São Paulo, Sábado, 10 de Abril de 1999
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Tradição e inovação

FÁTIMA ÉVORA

A história da ciência assistiu nas últimas décadas à desconstrução do mito, criado ou talvez consolidado pelo Iluminismo, de que os principais responsáveis pelo nascimento da ciência natural são Copérnico, Galileu e Descartes, enquanto Newton é figura central e preponderante na sua consolidação. Assim, o período que antecedeu ao nascimento da ciência moderna (nos séculos 16 e 17) não teria produzido nada de significativo no domínio da ciência natural.
Diversos historiadores contribuíram para a derrubada desse mito, defendendo, com algumas pequenas variações, a tese de que o pensamento científico desenvolveu-se continuamente desde os gregos, passando pela Idade Média latina e árabe, e chegando até o período da revolução científica moderna. Mesmo o historiador A. Koyré, que ao longo de seu trabalho procurou enfatizar o caráter revolucionário do pensamento de Galileu e Descartes, não cessou de nos ensinar que a ciência moderna "não brotou perfeita e completa qual Atenas da cabeça de Zeus, dos cérebros de Galileu e Descartes. Ao contrário, a revolução galileano-cartesiana -que permanece apesar de tudo uma revolução- tinha sido preparada por um longo esforço de pensamento".
Mas, se a ciência moderna tem uma dívida para com o período que a precedeu, se é herdeira de uma série de concepções antigas e medievais, que sentido tem falarmos em revolução científica? John Henry tenta apresentar uma resposta neste livro, em que discute brevemente os mais importantes aspectos da revolução científica moderna.
Sua visão sobre a historiografia da ciência fica clara desde o início. Após algumas considerações gerais sobre o debate entre continuístas e revolucionistas, ele afirma que "o consenso atual parece ser que, embora tenha sido exagerada no passado, a visão "continuísta" do desenvolvimento científico permanece válida por apontar os muitos e vários antecedentes de desenvolvimentos posteriores detectáveis no período medieval". A historiografia continuísta contribuiu, segundo Henry, como um antídoto às tendências "whiggistas" que olham e julgam os diversos episódios da história da ciência a partir do que posteriormente foi considerado relevante.
Henry alerta para os perigos do "whiggismo", particularmente associado ao uso do conceito de revolução científica, quando se associa o caráter revolucionário da ciência moderna ao seu desenvolvimento em direção à ciência atual. Além disso, pressupõe a existência, no período moderno, de uma ciência; mas, "estritamente falando, "ciência" no nosso sentido era algo que não existia". O que havia era a chamada "filosofia natural", que pretendia "descrever e explicar o sistema do mundo em sua totalidade" e que se relacionava com uma série de disciplinas técnicas, algumas fundadas na matemática (astronomia, óptica, mecânica, cinemática e música) ou na medicina (anatomia, fisiologia e farmacologia), além de artes práticas (navegação, cartografia, fortificação, mineração, metalurgia e cirurgia).
A interação entre disciplinas especializadas e a filosofia natural, como nota Henry, está presente nos trabalhos de vários autores modernos, como Galileu, Descartes e Newton. Segundo Henry, "o esforço de Galileu para reunir a cinemática e a filosofia natural resultou no que ele chamou de a nova ciência do movimento", passo este decisivo no desenvolvimento das teorias subsequentes. "Se algo pode ser de fato considerado revolucionário no período moderno é que ao longo dele a filosofia natural estava se transformando a ponto de se tornar irreconhecível, e se tornando mais próxima do nosso conceito de ciência".

A OBRA
A Revolução Científica e as Origens da Ciência Moderna John Henry Tradução: Maria Luiza Borges Jorge Zahar (Tel. 021/240-0226) 149 págs., R$ 15,00



A partir de uma abordagem "eclética", que combina elementos de leituras internalistas e externalistas da história ciência, Henry propõe-se a discutir esses elementos que estão na origem da ciência moderna. Começa analisando dois importantes componentes do método científico desse período: "a matematização da representação do mundo" e o "desenvolvimento do método experimental". Em sua análise, opõe-se a Crombie, negando que a origem do experimentalismo possa situar-se no século 13, e destaca que "um dos traços característicos da revolução científica é a substituição da "experiência" evidente por si mesma, que formava a base da filosofia natural escolástica, por uma noção de conhecimento demonstrado por experimento especificamente concebido para esse propósito".
Embora reconheça que já houvesse ciências matemáticas durante a Idade Média, Henry considera que o "período da revolução científica assistiu a uma mudança drástica nas concepções da análise matemática da natureza". Além da discussão desses aspectos mais internos da ciência, Henry analisa brevemente o contexto cultural e social no qual se insere a revolução científica moderna, empreendendo uma reflexão sobre o papel desempenhado tanto pela religião como pela tradição mágica.
Não se trata, no entanto, de um estudo sistemático da revolução científica. Henry admite que "para uma compreensão adequada das antigas concepções do mundo natural (...) nada substitui a leitura das fontes primárias -textos escritos pelos próprios cientistas"; contudo, não encontramos praticamente nenhuma citação direta extraída de fontes primárias. A bibliografia secundária é vasta e razoavelmente bem selecionada, mas cabe destacar algumas imperdoáveis ausências (por exemplo, a obra de Duhem) e a menção a apenas um livro de Koyré, e talvez não o mais importante.
Pode-se notar que Henry tem grande domínio da literatura secundária por ele citada. Mas fica-se, às vezes, com a desconfortável sensação de estar diante de um bem feito resumo panorâmico -não mais do que isso-, que decerto pode ser utilizado com proveito em um primeiro contato com o assunto.
Encontram-se algumas imprecisões linguísticas. Por exemplo, o movimento que Aristóteles chama de "para physin", "biai" ou "biaion", não deve ser traduzido como movimento "artificial" (pág. 26), mas como movimento "contra a natureza", "forçado" ou "violento".


Fátima Regina Rodrigues Évora é professora do departamento de filosofia da Universidade Estadual de Campinas.


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