São Paulo, Sábado, 10 de Abril de 1999
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TERCEIRA PARTE

Pelo menos, no auge do sistema ocorre, por um lado, à maneira do poder despótico, uma simbiose entre o simbólico e o real. Em primeira instância, o chefe é o centro de onde emanam as "leis".
Mas, em segundo lugar, como justificadamente insiste Lefort, o chefe age sempre em nome do partido. Ora, o que é o partido (em termos de simbólico e de imaginário)? Mais do que imbricação do real e do simbólico, o partido -ao mesmo tempo instituição e sujeito de um projeto histórico e transhistórico que se impõe a todos- é antes da ordem da imbricação do simbólico e do imaginário.
De novo aparece, sob outra forma, o "silogismo burocrático". Aqui os termos são "real", "simbólico" e "imaginário", e a especificidade do regime não está evidentemente na presença deles, mas em sua forma de imbricação. Como distingui-la daquela que encontramos na democracia? Em primeiro lugar, já vimos, não há, na democracia, imbricação entre o real e o simbólico: a separação entre esses dois elementos lhe é constitutiva.
Em segundo lugar, se o simbólico e o imaginário se comunicam de algum modo, eles não o fazem como no interior do universo burocrático. Digamos que na democracia um se interverte no outro (ou, mais precisamente, a ordem democrática se interverte em dominação; o bloqueio dessa interversão, que o próprio sistema segrega, produz a ideologia). Na sociedade burocrática, simbólico e imaginário como que se imbricam imediatamente. Por isso, a crítica da ideologia burocrática não pode consistir em mostrar a interversão do simbólico no imaginário como faz a crítica da ideologia capitalista; ela deve mostrar, diferentemente, como o simbólico se investe no imaginário (e vice-versa) para constituir a ideologia do "modo de dominação" de uma nova camada dominante. O que revela, num mesmo movimento, como na sociedade burocrática o tema crítico da interversão -"petrificado"- passa a ser peça essencial do imaginário ideológico.
O sistema burocrático -Lefort observa- parece resistir a "toda análise em termos puramente políticos (em sentido estrito), assim como a toda análise em termos puramente econômicos ou sociológicos". "O fenômeno foge (...) da perspectiva do historiador, como da do sociólogo ou do economista".
"A Complicação" é uma tentativa de articular essas várias dimensões do fenômeno, e assim -com o perdão da tautologia- complicá-lo. Há uma passagem, nas páginas finais do livro, que poderia resumir, até certo ponto, tanto os resultados da análise quanto os obstáculos que ela se dispôs a enfrentar. Fazendo remontar as origens do totalitarismo comunista ao partido de estilo radicalmente novo fundado por Lênin, Lefort escreve no último tópico do seu livro: "O partido de um gênero inédito que surge na Rússia no início do século (...) não é o produto da imaginação de Lênin, embora se lhe deva reconhecer o "gênio" de ter captado em uma conjuntura o sentido da aliança de contrários, de ter dado passagem à concepção de um despotismo sem déspota, de uma democracia sem cidadãos, de um capitalismo sem capitalistas, de um proletariado sem movimento operário, de um Estado sem uma armadura de direitos que lhe sejam próprios, enfim, de ter introduzido o esquema de uma sociedade totalmente articulada segundo o princípio da racionalidade de organização, e ao mesmo tempo totalmente incorporada, segundo o princípio da identificação do indivíduo à comunidade".
O livro de Lefort, que se situa na linha de outros trabalhos do autor sobre a burocracia, é um texto maior. A obra em que ele se insere representa, com algumas outras, o melhor do que se escreveu sobre o tema no século 20. Porém, no final da leitura de "A Complicação", tem-se a impressão de que, embora introduzindo elementos essenciais, o livro fica um pouco aquém da apresentação de uma verdadeira teoria do poder burocrático. Seria pedir demais? Mas a recorrência dos temas, se positiva e construtiva, oculta também -o autor, de resto, não o esconde- um certo impasse diante da resistência do objeto.
Tentando organizar o que poderiam ser as dificuldades do texto, diria que elas aparecem tanto no plano da crítica a Furet e Malia (não discordo dessa crítica, mas a "estratégia" assumida não me convence inteiramente) como num plano mais geral. Lefort se preocupa, e com razão, em pôr em xeque o esquema genético dos dois autores. Como vimos, segundo eles o comunismo burocrático "viria" do socialismo marxista, que por sua vez derivaria do ideal democrático da igualdade e, de um modo mais geral, da filosofia das Luzes. Como vimos também, Lefort desconfia "das soluções de uma simplicidade surpreendente", para as quais a desastrosa experiência russa derivaria da utopia de uma "sociedade inteiramente igualitária", utopia que em última instância seria o produto "da filosofia iluminista".
Se por um lado o autor recusa que "o comunismo" surja do "flanco da democracia para descer a rampa do igualitarismo até a sua queda final", ele afirma que o comunismo só é inteligível no quadro de um mundo transformado pela "revolução democrática" e, em escritos anteriores, admitira que "o totalitarismo só se explica (...) se compreendermos a relação que ele tem com a democracia" (Lefort, "L'Image du Corps et le Totalitarisme",1974, in "L'Invention Démocratique"). Mais do que isso: "(O comunismo) surgiu (da democracia), (...) ele a derruba, apropriando-se ao mesmo tempo de alguns de seus traços e lhes dando um prolongamento fantástico". Aproximamo-nos do que é decisivo. O que há de inteiramente justificado no procedimento crítico de Lefort é o questionamento "da tentativa de restabelecer a continuidade de um trajeto ideológico" que "violenta a história das idéias" (e com isso perde de vista a radicalidade do chamado regime soviético). A dificuldade do esquema genético de Furet et de Malia está na continuidade.
Mas há aí um problema. Preocupado, justificadamente, em contestar a legitimidade do esquema continuísta (que, apesar dessa ou daquela advertência dos autores, parece ser a linha mestra do trabalho deles), Lefort acaba, se não cortando, aparando demais, a meu ver, o fio que une o comunismo burocrático ao seu lugar de origem (ou, como se verá, aos seus lugares de origem), o que compromete, afinal, a possibilidade de uma teoria mais precisa sobre a gênese e, a partir desta, sobre a essência do sistema. Diria assim que, se Lefort tem inteiramente razão quando invalida a série "contínua" socialismo marxista-bolchevismo-stalinismo ou ainda Luzes (ou filosofias revolucionárias do século 18)-socialismo marxista-bolchevismo-stalinismo pelo modo mesmo em que contesta (explico-me em seguida), não vai suficientemente longe na análise do "problema" que está contido nessa sucessão. A recusa da continuidade não deve impedir que se pense a sucessão, digamos, como série possível (Lefort só tematiza realmente o último movimento). Propô-la como problema não exclui "a priori" nem descontinuidades na ordem genética nem novidade radical no plano estrutural.
Iria mais longe, e aqui aparece um elemento curioso: a convergência que, "malgré lui", se descobre, creio eu, entre as bases da crítica de Lefort e os fundamentos dos autores que ele critica, Furet pelo menos. É que, além da exigência de uma verdadeira problematização das relações entre projeto socialista e burocratismo, seria necessário estudar mais de perto as relações (o que também não prejulga uma resposta continuísta) entre burocratismo e capitalismo. Aqui surge a dificuldade. Se Lefort se refere algumas vezes ao capitalismo e ao capital -ele indica mesmo, como foi visto, o que a sociedade burocrática teria tirado do capitalismo (mas "dissociado" da democracia)-, o "outro" da sociedade burocrática (no século 20) aparece essencialmente, como em Furet, sob o modo da "democracia liberal", da "democracia", das "sociedades democráticas", da "democracia moderna" etc.
Não quero dizer com isso que, à maneira dos marxistas (ou do marxismo corrente), deva-se substituir os termos "democracia", "democracia liberal", "sociedade democrática" etc. pelo termo "capitalismo", como se os primeiros designassem puras formas. O que proponho (e não é difícil mostrar que a questão não tem nada de simplesmente terminológico) é que, para designar esse "outro", não se fale nem simplesmente de "democracia" nem apenas de "capitalismo". O conceito que se impõe é para mim o de "democracia capitalista", o qual, no limite é sem dúvida um oxímoro (expressão que contém elementos contraditórios), mas oxímoro objetivo, e que por isso mesmo indica melhor do qualquer outro a essência contraditória do sistema.
Lefort alude sem dúvida à "contradição" do regime burguês "que reivindica princípios universais e por isso fomenta reivindicações sociais", mas o faz en passant e não com muita profundidade. Quanto aos marxistas, eles indicam as contradições do regime, mas não o nomeiam enquanto contraditório, por razões que discutirei em outro lugar. Nos dois casos separa-se democracia e capitalismo, o que se pode justificar e se justifica como conteúdo de um projeto -projeto que, diga-se de passagem, o liberal Furet contestava (ver seus escritos póstumos), mas, é inadequado, por uma razão ou pela razão contrária, para descrever o objeto.
E por que isso seria importante? Porque, para fazer uma teoria (ou, preferindo, uma apresentação) das formas sociais -Lefort critica as "tipologias" (?) e toma distância em relação à "teoria da história", mas não abandona a "idéia" de história-, assim como para estudar a genealogia do projeto socialista e, "através" dele, da ideologia burocrática, precisamos de uma apresentação rigorosa do capitalismo.
Duas observações: 1) O leitor talvez tenha notado que, em boa parte desse texto, mantive-me, voluntariamente, no interior da conceituação que agora indico como insuficiente; só num movimento final, introduzi o problema da ideologia em democracia capitalista. 2) O recobrimento da democracia capitalista pela idéia de simples "democracia" é a peça mestra do que há de ideológico no livro de Furet (livro que, de resto, tem os seus méritos). A posição de Lefort é eminentemente crítica: ver no final do livro seu acerto de contas com o "liberalismo econômico" e suas considerações sobre o papel das correntes socialistas na formação das sociedades ocidentais. É a análise teórica -a da burocracia em particular- que sofre com o discurso sobre a simples democracia.
O que estou sugerindo é um terceiro caminho entre uma análise continuísta e uma espécie de recusa de toda genealogia que não seja a que combina despotismo ou semidespotismo "asiático" (mais o lado "sombrio" do movimento socialista visto quase exclusivamente nesse quadro) e rasgos capitalistas dissociados da democracia. Desde que se parta de um caracterização suficientemente rigorosa da democracia capitalista, poder-se-ia explorar como um campo de possíveis tanto a matriz democrática como o que vai surgir a partir dela, o projeto socialista. No plano da gênese, como no da apresentação diferencial das formas.
Alguns sintomas das dificuldades fundamentais. Vimos que Lefort não acredita que o comunismo seja simplesmente uma ilusão do "passado". "O comunismo pertence ao passado; mas a questão do comunismo permanece no centro do nosso tempo." Mas o que significa conservar a "questão"? A resposta de Lefort passa sem dúvida por Hannah Arendt: segundo ela, com o comunismo, "ultrapassou-se um limiar do possível", tese que se situa num plano antropológico ou, preferindo, histórico-antropológico. Mas tratar-se-ia -se ouso dizer- só disso? A alternativa burocrática, enquanto possibilidade, não seria ainda, ela mesma, atual? E não me refiro apenas à China, que Lefort menciona, ou ao caso cubano. Tenho a impressão de que esse tipo de pergunta só poderia ser respondido por uma análise muito mais cerrada das relações burocratismo/socialismo e socialismo/capitalismo.
O mesmo problema aparece sob a forma de uma questão mal resolvida pelo livro, e que deixei em suspenso, a do suposto caráter "temporário" ("digressivo") da burocracia. Essa tese é recusada por Lefort. Mas, se sobrou apenas a "questão" do comunismo, e como questão histórico-antropológica, não se vê bem o sentido, ou pelo menos o alcance, da recusa. Creio que também a esse respeito, e se trata do mesmo problema visto de um modo um pouco diferente, a origem primeira da ambiguidade se encontra nas dificuldades indicadas.
Há uma outra questão, essencial, mas que não introduzo como crítica ao livro senão de maneira secundária, porque Lefort alude a ela, embora não insista suficientemente. É que nem o estudo da gênese do bolchevismo nem a crítica estrutural dele podem ser feitas de modo pertinente sem que se considere o seu contrário inseparável: a política da direção e da maioria do partido social-democrata oficial (e não da social-democracia nem de Kautsky, quaisquer que tenham sido as suas fraquezas em 1914). O interesse em considerar conjuntamente os dois fenômenos, como já o faziam o jovem Trotsky e Rosa Luxemburgo (também à sua maneira Kautsky, a partir de 1916/17) é múltiplo: histórico, como assinala Lefort, a capitulação diante do nacionalismo e da guerra por parte da direção social-democrata forneceu uma arma poderosa ao bolchevismo; teórico, a consideração conjunta das duas "perversões" ajuda-nos a entender o sentido da história do século; e político: essa é a única maneira de evitar, mesmo e talvez sobretudo entre nós, que a grande corrente em crescimento da crítica do bolchevismo venha a desaguar nas águas turvas das pseudo-social-democracias -não me refiro às européias- capitulacionistas.
O capitulacionismo se alimenta da crítica do bolchevismo assim como o neobolchevismo, sempre vivo entre nós, não conhece outra melodia que não a da crítica ambígua -porque mistura coisas diferentes- do "reformismo". O mérito de Lefort, como o de Castoriadis, e, no plano da política, do jovem Trotsky, de Rosa Luxemburgo e sem dúvida também o do internacionalista Martov, é o de não ter transigido nem diante de um nem diante de outro.
Pelo tamanho das questões que suscita, e por seu próprio porte teórico -o leitor deve ter sentido-, "La Complication" é um texto que exige mais do que uma "resenha". Tentarei retomar tudo em outro lugar. Caso as críticas aqui esboçadas se confirmem, não será um lugar-comum dizer que o que falta deverá também ser posto na conta da fecundidade desse livro, que se lê -como diziam, de outros, Malebranche, e depois Lévi-Strauss- "com o coração batendo muito forte".

Notas
1. Agradeço as observações críticas de Andréa Fernandes, Silvio Rosa Filho e Natália Maruyama, que me permitiram corrigir algumas das deficiências do texto.

Ruy Fausto é professor na Universidade de Paris 8 e autor, entre outros, de "Dialética Marxista, Dialética Hegeliana: A Produção Capitalista como Circulação Simples" (Brasiliense/ Paz e Terra) e "Sur le Concept de Capital: Idée d'une Logique Dialectique" (L'Harmattan).


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