São Paulo, sábado, 09 de dezembro de 2000

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O filósofo José Arthur Giannotti discute o legado do pensamento de Karl Marx

Marx morto, Marx vivo

JORGE GRESPAN

Já desde antes de seu lançamento, "Certa Herança Marxista" começou a provocar polêmica. O autor mesmo encarregou-se de estimulá-la, escrevendo um artigo para o Mais! (5/11/2000) e principalmente um texto publicado na revista "Novos Estudos", nš 57, do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), em que critica trabalhos recentes sobre temas correlatos ao seu. Houve ainda debates, comentários e resenhas em vários jornais, destacando-se o belo texto de Bento Prado Jr. publicado no Mais! (22-10-2000), em que o itinerário filosófico de Giannotti é recomposto desde suas obras de juventude. Este caminho proveitoso para a compreensão do seu difícil pensamento é seguido pelo próprio Giannotti no livro atual, cujos primeiros capítulos retomam idéias que vêm desde "Origens da Dialética do Trabalho" (1966), passando por "Trabalho e Reflexão" (1981) até "Apresentação do Mundo" (1995).
Trata-se agora de cumprir antigo projeto, procurando traçar a linha divisória entre o vivo e o morto no pensamento de Marx. E, de fato, essa me parece a questão central de "Certa Herança Marxista": Giannotti elogia o título do trabalho de Negri, "Marx Além de Marx", tomando-o como mote para uma ampla revisão do marxismo, sem, contudo, abandonar completamente o seu contexto. Mas o objetivo de traçar aquela divisória não constitui exatamente a originalidade do livro, pois, com a exceção de poucos saudosistas da "ortodoxia", todos aqueles que hoje levam a sério o legado de Marx também buscam estabelecê-la; a distinção entre eles consiste "apenas" nos pontos pelos quais a fazem passar...
No caso de Giannotti, a solução está contida na pergunta: "A lógica da contradição não constitui o foco a partir do qual tudo se ilumina?". Sua estratégia será, então, retomar o problema da complexa relação entre as dialéticas de Marx e de Hegel, examinando se a famosa "inversão" desta por aquela não comprometeria irremediavelmente a dialética materialista com os pressupostos idealistas da especulação hegeliana. Mais precisamente, a investigação se concentra nos conceitos lógicos de contrariedade -simples oposição de termos diferentes- e contradição, na qual a oposição se dá sobre a base de uma identidade que, daí, se cinde e nega a si mesma. Como é apenas este último conceito que constitui o movimento propriamente dialético, a eventual impossibilidade do materialismo conseguir definir termos contrários como contraditórios inviabilizaria sua pretensão a uma crítica profunda do capitalismo, baseada na constatação do caráter autonegador deste sistema econômico-social.

Definição de capital
Com este crivo nas mãos, Giannotti passa em revista os principais momentos da obra de Marx, avaliando se em cada um foi possível alcançar um nível de formulação rigorosamente dialético para as categorias. Depois de indicar as dificuldades dos textos de juventude de Marx, conforme já havia feito em "Origens da Dialética do Trabalho", ele procura mostrar que só a definição de "capital", elaborada na maturidade do pensador alemão, permite determinar um núcleo realmente contraditório, em que o trabalho vivo e o trabalho morto, objetivados nos meios de produção, não aparecem como simples opostos. Como o capital compra a ambos e os inclui na sua totalidade de valor, os dois são relacionados numa identidade que determina sua oposição enquanto contradição do próprio capital. Portanto é apenas quando a força de trabalho se converte em mercadoria que ela pode ser posta em uma identidade de valor com os instrumentos de produção, também mercadorias; ou seja, só sob condições capitalistas é que há contradição legítima.
Até aqui Giannotti repete em geral o que havia dito em livros anteriores. A novidade de "Certa Herança Marxista" é a insistência na distinção radical de contrariedade e contradição: a primeira ocorreria na realidade, entre atributos diferentes das coisas, e a segunda, apenas no plano discursivo, em que opostos se contradizem. Para que a contradição capitalista seja real, diante dessa restrição, ela tem de ser concebida como um tipo de estrutura linguística, articulada pelas práticas fundamentais da produção capitalista. Deste modo, procedimentos como a abstração dos trabalhos úteis no intercâmbio de mercadorias, a mensuração dos valores pelo dinheiro ou ainda a expressão da relação técnica entre trabalhos vivo e morto na relação de valor do capital variável e do constante, seriam todos determinados por "regras" que orientam o comportamento dos agentes sociais na troca e na produção.
Ou seja, a reiteração destas práticas leva à cristalização de seus resultados, que daí se autonomizam e passam a ser considerados pressupostos para a ação, "regras" orientadoras que se sistematizam numa "gramática". A ênfase de Giannotti nessa definição do capital como "logos prático" ou "jogo de linguagem não verbal", longe de ser simplesmente "flerte" com o jargão de Wittgenstein, portanto, tem a ver com a necessidade de os contrários -valor e valor de uso, dinheiro e mercadoria, capital e trabalho assalariado- passarem a contraditórios.
Mediante tal reformulação, esse núcleo básico da teoria marxista do capitalismo pode ser aceito por Giannotti. Nisso consiste essencialmente o que dela permaneceria vivo. Contudo, mesmo a esse ponto há restrições e objeções em seu texto sinuoso. Assim como o trabalho vivo e o morto passam de contrários a contraditórios, também o livro incorre em oscilações ao arriscar aquele traço divisor entre o que merece ficar e o que deve ser abandonado no pensamento de Marx.
O próprio estilo varia do tom geralmente sisudo com que se leva a sério o exagero de certas conclusões e até a ironia com que trata aspectos considerados mortos no marxismo, obscurecendo frequentemente, porém, o núcleo exato da sua crítica. Ele parece às vezes dirigir uma objeção total ao marxismo, que estaria completamente ultrapassado, quando de fato afirma buscar o que dele deveria ser conservado como ainda pertinente ao diagnóstico do capitalismo atual.

A máquina computadorizada
Nesse sentido, o argumento avança ao ponto em que a crescente complexidade do sistema econômico-social hoje alteraria a determinação e a operação de seus fundamentos. O enorme crescimento do emprego de maquinaria proporcionalmente ao de mão-de-obra e, mais ainda, a adoção de um novo tipo de máquina computadorizada, e não apenas automática, são fatores que complicam a expressão da relação técnica entre trabalhos vivo e morto na relação de valor entre capitais variável e constante.
O trabalho vivo se torna em geral supérfluo no processo de produção, restando-lhe somente a modesta função de vigiar o movimento da máquina. Giannotti conclui, então, que tais condições não apenas dificultam, mas inviabilizam a capacidade de o capital medir valores, isto é, expressar em valor as relações técnicas da produção atual. Do ponto de vista da sua "gramática", o capital não conseguiria mais criar o espaço homogêneo em que todos os elementos da sociabilidade podiam se expressar em valor. E sem essa identidade de base, os termos opostos não aparecem mais como contraditórios, e sim como meros contrários.
Evidentemente, são citados textos de Marx que prevêem esses desenvolvimentos tecnológicos. Mas novamente o estilo de Giannotti obscurece a questão, e parece que tais textos não fariam senão admitir fatos que a honestidade intelectual de Marx o forçava a reconhecer, malgrado sua teoria. Em outros momentos, no entanto, o inverso parece afirmado, com as novas condições produtivas simplesmente confirmando e cumprindo o diagnóstico crítico marxista, derivado da constatação do caráter contraditório do capitalismo. Se o cerne do argumento de Giannotti está fundado sobre este ponto, então é preciso levar em conta o significado de Marx tê-lo previsto e de não o considerar algo que invalidaria suas idéias. Impõe-se aqui uma reflexão mais cuidadosa, que obviamente ultrapassa as possibilidades desta resenha.
De qualquer maneira, creio que o problema consiste em Giannotti pensar que os novos desdobramentos técnicos "esgotam" a capacidade de medida dos valores pelo capital, isto é, que eles tendem não a agudizar sua contradição constitutiva, mas a anular a eficácia da própria contradição. A diferença das duas perspectivas está onde se localiza a negação.
A contradição é pensada por ele principalmente como a forma lógica da "regra", que consegue presidir os procedimentos de mensuração e abstração do valor justamente por sua negatividade, pelo fetichismo que transforma resultados em pressupostos e cria uma identidade social na qual os agentes podem se cruzar. Em vez de considerar que essa negatividade se expressa recorrentemente na oposição dos padrões de medida empregados pelo capital em seu processo de autovalorização -por exemplo, a taxa de mais-valia e a taxa de lucro-, pondo o capital sempre em risco de desmedir-se, Giannotti prefere enfatizar o lado positivo, da "boa infinitude" permitindo a mensuração dos valores.
Assim, quando indica a irrupção da desmedida, esta vem de um processo histórico posterior, invalidando a própria contradição com que atua o capital. É sintomático que ele analise quase exclusivamente os efeitos das crises sobre as "regras" de orientação dos agentes econômicos e não procure explicar como uma crise surge da desmedida, da contradição do capital. Em outras palavras, é como se as crises apenas fizessem parte de um processo conflituoso de reprodução, nada tendo a ver com o fato atual do "esgotamento" da capacidade capitalista de mensurar valores. Não haveria vínculo entre esse fato e o de que os processos negativos ameaçando a capacidade do capital em prosseguir sua valorização e articular as relações sociais sempre acompanharam sua trajetória.

A ilusão do fetiche
A consequência derivada desse raciocínio por Giannotti é que, apesar de ter hoje se "esgotado" a eficácia da contradição, o capital continua logrando medir os valores sociais, a produção e a distribuição, por ainda lhe restar o aspecto positivo de "regra". Esta conservaria, entretanto, um estatuto de simples aparência: não resultando mais de uma medida efetiva, ela permanece enquanto pressuposto. Do fetiche ficou apenas a "ilusão" ainda necessária. Por outro lado, como o capital não sustenta mais o espaço da identidade dos valores, todos os conflitos existentes, especialmente os de classe, perderiam o caráter contraditório que aquela identidade lhes dava, retornando à situação de meros contrários, sem força para superar as condições fetichizadas do seu mundo.
Sem a contradição, a força negadora do proletariado é somente negativa, não chegando a se colocar como algo positivo diante do capital e, daí, a poder criar outra forma de sociedade. A consequência política disso é a impossibilidade da revolução, seja qual for o modo com que ela realize algum tipo de emancipação.
Mas por que há de ser assim? Por que os contrários não seguem sendo contraditórios? É que os conceitos de "contradição real", fundada numa "universalidade concreta" do capital, sofrem em "Certa Herança Marxista" uma pesada restrição lógica em relação aos livros anteriores de Giannotti. Ele admite sua realidade apenas enquanto conjunto de "regras" sistematizadas numa "gramática", isto é, se o que preside as relações sociais tiver o estatuto de "jogo de linguagem não verbal". Só assim uma contrariedade real poderia se apresentar como contradição linguística. Por essa autonomização fetichista e efetiva dos resultados da prática social, Giannotti se sente autorizado a pensar numa "gramática" do capital e a propor sua questão lógica a toda a tradição marxista. Ele afirma realmente:
"Ainda que se pretenda explicar como o princípio da contradição nasce de um processo histórico qualquer, permanece a questão lógica, por conseguinte, exterior à história do vir a ser da linguagem, perguntando como o resultado do processo histórico chega a assumir o estatuto de condição de qualquer discurso significativo" (pág. 74).
Diante disso, e concluindo, pergunto-me apenas: se a "questão lógica" vem a ser pela história, como resultado do processo de autonomização e fetichização, sua autonomia é apenas relativa, nunca absoluta, elas nunca poderiam chegar a ser "exteriores" à história.
Portanto "perguntar" pelo processo que faz de resultados históricos uma condição discursiva deveria ser questioná-lo, implicando não aceitar a naturalidade com que os resultados se apresentam como pressupostos. Pois não é tarefa da crítica desmistificar o fetiche das categorias e simultaneamente o de suas "regras"? Não seria a então a lógica, assim definida, também um fetiche?

Certa Herança Marxista
José Arthur Giannotti
Companhia das Letras (Tel. 0/ xx/11/ 3846-0801)
336 págs., R$ 29,50



Jorge Grespan é professor de história na USP e autor de "O Negativo do Capital" (Hucitec).




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