São Paulo, Sábado, 10 de Abril de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Onde, quem, o quê

ANNA FLORA

Este livro foi publicado pela primeira vez no Brasil em 1979, exercendo grande influência no trabalho de diversos profissionais da área: educadores, estudantes, diretores, grupos de vanguarda amadores e profissionais.
Organizado à maneira de um manual, apresenta um sistema de jogos para o ensino de teatro decodificando os elementos "cenário", "personagem" e "atividade de cena". Esses três componentes são substituídos pelos termos "onde", "quem", "o quê" e por um problema a ser solucionado que se denomina "foco".
Por exemplo: o "foco" em um dos jogos propostos (são mais de cem!) é construir o "onde" utilizando apenas três objetos para a platéia. Se o lugar escolhido por uma das equipes for uma farmácia, os objetos manipulados podem ser: uma receita, um remédio etc.
Os jogadores que estão improvisando a cena serão posteriormente avaliados pelo grupo: eles conseguiram mostrar onde estavam (cenário), quem eles eram (personagem) e o que estavam fazendo (atividade em cena)?
O "foco" corresponde ao ponto de concentração do ator, mas isso não significa introspecção mental, e sim o envolvimento dos jogadores com a solução do problema. O que importa é a ação em cena. Por isso são feitas perguntas diretas no processo de avaliação: deu para "ver" a farmácia? Os objetos foram bem utilizados na composição do cenário?
Um dos maiores méritos desse sistema está no fato de ser um verdadeiro "ovo de Colombo", pois a estrutura onde/quem/o quê permite ao estudante compreender os elementos essenciais do teatro. Os jogos são apresentados numa linguagem acessível, mas essa simplicidade não se confunde com falta de base teórica. Antes dos exercícios propostos, a autora estabelece as fundamentações do trabalho.
Segundo Spolin, "talento" é apenas uma habilidade maior que alguns indivíduos têm para experimentar o ambiente. Todas as pessoas são capazes de atuar a partir da improvisação de cenas; o envolvimento dos jogadores possibilita que a espontaneidade seja incorporada ao processo de ensino.
Todas as brincadeiras possuem um desafio, uma tarefa que necessita ser cumprida. Dessa forma, o aspecto lúdico e o acordo mútuo são elementos importantes para a criação do cenário, das personagens e da atividade em cena.
A prática com os jogos tradicionais sugeridos no início das sessões não é apenas um recurso que incentiva a liberação do grupo, mas também um instrumento para a aprendizagem. A partir das possibilidades de variação dos folguedos, o espaço no palco é ocupado pelos jogadores de uma forma natural, sem posturas e gestos estereotipados.

A OBRA
Improvisação para o Teatro Viola Spolin Tradução: Ingrid Dormien Koudela e Eduardo J. de Amos Perspectiva (Tel. 011/885-8388) 354 págs., R$ 31,00



Spolin reforça que "antes de jogar devemos estar livres". Temos que ver, tocar e ocupar o ambiente sem medo de expor nosso corpo. É como se a dicotomia aprovação/desaprovação ficasse suspensa, pois o que conta é a alegria provocada pela atividade lúdica. Todos participam e ninguém está preocupado com o julgamento alheio.
Outra característica importante do sistema é o conceito "fisicalização". Ingrid Koudela escreveu uma tese pioneira chamada "Jogos Teatrais", na qual analisa minuciosamente o trabalho de Spolin. Nesse exame ela nos fornece um dado essencial: ação espontânea não equivale ao espontaneísmo do "deixar fazer". A espontaneidade exige uma integração entre os níveis físico, emocional e cerebral do indivíduo. A palavra "physicalization" é traduzida por "corporificação". Ou seja: no teatro, o que importa é a comunicação física direta; os sentimentos de cada participante são um assunto pessoal.
Reforçar o relacionamento objetivo e físico com a arte dramática traz uma compreensão maior para alunos e atores. Essa idéia é significativa, pois atualmente alguns educadores ainda defendem o ensino do teatro mediante frases vagas como "as artes cênicas incentivam a socialização e o desenvolvimento da criança como um todo". Ao contrário disso, o sistema de Spolin enfatiza a essência da arte: o teatro possui um valor em si, tem uma linguagem particular que o distingue das outras manifestações artísticas e requer um método para ser transmitido. São esses fatores que justificam o seu aprendizado.
Um dos aspectos positivos do manual é que, devido à flexibilidade das normas, os jogos mais complexos podem ser adaptados para faixas etárias menores. A sintonia entre o uso do símbolo e da regra permite à criança compreender que o ato de representar não é um "faz-de-conta" aleatório e sem sequência. A ficção requer verossimilhança e esta necessita da lógica para ser elaborada pelo sujeito criador.
É importante ressaltar o papel decisivo de Ingrid Koudela, educadora da Escola de Comunicação e Artes da USP, na divulgação desse sistema no Brasil. Quando este livro foi traduzido, apontou uma saída, ao mostrar que o indivíduo necessita de uma disciplina interna, justamente para garantir sua liberdade de criação. É essa harmonia que confere aos jogos teatrais uma utilidade ímpar e atual.


Anna Flora é escritora, autora de "O Louco do Meu Bairro" (Ática) e "A República dos Argonautas" (Cia. das Letras), entre outros.


Texto Anterior: Fátima Évora: Tradição e inovação
Próximo Texto: André Carone: O vocabulário freudiano
Índice

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.