São Paulo, sábado, 09 de setembro de 2000

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Obras destacam diálogos com filósofos anteriores
Os aliados de Nietzsche

VIRGINIA DE A. FIGUEIREDO

Dentre os lançamentos marcando os cem anos da morte de Nietzsche, devem-se destacar os dois livros de Scarlett Marton: o primeiro é uma nova edição de sua tese de doutorado, publicada em 1990 (Brasiliense); o segundo faz parte da coleção "Sendas e Veredas", dedicada a Nietzsche e criada pelo Grupo de Estudos Nietzsche (GEN).
Se a leitura de "Das Forças Cósmicas" requer certo fôlego para acompanhar um estudo sistemático sobre as principais noções da filosofia nietzschiana, a do segundo, composto por 11 ensaios, redigidos durante 20 anos, incita-nos a um outro tipo de abordagem, menos contínua, mais ao sabor do próprio filósofo, que passou a declarar sua preferência pelo estilo aforismático, em detrimento da forma do tratado.
No livro-tese, é de se ressaltar um precioso confronto com o criticismo kantiano. A importância desse diálogo entre Kant e Nietzsche se evidencia num fato imediatamente verificável: dos seis capítulos, dois são inteiramente dedicados a ele. Tentando uma explicitação do adjetivo mais enigmático e talvez inédito que qualifica as "forças" no título da obra, chamo a atenção aqui principalmente para o momento daquele diálogo com a dialética transcendental.

Nietzsche e Kant
Na introdução, a autora anuncia que acompanhará os ataques de Nietzsche à teologia, à psicologia e à cosmologia racionais. No quinto capítulo, conclui que, em se tratando das duas primeiras, os textos de Nietzsche (mais do que herdeiro, quase aliado de Kant) apareceriam como a "contrapartida da "Dialética Transcendental", procurando refazer a crítica kantiana à metafísica dogmática porque lhe teria faltado radicalidade". Quanto à cosmologia, embora continue, a meu ver, herdeiro de Kant, no sentido mais profundo da própria crítica à metafísica, Nietzsche acaba por incluí-lo dentro dos limites daquilo que sua crítica tanto tentara combater.
Esse é o resultado inevitável da redução que sofre nas mãos de Nietzsche a oposição entre fenômeno e coisa em si, identificada àquela tradicional entre sensível e inteligível e, além disso, da ignorância quanto à diferença kantiana entre conhecer e pensar, como nos lembra a autora. Ora, a questão ainda é das fronteiras. A hora de definir o mundo torna-se então decisiva: para Nietzsche, Kant ainda habita o país da metafísica. Talvez o que Heidegger tenha feito depois com o próprio Nietzsche nada mais seja do que a repetição dessa mesma operação, e assim por diante... Até quando a filosofia será a história desses parricídios que passam de pai para filho?
Mas há um outro lado, precioso, desse diálogo, que trai, no confronto, o encontro, já que ele tem a virtude das intuições fortes, que consistem em ir contra a superfície ou consciência de um pensamento, contra o que Lacoue-Labarthe chamou de "as vociferações de Nietzsche", para alcançar essa outra dimensão de uma afinidade recusada, e às vezes até insuspeita, que é a do impensado. Esse encontro é, mais uma vez e de certa maneira, antecipado por Heidegger quando, em seu seminário sobre "A Vontade de Potência Enquanto Arte", mostrou a relação existente entre a força criadora de Nietzsche e a imaginação transcendental de Kant.

Contra todos?
O diálogo de Nietzsche com os outros pensadores, se não é a síntese da atitude da autora diante da obra do filósofo, poderia, pelo menos, constituir uma chave de leitura dos ensaios contidos no outro livro, "Extravagâncias".
Confrontando-se talvez com uma idéia de Roberto Machado em "Deleuze e a Filosofia" (Graal, 1990) -a de que, para Nietzsche, "pensar afirmativamente acarreta necessariamente pensar contra todos"-, Scarlett Marton põe o filósofo para conversar com aqueles que o antecederam, não apenas Kant, mas também Descartes, Heráclito e Hegel; e, além disso, reexamina, quase sempre criticamente, o diálogo de Nietzsche com uma "aliada" posterior, a nossa contemporaneidade, representada principalmente pelas leituras empreendidas por Heidegger e Foucault. Num dos ensaios, ela propõe que o trabalho de Wolfgang Müller-Lauter constitui uma alternativa àquelas interpretações "ainda tão em voga entre nós".
No esforço de resumir o outro fundamento da tese contida em "Das Forças Cósmicas", que é, a meu ver, a teoria das forças, socorro-me da nota 33 ao primeiro capítulo. Ela me interessa por dois motivos: o metodológico e o objetivo. Vamos ao primeiro: a respeito de Deleuze, Marton ali explicita seu procedimento, que, profundamente erudito, consiste em reconhecer o lugar de uma determinada interpretação, perspectiva e até influência, logo seguidas de uma ressalva, uma discordância, a singularizar o seu ponto de vista.
Já em "Extravagâncias", aquele modo de apresentação sofre um refinamento que pretende radicalizar o estilo aforismático, definido como "a possibilidade de perseguir uma idéia partindo de diferentes perspectivas", contrário ao estilo, digamos, "da idéia fixa" que, ao "perseguir uma idéia, abandona várias outras pelo caminho". Se a fidelidade a esse perspectivismo está, em Marton como em Nietzsche, "a serviço do experimentalismo" e, portanto, fiel ao que a própria autora descreve como a "opção filosófica" de Nietzsche, o resultado para o leitor, a meu ver, é ainda de difícil apreciação estética, pois o estilo acaba por assumir quase a forma de um recenseamento erudito ou mesmo de uma música serial que, sabemos, é tão rara e efetivamente ouvida.
Extraio, um pouco ao acaso, um desses parágrafos, do ensaio sobre a doutrina do eterno retorno: "Houve quem a encarasse como a maneira pela qual os seres humanos lidam com o passado. (...) Houve quem acreditasse que ela consistia num teste psicoespiritual para avaliar nossas atitudes e sentimentos em relação à nossa própria vida. (...) Houve, também, quem a aproximasse do "conhece-te a ti mesmo'; o demônio que, impertinente, se põe a falar do eterno retorno lembraria o "daimon" socrático. (...) Houve ainda quem a julgasse a expressão de uma orientação fundamental face à vida. (...) Houve, enfim, quem a concebesse como a representação de uma posição particular diante da vida".

Espírito iconoclasta
Talvez seja um dos propósitos deliberados dessa opção de escrita: enfatizar o aspecto ruminante e até enfadonho que provocam as batidas do martelo e com isso afastar as apropriações ligeiras de um pensamento que, pelo seu espírito iconoclasta, de modo paradoxal, acabou sendo idolatrado -no Brasil, especialmente pela juventude.
O segundo motivo que me levou a destacar aquela nota diz respeito a seu conteúdo objetivo. Nela, Marton reconhece que tinha sido Deleuze o primeiro filósofo a apontar a relevância da teoria das forças. Se à interpretação de Heidegger, como ainda reconhece, e mais do que isso, com a qual concorda a autora, tão incisiva ao apresentar "a íntima ligação entre o eterno retorno e a vontade de potência", escapara justamente a teoria das forças, provocando assim o seu resultado equivocado, que foi o de considerar o pensamento nietzschiano "enredado nas teias da metafísica"; na interpretação de Marton, como se explicita no próprio título de seu livro, aquele mesmo privilégio que Deleuze concedera à teoria das forças é mantido, apesar das inevitáveis ressalvas e restrições críticas que, no caso dele, referem-se à ausência de qualquer periodização, assim como ao peso excessivo que ele conferiu "às idéias de força ativa e reativa".
A manutenção daquele privilégio da teoria das forças pode ser observada ainda no texto, "O Eterno Retorno do Mesmo: Tese Cosmológica ou Imperativo Ético?", a meu ver, o mais importante de "Extravagâncias". Tanto quanto entendo, a resposta que é dada no ensaio tende mais para a tese cosmológica do que para o imperativo ético, e Marton apresenta então mais um desenvolvimento ou expansão da teoria das forças. Se, no livro-tese, era tecida a relação entre as forças e a vontade de potência, agora, no ensaio, importa pensar a doutrina do eterno retorno segundo a perspectiva daquela mesma teoria das forças, enfatizando mais uma vez e aprofundando o seu sentido cosmológico.
Por último, cabe constatar com tristeza a ausência de um diálogo com a "Crítica da Faculdade do Juízo", de Kant. Esse diálogo não está no livro de Marton, como talvez não esteja em lugar algum na obra de Nietzsche. E talvez essa falta seja responsável pelos desdobramentos finais da filosofia nietzschiana: não só de sua aproximação do positivismo, no segundo período, que vai de 1876 a 1882, chamado de "positivismo cético"; como também, no último período, de 1882 a 1888, momento consistente da construção propriamente dita da doutrina do eterno retorno e da vontade de potência, quando, nos diz o último capítulo do livro-tese, "Nietzsche não retoma as posições que defendia em seus primeiros escritos", que criticavam o conhecimento científico e atribuíam um papel privilegiado à arte. É como se Nietzsche tivesse legado à posteridade, ainda que na forma de um impensado, mais essa possibilidade de metamorfose das forças.



Nietzsche - Das Forças Cósmicas aos Valores Humanos
Scarlett Marton
Editora UFMG (Tel. 0/xx/31/499-4652)
296 págs., R$ 29,00.

Extravagâncias - Ensaios Sobre a Filosofia de Nietzsche
Scarlett Marton
Discurso Editorial (Tel. 0/xx/11/814-5383)
223 págs., R$ 20,00.



Virginia de Araujo Figueiredo é professora de estética no departamento de filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais.


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