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"O Gattopardo" desmente conservadorismo de Lampedusa
Memórias do luto
ELIANE ROBERT MORAES
Nada mais patético do que o velho cachorro
empalhado, descrito nas últimas páginas de "O
Gattopardo", sobretudo porque ele aparece como o derradeiro emblema de um aristocrata
cuja linhagem evocava para si a realeza dos leopardos. Morto há 45 anos, o antigo cão de fila
era conservado no quarto de uma velha solteirona, em meio a "um inferno de recordações
mumificadas". Porém mesmo empalhado, com
o focinho de madeira e os olhos de vidro amarelo ainda intactos, o animal não conseguia resistir ao tempo: em 1910, ele se tornara um "ninho
de teias de aranha e de traças, detestado pelos
empregados que há anos pediam que fosse jogado no lixo".
O cão pertencera a dom Fabrizio Corbera,
príncipe de Salina, o último "pater familias" de
uma estirpe que, na Sicília de 1860, estava prestes a desaparecer. Mais que um animal de estimação, o cachorro desempenha um papel fundamental no romance: era a principal testemunha da vida do nobre siciliano, e certamente a
única criatura a quem o príncipe concedia o direito de compartilhar sua inviolável solidão.
Testemunha muda, amistosa e obediente, como convinha perfeitamente a um homem cuja
superioridade manifestava-se de tal forma que
"o orgulho e a análise matemática associavam-se nele a ponto de dar-lhe a ilusão de que os astros obedeciam a seus cálculos".
Extrovertido e alegre, o cão pode ser considerado também uma espécie de alter ego de seu
dono, cujo temperamento melancólico e irritadiço resultava da reunião de matrizes distintas:
do lado materno, a ascendência germânica legara ao príncipe um caráter intelectual e altivo;
do lado paterno, o sangue siciliano lhe dera inclinações sensuais e levianas. Marcado por essa
contradição de base que a sensibilidade aristocrática só fazia acentuar, dom Fabrizio "vivia
eternamente descontente, embora sob a expressão jupiteriana, e contemplava o ruir da sua
casta e de seu patrimônio sem nada fazer e sem
nenhum desejo de remediar o desastre".
Essa descrição está longe de esgotar a complexidade do protagonista de "O Gattopardo". Nele, o furor sanguíneo convive com a cortesia tipicamente nobre; o orgulho cede com frequência à lucidez da razão; a autoridade, própria de
sua natureza leonina, não raro dá lugar à compaixão; até mesmo o temperamento irritado,
que o predispõe à insatisfação e ao tédio, sucumbe muitas vezes a um forte sentimento de
solidariedade.
Mais que tudo, o caráter fundamentalmente
intelectual do príncipe lhe confere uma estatura
espiritual superior àquela que ostenta no sangue, criando um intervalo decisivo entre o homem público e o íntimo, este introspectivo e solitário.
Se é difícil resumir o caráter de dom Fabrizio,
isso se deve inicialmente ao fato de que o romance o coloca no centro dos acontecimentos:
é por meio dele que o leitor acompanha os bastidores da revolução liberal na Sicília e suas intrincadas negociatas de transição do poder. É
em torno dele que os outros personagens se
movem, nem sempre com a mesma proeminência do cachorro Bendicó. Protagonista
-no sentido lato de termo- dessa história, o
príncipe de Salina é um filtro por meio do qual
se tem acesso a acontecimentos públicos e privados, durante o processo de unificação da Itália. Trata-se de uma consciência que se oferece
como ponto de vista interno à aristocracia, mas
num ângulo absolutamente singular.
O neto de dom Fabrizio
Esse contraponto entre a biografia do personagem e o quadro histórico torna-se ainda mais
complexo quando sabemos que foi um neto de
dom Fabrizio quem escreveu o romance. Príncipe, ele também, e compartilhando com o avô
o gosto pelas altas atividades do espírito, Giuseppe Tomasi di Lampedusa solicita uma atenção que transcende a mera autoria. Não cabe
aqui uma especulação maior sobre as delicadas
relações que se podem estabelecer entre vida e
obra. Mas talvez seja o caso de lembrar que o jogo especular entre as duas biografias nem sempre favoreceu a qualidade das interpretações do
livro.
Em "L'Intimità e la Storia" (Einaudi, 1998),
Francesco Orlando alude ao frequente "preconceito biográfico" que "O Gattopardo" suscita, empenhando-se em desmentir a suposta
identidade entre personagem e autor: "Dom
Fabrizio, riquíssimo, politicamente influente,
pai de família, mulherengo, astrônomo premiado, não é Lampedusa, empobrecido, marginal,
solitário, frustrado no sexo, diletante desconhecido". Mas até mesmo a hipótese de uma estratégia compensatória, na qual a ficção "corrigiria" a realidade, deve ser aventada com precaução, pois ao preconceito biográfico soma-se outro, mais grave, que é o ideológico.
Publicado em 1958, "O Gattopardo" foi alvo
de fortes ataques da crítica italiana de esquerda,
cujos paradigmas estéticos ainda estavam atrelados ao neo-realismo nacional do pós-guerra.
Embora seu imediato sucesso de público já
anunciasse a superação desse modelo, o romance de Lampedusa ficou conhecido como
"visão reacionária da história". Moravia chegou
a apresentá-lo como "sucesso da direita", contribuindo para a consolidação de um preconceito que acabou se instalando na própria língua: com o livro, surgiram as palavras "gattopardismo" e "gattopardesco", sinônimos de
conservadorismo.
Por certo, não se pode negar o caráter conservador do romance. Mas o adjetivo, aqui, só ganha força se deslocado da política para a história -entendendo-se essa história como versão particular de acontecimentos vividos, tecida no limiar do não-vivido. Se, como gênero,
"O Gattopardo" situa-se entre o romance histórico e o psicológico, deve-se sublinhar que sua
matéria-prima provém de lembranças estritamente pessoais do autor. Daí um certo tom memorialístico que percorre todo o livro, a evocar
vestígios de uma tradição desaparecida, só conservada como memória de família. É nesse sentido que as biografias de dom Fabrizio e de
Lampedusa se cruzam, uma ecoando a outra,
mas na condição de fantasmas.
Nesse jogo de ressonâncias o que prevalece é
uma intensa elaboração da memória, para dar
conta do que foi perdido e só retorna como vestígio. Em outras palavras: "O Gattopardo" pode
ser lido como registro de um trabalho de luto
que se estende do individual ao coletivo. Tudo,
no livro, evoca a perda. Dom Fabrizio, que conservava "no fundo da alma um resíduo de luto",
compõe às vezes uma figura tão solene e sombria "que era como se acompanhasse um invisível coche fúnebre". O promissor casamento de
Tancredi e Angélica revela-se um fracasso, sucumbindo ao "inevitável fundo de sofrimento".
Até mesmo os "deuses sorridentes e inexoráveis" que pairavam no afresco de um salão palaciano perdem a suposta imortalidade: "Acreditavam-se eternos: uma bomba fabricada em
Pittsburgh, Penn., iria, em 1943, provar-lhes o
contrário". Que essa bomba tenha sido a principal responsável pelos infortúnios do próprio
Lampedusa -seu maior trauma, relatado em
"Ricordi d'Infanzia", foi o bombardeamento da
casa familiar de Palermo-, isso só prova que
não há escapatória para o irremediável trabalho
da morte que preside toda existência, ainda
mais numa época voltada para a destruição.
Nada cessa o movimento dos "grãozinhos que
se comprimem e deslizam um a um, sem pressa
e sem descanso, diante do estreito orifício da
ampulheta". Dizendo de outro modo, nada
permanece como está.
No final das contas, o romance desmente a famosa frase de Tancredi -"se quisermos que
tudo permaneça como está, tudo deve mudar"- que rendeu ao autor a reputação de
conservador. E o faz de tal forma que nem mesmo o cachorro empalhado, ao qual a eternidade
parecia assegurada, escapa ao fluxo contínuo
das mudanças impostas pelo tempo: lançado
pela janela, sua carcaça velha e empoeirada se
decompõe por completo no ar. Reduzido a um
"montinho de pó", o cão torna-se apenas um
vestígio, um nada, um quase nada -vale dizer,
matéria de ficção.
Eliane Robert Moraes é professora de estética e literatura na
Pontifícia Universidade Católica (SP) e autora, dentre outros, de
"Sade - A Felicidade Libertina" (Imago).
O Gattopardo
Giuseppe Tomaso di Lampedusa
Tradução e prefácio: Marina Colasanti
Record (Tel. 0/xx/21/585-2000)
304 págs., R$ 34,00
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