São Paulo, sábado, 09 de dezembro de 2000

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

"O Gattopardo" desmente conservadorismo de Lampedusa

Memórias do luto



ELIANE ROBERT MORAES
Nada mais patético do que o velho cachorro empalhado, descrito nas últimas páginas de "O Gattopardo", sobretudo porque ele aparece como o derradeiro emblema de um aristocrata cuja linhagem evocava para si a realeza dos leopardos. Morto há 45 anos, o antigo cão de fila era conservado no quarto de uma velha solteirona, em meio a "um inferno de recordações mumificadas". Porém mesmo empalhado, com o focinho de madeira e os olhos de vidro amarelo ainda intactos, o animal não conseguia resistir ao tempo: em 1910, ele se tornara um "ninho de teias de aranha e de traças, detestado pelos empregados que há anos pediam que fosse jogado no lixo".
O cão pertencera a dom Fabrizio Corbera, príncipe de Salina, o último "pater familias" de uma estirpe que, na Sicília de 1860, estava prestes a desaparecer. Mais que um animal de estimação, o cachorro desempenha um papel fundamental no romance: era a principal testemunha da vida do nobre siciliano, e certamente a única criatura a quem o príncipe concedia o direito de compartilhar sua inviolável solidão. Testemunha muda, amistosa e obediente, como convinha perfeitamente a um homem cuja superioridade manifestava-se de tal forma que "o orgulho e a análise matemática associavam-se nele a ponto de dar-lhe a ilusão de que os astros obedeciam a seus cálculos".
Extrovertido e alegre, o cão pode ser considerado também uma espécie de alter ego de seu dono, cujo temperamento melancólico e irritadiço resultava da reunião de matrizes distintas: do lado materno, a ascendência germânica legara ao príncipe um caráter intelectual e altivo; do lado paterno, o sangue siciliano lhe dera inclinações sensuais e levianas. Marcado por essa contradição de base que a sensibilidade aristocrática só fazia acentuar, dom Fabrizio "vivia eternamente descontente, embora sob a expressão jupiteriana, e contemplava o ruir da sua casta e de seu patrimônio sem nada fazer e sem nenhum desejo de remediar o desastre".
Essa descrição está longe de esgotar a complexidade do protagonista de "O Gattopardo". Nele, o furor sanguíneo convive com a cortesia tipicamente nobre; o orgulho cede com frequência à lucidez da razão; a autoridade, própria de sua natureza leonina, não raro dá lugar à compaixão; até mesmo o temperamento irritado, que o predispõe à insatisfação e ao tédio, sucumbe muitas vezes a um forte sentimento de solidariedade.
Mais que tudo, o caráter fundamentalmente intelectual do príncipe lhe confere uma estatura espiritual superior àquela que ostenta no sangue, criando um intervalo decisivo entre o homem público e o íntimo, este introspectivo e solitário.
Se é difícil resumir o caráter de dom Fabrizio, isso se deve inicialmente ao fato de que o romance o coloca no centro dos acontecimentos: é por meio dele que o leitor acompanha os bastidores da revolução liberal na Sicília e suas intrincadas negociatas de transição do poder. É em torno dele que os outros personagens se movem, nem sempre com a mesma proeminência do cachorro Bendicó. Protagonista -no sentido lato de termo- dessa história, o príncipe de Salina é um filtro por meio do qual se tem acesso a acontecimentos públicos e privados, durante o processo de unificação da Itália. Trata-se de uma consciência que se oferece como ponto de vista interno à aristocracia, mas num ângulo absolutamente singular.

O neto de dom Fabrizio
Esse contraponto entre a biografia do personagem e o quadro histórico torna-se ainda mais complexo quando sabemos que foi um neto de dom Fabrizio quem escreveu o romance. Príncipe, ele também, e compartilhando com o avô o gosto pelas altas atividades do espírito, Giuseppe Tomasi di Lampedusa solicita uma atenção que transcende a mera autoria. Não cabe aqui uma especulação maior sobre as delicadas relações que se podem estabelecer entre vida e obra. Mas talvez seja o caso de lembrar que o jogo especular entre as duas biografias nem sempre favoreceu a qualidade das interpretações do livro.
Em "L'Intimità e la Storia" (Einaudi, 1998), Francesco Orlando alude ao frequente "preconceito biográfico" que "O Gattopardo" suscita, empenhando-se em desmentir a suposta identidade entre personagem e autor: "Dom Fabrizio, riquíssimo, politicamente influente, pai de família, mulherengo, astrônomo premiado, não é Lampedusa, empobrecido, marginal, solitário, frustrado no sexo, diletante desconhecido". Mas até mesmo a hipótese de uma estratégia compensatória, na qual a ficção "corrigiria" a realidade, deve ser aventada com precaução, pois ao preconceito biográfico soma-se outro, mais grave, que é o ideológico.
Publicado em 1958, "O Gattopardo" foi alvo de fortes ataques da crítica italiana de esquerda, cujos paradigmas estéticos ainda estavam atrelados ao neo-realismo nacional do pós-guerra. Embora seu imediato sucesso de público já anunciasse a superação desse modelo, o romance de Lampedusa ficou conhecido como "visão reacionária da história". Moravia chegou a apresentá-lo como "sucesso da direita", contribuindo para a consolidação de um preconceito que acabou se instalando na própria língua: com o livro, surgiram as palavras "gattopardismo" e "gattopardesco", sinônimos de conservadorismo.
Por certo, não se pode negar o caráter conservador do romance. Mas o adjetivo, aqui, só ganha força se deslocado da política para a história -entendendo-se essa história como versão particular de acontecimentos vividos, tecida no limiar do não-vivido. Se, como gênero, "O Gattopardo" situa-se entre o romance histórico e o psicológico, deve-se sublinhar que sua matéria-prima provém de lembranças estritamente pessoais do autor. Daí um certo tom memorialístico que percorre todo o livro, a evocar vestígios de uma tradição desaparecida, só conservada como memória de família. É nesse sentido que as biografias de dom Fabrizio e de Lampedusa se cruzam, uma ecoando a outra, mas na condição de fantasmas.
Nesse jogo de ressonâncias o que prevalece é uma intensa elaboração da memória, para dar conta do que foi perdido e só retorna como vestígio. Em outras palavras: "O Gattopardo" pode ser lido como registro de um trabalho de luto que se estende do individual ao coletivo. Tudo, no livro, evoca a perda. Dom Fabrizio, que conservava "no fundo da alma um resíduo de luto", compõe às vezes uma figura tão solene e sombria "que era como se acompanhasse um invisível coche fúnebre". O promissor casamento de Tancredi e Angélica revela-se um fracasso, sucumbindo ao "inevitável fundo de sofrimento".
Até mesmo os "deuses sorridentes e inexoráveis" que pairavam no afresco de um salão palaciano perdem a suposta imortalidade: "Acreditavam-se eternos: uma bomba fabricada em Pittsburgh, Penn., iria, em 1943, provar-lhes o contrário". Que essa bomba tenha sido a principal responsável pelos infortúnios do próprio Lampedusa -seu maior trauma, relatado em "Ricordi d'Infanzia", foi o bombardeamento da casa familiar de Palermo-, isso só prova que não há escapatória para o irremediável trabalho da morte que preside toda existência, ainda mais numa época voltada para a destruição. Nada cessa o movimento dos "grãozinhos que se comprimem e deslizam um a um, sem pressa e sem descanso, diante do estreito orifício da ampulheta". Dizendo de outro modo, nada permanece como está.
No final das contas, o romance desmente a famosa frase de Tancredi -"se quisermos que tudo permaneça como está, tudo deve mudar"- que rendeu ao autor a reputação de conservador. E o faz de tal forma que nem mesmo o cachorro empalhado, ao qual a eternidade parecia assegurada, escapa ao fluxo contínuo das mudanças impostas pelo tempo: lançado pela janela, sua carcaça velha e empoeirada se decompõe por completo no ar. Reduzido a um "montinho de pó", o cão torna-se apenas um vestígio, um nada, um quase nada -vale dizer, matéria de ficção.


Eliane Robert Moraes é professora de estética e literatura na Pontifícia Universidade Católica (SP) e autora, dentre outros, de "Sade - A Felicidade Libertina" (Imago).

O Gattopardo
Giuseppe Tomaso di Lampedusa
Tradução e prefácio: Marina Colasanti
Record (Tel. 0/xx/21/585-2000)
304 págs., R$ 34,00


Texto Anterior: O enigma do castelo
Próximo Texto: Dura e áspera: Os Sete Loucos & Roberto Arlt
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.