo que me levou a destacar aquela nota diz respeito a seu conteúdo objetivo. Nela, Marton reconhece
que tinha sido Deleuze o primeiro filósofo a apontar a relevância da teoria das forças. Se à interpretação de Heidegger, como ainda reconhece, e mais do que isso,
com a qual concorda a autora, tão incisiva ao apresentar "a íntima ligação entre o
eterno retorno e a vontade de potência",
escapara justamente a teoria das forças,
provocando assim o seu resultado equivocado, que foi o de considerar o pensamento nietzschiano "enredado nas teias
da metafísica"; na interpretação de Marton, como se explicita no próprio título
de seu livro, aquele mesmo privilégio que
Deleuze concedera à teoria das forças é
mantido, apesar das inevitáveis ressalvas
e restrições críticas que, no caso dele, referem-se à ausência de qualquer periodização, assim como ao peso excessivo que
ele conferiu "às idéias de força ativa e reativa".
A manutenção daquele privilégio da
teoria das forças pode ser observada ainda no texto, "O Eterno Retorno do Mesmo: Tese Cosmológica ou Imperativo
Ético?", a meu ver, o mais importante de
"Extravagâncias". Tanto quanto entendo, a resposta que é dada no ensaio tende
mais para a tese cosmológica do que para
o imperativo ético, e Marton apresenta
então mais um desenvolvimento ou expansão da teoria das forças. Se, no livro-tese, era tecida a relação entre as forças e a
vontade de potência, agora, no ensaio,
importa pensar a doutrina do eterno retorno segundo a perspectiva daquela
mesma teoria das forças, enfatizando
mais uma vez e aprofundando o seu sentido cosmológico.
Por último, cabe constatar com tristeza
a ausência de um diálogo com a "Crítica
da Faculdade do Juízo", de Kant. Esse
diálogo não está no livro de Marton, como talvez não esteja em lugar algum na
obra de Nietzsche. E talvez essa falta seja
responsável pelos desdobramentos finais
da filosofia nietzschiana: não só de sua
aproximação do positivismo, no segundo
período, que vai de 1876 a 1882, chamado
de "positivismo cético"; como também,
no último período, de 1882 a 1888, momento consistente da construção propriamente dita da doutrina do eterno retorno e da vontade de potência, quando,
nos diz o último capítulo do livro-tese,
"Nietzsche não retoma as posições que
defendia em seus primeiros escritos",
que criticavam o conhecimento científico
e atribuíam um papel privilegiado à arte.
É como se Nietzsche tivesse legado à posteridade, ainda que na forma de um impensado, mais essa possibilidade de metamorfose das forças.
Nietzsche - Das Forças Cósmicas aos Valores Humanos
Scarlett Marton
Editora UFMG (Tel. 0/xx/31/499-4652)
296 págs., R$ 29,00.
Extravagâncias - Ensaios Sobre a Filosofia de Nietzsche
Scarlett Marton
Discurso Editorial (Tel. 0/xx/11/814-5383)
223 págs., R$ 20,00.
Virginia de Araujo Figueiredo é professora de
estética no departamento de filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais.
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