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Traduções recolocam Joseph Conrad na ordem do dia
O prisioneiro do mar
FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
Em uma passagem de "O Negro
do Narciso", novela que Joseph
Conrad publicou em 1897, o narrador focaliza a absorção com que
um marinheiro, Singleton, de todos a bordo o mais velho e experiente, se entrega à leitura, indiferente à algazarra geral de um convés agitado pela iminência da partida. Pergunta-se sobre que fascínio o livro escolhido poderia exercer sobre a imaginação rude daquelas "crianças crescidas", "eternos prisioneiros do mar".
A imagem traduz em negativo a
situação dos próprios leitores de
Conrad, a dos muitos que fizeram
a sua popularidade imediata, a
nossa, dele separados pelo século.
Seu interesse é inequívoco, fato
indisputável; as razões, menos
evidentes, mais contraditórias.
Incluem o encanto do romanesco,
do deixar-se levar pelo exótico de
uma vida completamente outra,
que o coloca na esteira de Kipling
e Stevenson; a importância propriamente literária de um dos
grandes renovadores, ao lado de
Henry James, do romance inglês
na direção do modernismo; uma
visão polêmica e não edulcorante
dos estragos promovidos pelo imperialismo europeu.
Estes elementos aparecem com
destaque em três lançamentos recentes, traduções que recolocam
na ordem do dia o autor de "No
Coração das Trevas". Lidos em
conjunto, permitem matizar o
mito do marinheiro convertido à
escrita e a transposição da experiência acumulada numa biografia quase rocambolesca em ficção.
As encruzilhadas e perplexidades que envolvem a obra e a vida
do autor de "Lord Jim" são muitas. Era oriundo da pequena nobreza rural, de linhagem de patriotas empenhados em libertar a
Polônia sob domínio russo: o pai,
Korzeniowski, além de ativista
político, simpatizante de idéias
revolucionárias, era um literato,
tradutor de Shakespeare. Passou a
infância acompanhando os pais
exilados; ambos morreram antes
que completasse 12 anos e Conrad
teve sua educação confiada a um
tio materno.
Escolheu, ainda adolescente,
uma vida no mar, longe das origens. Depois de um breve período
como aprendiz de marinheiro em
Marselha (França), envolvido
com contrabando de armas e círculos de conspiração política, engajou-se na marinha mercante inglesa, seguindo carreira e aposentando-se como capitão.
De "polonês, católico e gentil-homem", como dizia ter se percebido ainda menino, a oficial e súdito do Império Britânico, defensor ardoroso de seus valores, o
salto foi grande e, necessariamente, incompleto: restaria sempre
em Conrad a marca do "homo
duplex", escrevendo numa língua
que não era sua de berço, dividido
entre duas culturas, suficientemente à margem de ambas para
identificar riscos, fraturas e corrosão em cada uma delas.
Sua estréia, com a publicação de
"A Loucura do Almayer", aos 38
anos, também é atípica, tardia,
para um escritor do seu vulto,
mas excepcionalmente madura.
Coincide com o abandono do
mar. Conrad passou a ter a saúde
frágil depois de uma temporada
de oito meses no Congo; além disso, recusava-se a acompanhar a
modernização nos mares, trocando os veleiros por vapores. No fracasso pessoal de Almayer, um
mercador holandês fixado na Malásia, reflete-se o colapso paulatino de uma visão purificada do
processo colonial, o esvaziamento
da imagem dos europeus portadores da civilização confrontados
com atraso indolente à espera de
ser redimido.
Como quase sempre em Conrad, o livro de estréia está centrado num episódio estrategicamente escolhido, uma situação única,
material para não mais do que um
conto, a partir da qual, todas as
possibilidades examinadas, surge
um romance bem armado. Aqui,
trata-se da última cartada de um
Almayer envelhecido e desanimado, vida pessoal e financeira em
frangalhos, tentando a todo custo
reerguer-se e, para tanto, obrigado a engolir seu orgulho de homem branco, por meio de uma
aliança firmada a contragosto
com um jovem rajá malaio.
Perseguindo a última quimera
da fortuna fácil, que lhe permita
voltar à Europa e gozar o lado
ameno da exploração colonial,
branqueando com dinheiro o
sangue mestiço da filha, o holandês assiste, impotente, à ascensão
nos negócios dos rivais árabes,
mais sensíveis e hábeis na composição política com o poder local, e
à progressiva atração que a cultura malaia vai exercendo sobre a
moça, que, educada à distância e à
européia, volta para reencontrar,
no convívio com a mãe, o fascínio
da tradição local.
Nos escombros dos entrepostos
vazios, restam a Almayer a solidão, o ópio e a bebida.
Esse panorama de dissolução final aponta tanto para as raízes
realistas de Conrad, admirador de
Flaubert e Maupassant, quanto
para o precursor do modernismo.
Já aparece no romance de estréia a
preocupação em deslocar o foco
da trama objetiva, beirando o melodrama, para o momento em
que o fracasso se ilumina, como
impressão reveladora, na consciência individual, muito mais
ambígua e atormentada.
Em "O Fim das Forças", um capitão de idade avançada, que encarna à perfeição os valores ingleses que Conrad admirava, vive
uma situação em que dois imperativos -manter-se fiel a suas
obrigações e alta reputação profissionais no mar e a seu senso de
dever familiar- não são conciliáveis. O sentido de uma verdade
unívoca, clara, objetiva, supostamente alcançável por meio da escolha moral individual correta,
esmorece sob o peso de um mundo da fragmentação, da contingência que obrigam o capitão
Whalley a trair sua natureza para
salvar uma filha em apuros financeiros. A consciência dilacerada
acaba por não resistir ao contexto
hostil; por ironia, é a retidão que
leva o capitão a pique.
Crueza realista
Mais do que "A Loucura de Almayer", trata-se aqui de uma história do mar. O que está em questão não é só o enfrentamento do
homem com a natureza em sua
poderosa impessoalidade nem
tampouco apenas as precisas e
magníficas descrições impressionistas do mar nas mais variadas
situações. Além da chave existencial e metafísica em que o mar
aparece, destaca-se também a
crueza realista com que Conrad
retrata as relações hierárquicas de
trabalho que nele se travam.
São também histórias de mar
que compõem as lembranças de
"O Espelho do Mar", muito pouco confessionais e diretas, mas extremamente reveladoras do impacto formador que a experiência
de marinheiro teve sobre o escritor. Os casos de interesse humano, narrados de ponto de vista em
que a figura de Conrad aparece
muito discreta, são muitos e derivam das condições muito particulares que a convivência forçada
com um mesmo grupo, em espaço restrito e por um longo período, produzem. As impressões
descontínuas -muito acuradas e
cuidadosamente descritas num
estilo que busca mais do que a palavra, a metáfora justa- dão face
humana e familiar à geografia dos
mares, aos fenômenos meteorológicos, às embarcações, às tripulações e suas rusgas, mesmo para
convictos marujos de água doce.
O mesmo aplica-se a "Um Registro Pessoal", em que a opção
pelo mar e pela Inglaterra, totalmente estranha no contexto de
sua história familiar, é analisada
em suas raízes, na infância e adolescência polonesas do autor,
num quadro montado a partir de
episódios muito concretos: fragmentos do folclore familiar, a
traumática recondução ao exílio
da mãe agonizante, a figura conservadora e benevolente do tutor.
Os dois relatos valem intrinsecamente e como pistas únicas, essenciais para a compreensão de
como surgiu, na confluência desses dois exílios voluntários, um
autor da estatura de Conrad.
O Espelho do Mar
& Um Registro Pessoal
Joseph Conrad
Tradução: de Celso M. Paciornik
Iluminuras (Tel. 0/xx/11/3068-9433)
287 págs., R$ 33,00
A Loucura do Almayer
Joseph Conrad
Tradução: Julieta Cupertino
Revan (Tel. 0/xx/21/502-7495)
196 págs., R$ 23,00
O Fim das Forças
Joseph Conrad
Tradução: Julieta Cupertino
Revan
192 págs., R$ 23,00
Fábio de Souza Andrade é professor
de literatura na Universidade Estadual
de Campinas (Unicamp) e autor de "O
Engenheiro Noturno - A Lírica Final de
Jorge de Lima" (Edusp).
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